quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

STEPHEN KING

 


STEPHEN KING
The Shining
Tradução: Maria Filomena Duarte
BERTRAND EDITORA 2021

O HOMEM

            Stephen Edwin King é um escritor, roteirista e contista norte-americano, nascido em Portland, em 21 de setembro de 1947. A sua mãe chegou a trabalhar num instituto psiquiátrico como cuidadora, e o pai, que era marinheiro, um dua desapareceu, ficando ela a tomar conta da família. Este facto terá pesado no seu psiquismo. Tinha mais um irmão e viveram em vários Estados até voltarem ao Maine em 1958.

Passando por muitas dificuldades, King rapidamente se tornou adulto, aos 11 anos escrevia num jornal escolar. Já a frequentar o liceu, publicou com o seu maior amigo Chris Chester 18 contos. Usa já títulos muito sugestivos, dando uma imagem daquilo que viria a ser com o: O Hotel no outro lado da EstradaA Coisa no Fundo do PoçoA Expedição Amaldiçoada ou O Outro Lado do Nevoeiro. Mais tarde publicou um livro em duas partes, The Stars Invaders, e colaborou numa revista.

Em 1966 acabou o ensino liceal, e, através de uma bolsa entrou para a universidade. Apesar da sua facilidade em escrever, os seus interesses dispersavam-se por diversos assuntos, era um aluno médio. Ainda muito jovem escreveu o seu primeiro romance, The Long Walk”, em que depositou grandes esperanças, mas o livro foi rejeitado pelo editor. Em 1970 concluiu o curso universitário para ensinar no ensino médio. Porém, não arranjou logo colocação e chegou a trabalhar numa bomba de gasolina.

Em 1971 casou-se com Tabitha Jane Spruce e entrou como professor no ensino na Hampden Academy. O casal mudou-se então para a cidade de Hermon no Estado Nova Iorque. Ainda no ensino começou a trabalhar num conto a que chamou Caritta White, mas aborreceu-se do livro, que lhe pareceu desinteressante, indigno do seu estatuto, e deitou as folhas ao lixo. Porém, a esposa leu a história, achou-a interessante e pediu-lhe para ele o continuar.

Em 1973 ele dava-a por concluída com o nome de Carrie. Recebeu adiantados 2.500 dólares, e posteriormente mais 200.000, estava lançado na vida literária, isto permitia-lhe sair do ensino. Contudo, seria a partir da adaptação de alguns das suas obras ao cinema que ganharia mais projeção. A partir daqui afirma-se como escritor e guionista. Depois de tantos êxitos literários continua a viver naquela cidade, escrevendo fora de casa.

Em 1999 sofreu um grave acidente. Foi atropelado quando seguia a pé numa estrada por uma carrinha ou van. Chegou a recear-se o pior, ele sofreu perfuração num pulmão, partiu algumas costelas, fraturou uma perna e a anca. Como um herói saído dos seus romances, milagrosamente, depois de várias operações, ao fim de três semanas tinha alta do hospital e regressava a casa para continuar a trabalhar.

            É considerado um mestre dos livros de terror, um tema que não tem muitos criadores, que ele trata magistralmente. Algumas das suas obras passaram a filme ou foram adaptadas à televisão, dando uma grande notoriedade aos seus romances. Recebeu, entre outros, em 2004 o World Fantasy Award, em 2007, o Mystery Writers of America, e em 2015 a Medalha Nacional das Artes do National Endowment for the Arts. O seu âxito literário tem-lhe permitido obter grandes recursos, com os quais tem subsidiado instituições de caridade e de interesse cultural. A esposa Tabitha também escreve e partilha com ele três filhos (dois filhos e uma filha).  


 

A OBRA

             A sua obra é vasta, abrange a ficção sobrenatural e científica e obras de suspense e terror próximas do género policial. Ele já escreveu mais de sessenta romances explorando os temas atrás referidos, para além de centenas de contos, livros e fantasia, ou mesmo obras fora da ficção. Já vendeu mais 400 milhões de exemplares de livros, foi traduzido em mais de quarenta países e adaptado ao cinema e à televisão. A lista completa consta nalgumas das suas biografias e na Wikipédia. Vamos citar aqui só alguns, os mais significativos que os leitores podem começar a ler:

        Carrie (Carrie, a Estranha/Carrie) (1974)
        Salem’s Lot (Salem’/A Hora do Vampiro) (1975)
        – The Shinning (O Iluminado) 1977
        The Stand (A Dança da Morte) (1978)
        The Dad Zone (A Zona Morta/Zona Mortal) (1979)
        The Firestarter (A Incendiária) (1980)
        Cujo (Cujo/Cão Raivoso) (1981)
        Pet Sematary (O Cemiterio de Animais) (1983)
        Doctor Sleep (Dr. Sono) (1983)
        – The Dark Tower Series (A Série da Torre Negra) (1983)
        It (A Coisa) (1986)
        Misery (Angústia) (1987)
        Gerald’s Game (Jogo Perigoso) (1992)
        The Green Mile (À Espera de Um Milagre) (1996)
        Bag of Bones (Saco de Ossos) (1998)
        The Lisey’s Story (A História de Lisey) (2006)
        Duma Key (A Maldição) 2008)
        Under the Dome (Sob a Redoma/A Cúpula) (2009)
        Mr. Mercedes (O Sr. Mercedes) (2014)
        The Institute (O Instituto) (2019)



a. O ROMANCE The Shining




Personagens Principais

Jack Torrance: Aparentemente é um pai e um marido extremosos, mas com dificuldade em se manifestar. Casou com Wendy e tem um filho de cinco anos, Danny. É alcoólico, o queo torna violento. Dá aulas de literatura de literatura numa escola preparatória, mas um dia agride um aluno. O conselho escolar suspende-o provisoriamente de funções até que se esclareça o caso. Um amigo, como ele, também alcoólatra, arranja-lhe um emprego sazonal como guarda do Hotel Overlook. São-lhes mostradas as instalações, cheias de esquisitices. Mais tarde, nas suas pesquisas pelo hotel encontra um álbum com fotos e recortes de jornal, que dão uma imagem sombria do que fora aquele local durante décadas. Tem mesmo a intenção de escrever um livro sobre o assunto, no que é contrariado pelo gerente do hotel, Stuart Ullman. Ainda vai voltar à bebida, tomando-se dos fantasmas daquele hotel, ficando completamente transtornado. Depois de alguns indícios de violência, tenta matar o filho e a mulher, que lhe consegue escapar com a ajuda de Dick Hallorann. Com a instalação elétrica disfuncional e o elevador a subir e a descer ininterruptamente, a caldeira, a que negligenciara a manutenção, explode e incendeia o hotel, morrendo lá dentro.

Wendy (Winifred Torrance): A esposa de Jack e mãe de Danny. Jack e Wendy conheceram-se na faculdade e ela foi morar com ele depois da mãe a expulsar de casa. Wendy tem uma história difícil com a mãe, que a culpa do divórcio com seu pai. Quando Wendy se casou com Jack não compareceu ao casamento. O primeiro ano de casamento de Jack e Wendy foi o mais feliz, até que Jack começou a beber depois de Danny nascer. A bebida de Jack era uma fonte constante de preocupações para Wendy, que chegou a considerar divorciar-se dele quando, estando bêbado partiu um braço a Danny. E a situação ainda se agravou quando ele agrediu um aluno e foi suspenso da escola em que lecionava. Aceitou, porém, ir com Jack para o Overlook Hotel, onde ele conseguiu um emprego como guarda de inverno. Talvez aquele retiro lhe fizesse bem. As primeiras semanas no hotel são pacíficas. Ainda assim está preocupada com Danny e os seus ataques catatônicos. Quando o fantasma do quarto 217 tenta estrangular Danny, deixando fortes hematomas no seu pescoço, suspeita de Jack. Ela chegou a pensar em levar o seu filho montanha abaixo em segurança, quando fica claro que Jack estava a ficar louco e planeava matá-los. Ao fim conseguiu do hotel com o filho, ajudada por Dick.

 

No filme de Stanley Kubrick de 1980, Jack Nicholson, Shelley Duval e Danny Loyde
Então Jack, Wendy e Danny ainda estavam bem

Danny Torrance: Um menino de cinco anos, filho de Jack e Wendy. Dotado de faculdades paranormais, tem visões aterrorizadoras sobre o hotel, é um vidente. Ama os pais, mas tem uma especial inclinação pelo pai, apesar de este, com a bebida o maltratar. Um mês depois, depois de um período de acalmia entra no quarto 217, apesar de proibido por Dick Hallorann, onde se dá conta que aquele lugar está amaldiçoado. Revela então aos pais as suas qualidades sobrenaturais, que eles interpretam como doença psíquica. Mais tarde um fantasma tenta-o estrangular nesse mesmo quarto. O pai, tomado pela bebida e pelo espírito do hotel torna-se cada vez mais violento. No fim do romance Danny apercebe-se que o pai quer fazer mal à mãe, e pede ajuda a Dick. Há uma cena em que o pai persegue a mãe, e ele vai tentar protegê-la. Avisado pelo seu amigo Tony (ele na idade adulta), verifica que a caldeira do hotel não foi desligada e vai explodir. Tenta sair dali. Ajudado por Dick, com a mãe conseguem os três fugir antes que o hotel se incendeie, deixando lá dentro o pai, que já não era ele próprio, mas o espírito do hotel.

Dick Hallorann: É o chefe de cozinha do hotel, que antes de ele fechar leva o casal Torrance e o filho a darem uma volta pelas instalações. Fala com Danny e confessa-lhe que tem como ele, qualidades telepáticas, e quando quiser pode comunicar-se com ele. Mais tarde, já longe daquele local é contactado por Danny, que lhe conta que o pai, influenciado pelos espíritos maus do hotel constitui um perigo para ele. É então que Dick, no meio de grandes dificuldades volta ao hotel para salvar Danny e a mãe de Jack, e os três se afastam dali depois do hotel se ter incendiado com o pai lá dentro.

Stuart Ullman: O gerente do hotel, um homem gordo e mesquinho, odiado pelo pessoal. Jack Torrance aparece com a família mais cedo do que esperava, encontrando ali ainda muito movimento, sendo mal recebido por aquele, que conhecia o seu passado. Depois de estar a contar o dinheiro das receitas do hotel com o rececionista, dá com Jack uma volta às instalações, mostrando-lhes a suíte presidencial. Antes de sair fica aborrecido por um funcionário ainda estar no átrio do hotel. Ele queria ser o último a sair. É contactado mais tarde por Jack para escrever um livro sobre o hotel, o que o deixa furioso, diligencia mesmo, sem sucesso, para que ele seja afastado daquelas funções.

Horace Derwent: Era o dono do Hotel Overlook em 1945, tendo sido o responsável pela sua restauração. Andou envolvido na morte de um tal Roger num baile de máscaras ali realizado, personagem que ficou a infernizar o local. Não se sabe se estará vivo ou morto. Na mente de Jack talvez seja ele o verdadeiro gerente do hotel ou o próprio diabo em pessoa.

Tony: É um amigo imaginário de Danny. No princípio do livro parece real, mas para o fim desvanece-se, residirá, pois, na mente do menino. É um espírito bonomioso que consegue ver acontecimentos passados e prever os futuros. Tony será portanto uma reconstrução de Danny já adulto, a querer ajudá-lo, é Daniel Anthony Torrance.

George Hatfield: Ex-aluno de Jack, que ao ser excluído de uma sua equipa de debates lhe furou os pneus do carro. Jack bateu-lhe, ferindo-o com gravidade, o que levou o conselho disciplinar da escola a suspendê-lo enquanto se fazia o processo. 


As mesmas personagens do filme quando as coisas começaram a correr mal

 

b.    Breve resumo (vai ser um pouco mais longo do que tencionava para incluir todos os capítulos)


Parte I

            Jack Torrance é professor numa escola de ensino médio na Nova Inglaterra. É casado com Wendy e tem um filho de cinco anos, Danny. É um pai extremoso, mas com a bebida torna-se violento, tendo partido um braço ao filho quando este lhe mexeu nuns papéis e batido numa criança da sua escola por esta lhe ter furado os pneus do carro. O conselho escolar suspendeu-o de funções até investigar o caso. A esposa chegou a considerar por essa altura o divórcio. Um seu amigo, Al Shockley, alcoólatra em recuperação, arranja-lhe um emprego ocasional como vigilante e zelador no Hotel Overlook, no Colorado, que fechava durante o inverno. Ao chegar lá é entrevistado por Stuart Ulmann, o gerente do hotel, que conhecendo o seu passado, o recebe com frieza. Conta-lhe que o anterior vigilante matara a família no hotel. Watson, o encarregado da manutenção do hotel foi-lhe mostrar a casa das máquinas e advertiu-o para a necessidade de controlar dos níveis de água e o termostato da caldeira, que sendo velha, deixada sem controlo poderia explodir e destruir o hotel.

Jack lembrou-se então de quando fora ao escritório e vira que Danny lhe remexera nas gavetas e lhe batera, a ponto de lhe partir um braço. A mulher teve de o levar ao hospital. Aquilo foi lamentável. Watson continuou o périplo pelo hotel, falando-lhe agora dos seus antigos donos, dos escândalos que ali ocorreram, do seu passado tenebroso. Como Jack se mostrasse admirado, reiterou-lhe que todos os hotéis têm os seus fantasmas.

Danny era um menino dotado de faculdades paranormais – vivia no país das sombras. Tinha um amigo imaginário, a que chamava Toy, que de vez em quando ouvia. Teve por essa altura algumas visões e conseguiu ler a palavra OINÍSSASSA, o contrário de assassínio, cujo significado desconhecia. Jack recorda-se de uma viagem que fizera de carro com o seu amigo dos copos, Al Shockley, e de um acidente que tiveram com um triciclo na estrada, não socorrendo o sinistrado. Normalmente, quando se encontravam corriam os bares todos da cidade. Por aquela altura ainda controlava a bebida. Pediu em casamento Wendy, e mais tarde tiveram o filho. No hotel, Danny acorda com Tony a gritar por si. Vem à janela ver o que é. Não vê nada e regressa à cama, vendo espelhada na escuridão em tons vermelhos a palavra OINÍSSASSA.

 

Parte II

O último dia desta parte será o da viagem para o Overlook. O autor volta para trás no romance. Wendy está preocupada, Jack diz que estava quase a chegar e por fim avistam o hotel, que Tony já tinha prevenido Danny ter ali havido um assassinato. Entram, lá dentro há uma grande azáfama. Stuart Ullmann, o gerente, só se mostrou simpático para Danny. Dick Hallorann, o cozinheiro negro, foi mostrar o hotel a Wendy e ao filho. Detiveram-se na cozinha e na despensa. A eles se junta Jack. Falam dos Watson, antigos donos do hotel. Pouco depois Hallorann vai buscar as malas para as pôr no carro e regressar à Flórida. Segue com Danny, a quem diz que ele tem muito “brilho”, isto é, faculdades de um iluminado. Falam de assuntos como se ele fosse já adulto. O menino confessa-lhe que sonha acordado, quando se depara com Tony. Hallorann pergunta depois aos pais quem é esse Tony, e eles dizem-lhe que é o seu amigo invisível. Numa conversa que Hallorann e Danny têm a sós, o menino confessa-lhe que aquele “brilho” toma às vezes a forma de pesadelo, mas que não quer contar a pai. Hallorann confessa-lhe que o dia em que tivera mais “brilho” fora quando antevira um comboio a descarrilhar, onde ia o seu irmão. Explica-lhe que as pessoas “brilham” por verem as coisas que vão acontecer ou já aconteceram. Os pais vão entretanto dar uma volta pelo hotel. Dick Hallorann termina aquela conversa dizendo a Danny que ali ninguém lhe fará mal, mas se ele tiver algum problema, que chame por ele. Pressupõe-se que os dois possuem qualidades telepáticas.

            O átrio do hotel ficou então quase deserto, para além deles estavam ali apenas o gerente, Stuart Ullman e o rececionista, duas criadas e Watson, encarregado da manutenção. O gerente levou o casal a dar uma volta pelo hotel, fazendo-lhes algumas recomendações. Passaram pelo elevador, que disse ser seguro embora Jack não se mostrasse tão certo disso, pois também diziam o mesmo do Titanic. Danny seguia com ele e viu sangue nas paredes de um daqueles quartos. Não quis alertar os pais, pois eles não podiam ver isto. O senhor Ullmann levou-os depois à suíte presidencial, mostrou-lhe dois quartos, mas não entrou no 217. Já no átrio, Watson despediu-se de Ulmann até ao dia doze de maio, quando entraria a época alta. Watson, cujos antepassados chegaram ser donos do hotel, seguiu depois com o seu carro pela estrada fora. Danny sentiu-se então muito só. Estavam os quatro debaixo do coberto em frente do hotel. Ullman perguntou se Jack já tinha as chaves e estava bem instruído acerca da caldeira, ao que ele deu uma resposta afirmativa, e pouco depois seguiu no seu Lincoln Continental para a Flórida. Ficaria ali apenas a pick-up do hotel e o WW de Jack. Estava frio e entraram para o átrio do hotel, onde havia uma lareira acesa.  

  

Parte III

            O Overlook não era um lugar amigável. Disso se deu conta Jack, quando deu com um ninho de vespas no telhado. Dali a vista era deslumbrante e começou a pensar na peça de teatro que andava a escrever. No dia 20 de outubro foi à cidade fazer as compras de Natal, embora ainda fosse cedo. Volta ao telhado para destruir as vespas, que ainda o voltaram a ferrar. Lembra-se de Al Shokley, como ele alcoólico, e de George Hatfield, seu ex-aluno, que era gago mas se parecia com Robert Bedford. Wendy vai à cidade às compras, e por momentos aquela família é feliz. Jack voltou-se então para os seus livros e para a máquina de escrever. Tinha trazido para ali o ninho de vespas, aparentemente inerte. Entretanto Danny vai à casa de banho e demora-se lá uma eternidade. A mãe estranhou o caso e chama por ele, que não responde. Fica assustada. Vem o pai e ameaça estroncar a porta. Por fim o miúdo abre a porta e diz ter estado a falar com Tony, tendo visto por lá a palavra OINÍSSASSA. Os pais resolvem então levar o filho ao médico no dia seguinte. Mas estão no quarto e o miúdo e a mulher são picados por vespas. Ora ela era alérgica e o filho também podia ser. Começaram a odiar o Overlook. Vão ao médico com Danny. Este pergunta-lhe por Tony, e Danny diz que o vê sempre ao longe, que deve ter pelo menos onze anos. Faz então várias perguntas ao menino e troca impressões com os pais, para ele é normal haver crianças com esquizofrenia.

            No dia primeiro de novembro Wendy sai com o filho passear à volta do hotel. Jack vai à cave fazer o controlo habitual. Dá então com um álbum de recortes relativos ao hotel e uma pilha de livros. Começa a ler e deu-se conta que tinha ali havido um baile de máscaras, onde se falou da Morte Vermelha. Descobriu que aquele hotel tinha sido lugar de crimes hediondos. Houve ali também um suicídio, o de Grady. Pensou então no que lhe disse Watson: todos os hotéis têm os seus fantasmas. No dia seguinte Danny ficou com a mãe, enquanto Jack volta aos seus afazeres. A mãe ficou satisfeita ao ouvir o filho dizer que já não tinha sonhos maus. Voltam ao hotel, e pouco depois Danny ficou só e veio-lhe à ideia ir ao quarto 217, que Hallorann lhe aconselhara a não entrar. Verifica então que todo o ambiente ali lhe é hostil, inclusive uma mangueira, que se mostra com um aspeto ameaçador. Entretanto, Jack telefona a Dick Hallorann a dizer que ia escrever um livro sobre o hotel, o que aquele se opõe ferozmente. Quis mesmo substitui-lo no lugar, só não o conseguindo por Al Stockley ter intervindo a favor dele. Wendy continuava preocupada com a situação do marido. Tinha medo que ele voltasse à bebida, e o mesmo receio tinha Danny, a quem ensombrava a palavra OINÍSSASSA.

Certo dia Wendy vai com o filho à cidade a um parque infantil. Conduzia uma velha carripana do hotel, onde tocavam no rádio os Credence Clearwater Revival, que a mãe pedir para desligar. Danny manifesta-lhe o desejo de saírem do Hotel Overlook, mas ela dissuade-o, pois o pai não podia perder o emprego. Entretanto, na sebe, Jack tentava aparar os animais ali esculpidos a partir de arbustos. Também eles parecem animados de vida. Quando a mulher chega ao coberto do hotel começa a nevar, mas está tudo bem. A seguir Wendy foi tricotear um cachecol para o quarto, Jack vai à cave fazer os seus controlos, onde sente que tudo ali é ameaçador. O filho vai de novo ao quarto 217. Ao tentar abrir a porta ouve repetidamente: CORTEM-LHE A CABEÇA. Entra, e depara-se com um cadáver de mulher na banheira. Tem um rosto arroxeado e um aspeto aterrador. Ele deu um grito e fugiu. Já cá fora, de olhos fechados e punhos cerrados, disse para si mesmo: NÃO HÁ ALI NADA. 

 

Parte IV

            Isolado pela neve no país dos sonhos, Jack à noite tem pesadelos e vê o espetro do pai a afrontá-lo. Grita de aflição, e com isso acorda Wendy, que vem dar com ele no escritório. Vão então ter com o filho, que também está sobressaltado e tentam acalmar. Jack desce a seguir ao rés-do-chão e algo o perturba: vem-lhe à mente vislumbres da Morte Vermelha. O seu passado de bêbado atormenta-o. Danny aparece-lhe a gritar assustado, dizendo que foi ela. Ela quem? Wendy acompanhava-o, e Jack levou o filho para a cozinha para o serenar. Ele viu qualquer coisa na banheira que o perturbou. Jack sai com o argumento de ter de ir trabalhar, e vai ao quarto 217 ver o que se passa. Achou ali o ambiente perturbador, mas a banheira estava vazia. Voltou à cozinha e disse à mulher que não estava lá nada. Vão para o quarto. Jack está a pensar em continuar o seu livro. A mulher mostra-se preocupada com os arranhões que o filho tem no pescoço, desconfia que ele lhe tivesse feito qualquer coisa. O menino parece catatónico, isto é, aparenta ter uma rigidez excessiva.

Jack adormece e tem sonhos tenebrosos com George Hatfield, o seu ex-aluno. Acordou com um grito e foi verificar a caldeira. Passou pela arrecadação e viu a mota de neve. Pairam sobre a sua cabeça ideias tenebrosas. Em 29 de novembro, três dias depois do dia de Ação de Graças, estava bem e andou cá por fora, onde se sentia mais leve, livre de responsabilidades. Danny desceu até ao parque infantil do hotel. Ali sentiu-se vigiado por seres sobrenaturais e teve uma experiência medonha num túnel. Chegou ao coberto do hotel a chorar com um rasgão nas calças. No átrio do hotel, onde ardia uma fogueira, tentam acalmar o filho, que conta parte do que se passou lá em baixo no parque. À noite vão para o quarto e ouvem um barulho estranho. Jack explica que é o elevador, talvez movido por um curto-circuito. Vão ver e deparam-se com fenómenos macabros. Tony andava por ali a dar indicações a Danny. Este, no primeiro dia de dezembro vai ao salão de baile e pressente que aquele espaço é possuído por outras vidas. A Morte Vermelha passou por ali. Viu um vulto a persegui-lo e fugiu dele, mas foi deter-se numa redoma de vidro, onde estava espelhada a palavra ASSASSINO. Aquele ambiente parecia-lhe ameaçador. Foi então que, desesperado, voltou a clamar pela vinda de Dick Hallorrann.  

Parte V

            Na Flórida, o velho cozinheiro sentiu o chamado de Danny: – OH DICK, POR FAVOR, VEM. Era com se alguém tivesse apontado uma arma psíquica à sua cabeça. Vai ter com o patrão pedir três dias de dispensa e corre com o seu Cadillac para o Overlook. Vem-lhe à sua mente episódios macabros passados no quarto 217, quando a senhora Massey, uma criada, ficara histérica e fora despedida por vir contar tudo cá para fora. Aquele incidente destabilizara o hotel. Vai de carro tentar apanhar um avião. Seguia em certo ponto do trajeto em excesso de velocidade e um polícia mandou-o parar. Já não chegou a tempo. Um chamamento ecoou de novo na sua cabeça: VEM POR FAVOR, DICK! No hotel Danny tinha um lábio inchado. Wendy pensou que tivesse sido o marido a fazer aquilo, mas foi o próprio filho que a desmentiu. Este confessou-lhe que chamou por Tony, mas que ele não veio, não o deixaram. Diz-lhe que há coisas no hotel a induzir o pai a fazer-lhes mal.

            Jack Torrance estava na cave, no seu pensamento surgiu-lhe o aviso de que se a temperatura da caldeira subisse demasiadamente corriam perigo. Foi fazer um controlo à fornalha e a caldeira atingira os 14 bares. Ouviu então uma voz: – Esquece, deixa a Wendy e o Danny e vai-te daqui embora. Mas ele tinha a sua dignidade e começou a repensar episódios da sua vida com o pai e os seus três irmãos. Lembrou-se que tinha feito com Wendy feito um seguro elevado, no caso de lhes acontecer qualquer coisa. Danny acordou de um pesadelo terrível, e olhou para as sebes e elas estavam com um aspeto horripilante. Dentro da sua cabeça ouviu uma voz pronunciar: SAI DA MENTE DELE, CABRÃOZINHO. De repente vê um homem-cão de olhos avermelhados. E o mais terrível de tudo foi ameaçar ir comê-lo. O espírito do Overlook apoderara-se do pai. Foi então que voltou a chamar: DICK, VEM DEPRESSA QUE ESTAMOS EM APUROS. Entretanto, depois de ter perdido um avião, Hallorann consegue arranjar lugar noutro da TWA. Está preocupado com o pedido de ajuda de Danny.

            Entretanto, Jack Torrance sente-se habitar o Hotel Overlook nos seus tempos áureos, quando houve ali um baile de máscaras, num tempo em que havia grandes festas. Nessa manhã os quartos estavam todos ocupados. O bar tinha sido reabastecido de bebidas, e elas eram por conta da casa. Assim diisse para ele o barista Loyde. Estas personagens já tinham morrido há muito tempo, mas movimentavam-se ali cheios de vida, entre os quais Grady, que se tinha suicidado. Riam-se de Danny, e pareciam querer trazê-lo para o seu domínio. Jack a certo ponto ouviu no Salão Colorado alguém pedir para deixarem cair as máscaras. A Morte Vermelha pairava sobre todos eles. Chamou por Grady, que não respondeu. Fugiu então dali mas caiu e perdeu os sentidos. Por fim recuperou-os arrastando-se na leve. Eram oito e meia da manhã.  

            Por sua vez, Dick Hallorann toma o avião da TWA e uma mulher começou a gritar, dizendo que o avião ia cair. Passaram por dois poços de ar e ela logo o confirmou, dizendo que já sabia que aquilo ia acontecer. O ambiente no avião era perturbador. Uma hospedeira foi tentar acalmá-la. Estava enjoado. Quando desceu por entre as nuvens lembrou-se de um desastre recente de avião e temeu-se. Cá fora nevava. Por fim o avião aterrou e parou no terminal. Mas ainda era preciso passar na portagem e levantar as bagagens. E precisava de alugar um automóvel. Lá conseguiu partir, mas ainda iria encontrar uma estrada fechada ao trânsito devido à neve. Voltou para trás, tinha de comprar nalgum sítio umas correntes para passar por aquela neve. Chegou à área urbana de Denver e a polícia aconselhou-o a não se meter a caminho.

            Por volta do meio-dia, Wendy, com Danny na casa de banho desceu à cozinha para fazer o almoço. Não sabia onde estava o marido. Chamou por ele e não obteve resposta. Parecia-lhe ver ali Hallorann. Tentou controlar-se e foi fazer a refeição. Voltou a chamar pelo marido e ouviu um gemido indefinido no bar. Espreitou lá para dentro, vendo-o no chão, bêbado com um cacho. Ele tinha encontrado bebidas na despensa. Entram em diálogo, mas ele está transtornado, tem um sorriso malévolo e dirige-se-lhe em termos ameaçadores. Fala-lhe de Grady. Receia que ele a vá matar, e a seguir ao filho. Jack pôs mesmo as mãos no pescoço de Wendy. Danny apareceu a gritar:  Papá, para! Estás a magoar a mamã.  Wendy deu-se então conta que os espíritos do hotel se apoderaram deles. Ela conseguiu por fim libertar-se dele, e com a ajuda do filho fechou-o na despensa. Ele gritou para o tirarem dali. Eram três da tarde e Danny andava cá fora a brincar quando ouve o pai a gritar na despensa. A mãe chora, não sabe como resolver situação. Tem, contudo, a esperança que o Hallorann ou outra pessoa qualquer passem por ali e os ajudem. Às quatro e meia o dia escurece e o elevador começa a funcionar. Acordaram e no hotel parecia ter reaberto ao público. Ela receou que Jack tivesse saído da despensa. Ele já teria recuperado da bebedeira. Está sentado na despensa a comer bolachas. Verificou que bebera demais, e ele com a bebida fazia disparates. Começou então a pensar na educação severa que o pai lhe dera, a ele e aos irmãos. Pressente Grady estar da parte de fora da despensa e pede-lhe para sair. Este exige que ele lhe traga o filho, o que promete. Wendy iria opor-se, e ele tinha de matá-la. Conseguiu arrombar a porta e pareceu ouvir lá de dentro dele a voz de Grady: – Cumpra a promessa, senhor Torrance

            Eram duas da tarde Dick Hallorann tentar chegar com o seu Buick ao Hotel, mas com o nevão que fazia estava a ter dificuldade. Encontrou um limpa-neves que ainda o ajudou, mas a sua experiência em conduzir naquelas circunstâncias era pouca. A esta hora Wendy estava no quarto a olhar para Danny, que adormecera. No hotel andava tudo numa roda-viva, as portas abriam-se e fechavam-se, o elevador descia e subia, voltara a ter vida, aquilo era medonho. Ouviu as doze badaladas do relógio e alguém gritou: – Tirem as máscaras. Todas as luzes do salão de baile se acenderam. Jack apareceu então com um maço para a matar. Ela conseguiu defender-se, embora ficasse ferida, fugindo a custo pela escadaria. No hotel, Wendy conseguiu fechar Jack no terceiro andar e fugiu para uma casa de banho, onde se trancou. Contudo, ele conseguiu libertar-se e vai tentar arrombá-la com um maço. 

           Já perto do hotel, Hallorann caiu da mota, um leão persegue-o. Ele só o conseguiu afastar quando lhe lançou gasolina e lhe deitou fogo. Chega finamente ao Overlook e chama por Danny, pensando que teria chegado tarde demais. Mas ele ainda ali estava. Tony chama por Danny, e é aqui que se revela como o seu Ego adulto. Danny foge por aqueles corredores até que se depara com o pai. Wendy vai à procura do filho. Hallorann já o teria encontrado? Deu com ele e foram ao terceiro andar à procura de Danny. Jack estava tentando matar Danny a pedido de Grady. Quando o filho exclama que ele não é o seu pai deixa então cair o maço na passadeira e diz para o filho: – Foge Danny, e lembra-te que gosto muito de ti. Danny diz que a caldeira não era controlada desde há dias e que ia explodir. O miúdo desceu a seguir em direção à escadaria, onde sentiu a presença de Hallorann. Os três fugiram do local. Jack corre para a caldeira para ainda a controlar, mas ela explodiu com ele lá dentro, pegando fogo ao hotel, que ardeu completamente. Hallorann, Wendy e Danny descem até à cidade mais próxima na mota de neve. Wendy ia a desfalecer, e foi com alívio que Hallorann chegou ao consultório do doutor Edmonds para a tratar.

 

Epílogo

            Dick Hallorann arranjou emprego num Resort do Maine por influência de Al Shokley. Um dia chega lá, vê Wendy sentada numa cadeira de baloiço a ler um livro. Está a recuperar dos ferimentos sofridos no Hotel Overlook. Recebera um avultado seguro pela morte do marido e vive sem grandes dificuldades. Conversam os dois amenamente. Ela diz-lhe o filho está melhor, já tem menos pesadelos, embora os incidentes lá passados ainda pesem na sua mente. Danny está a pescar, e vão os dois ter com ele. Hallorann abraça-o. Danny ainda é ajudado por ele a tirar da água um peixe maior. Há entre os dois uma grande afinidade. Danny tem saudades do pai, mas aceita-o como figura paternal. 

 

O Hotel Stanley do Colorado, onde King se inspirou para escrever o romance 
 

 

c.       Comentário Geral

The Shining tem muito de autobiográfico. Foi uma espécie de catarse que Stephen King fez a si próprio, quando teve problemas com o álcool e viu que estava a pôr em perigo a sua carreira e a própria família. Tendo ficado cedo sem a mãe, dá indicações de ter tido uma educação bastante rígida por parte do pai. Foi um processo que o autor encetou para se moderar não só no consumo de álcool, como também no controlo da violência, que o apoquentaram durante uma década. Ele se inspirou no Stanley Hotel do Colorado, quando por lá passou em 1974 como único ocupante e teve uma experiência menos agradável.

            O livro é fortemente influenciado pela atmosfera de A Máscara da Morte Vermelha de Edgar Allan Poe, e isto não tem nada de pejorativo, pois Poe era e é uma referência neste tipo de histórias. King, embora cultivando um género com poucos criadores, que recorre predominantemente ao absurdo e ao horror, de início não teve muita aceitação, mas a passagem de algumas das suas obras para o cinema, de que se destaca The Shining, rapidamente o tornaram mundialmente conhecido. Também terá influências de Goya, que ao pintar as suas águas-fortes, denominadas Follies, explora as fronteiras entre a realidade e o sonho.  

            As três personagens do livro completam-se: Wendy é bela, sensível, maternal, mas ao mesmo tempo corajosa, a âncora daquela família. Jack é um pai extremoso, que a bebida torna irresponsável e violento, passível de ser tomado pelos espíritos malignos. De um momento para outro passa de pessoa responsável a alienado, e por fim a um potencial assassino. Danny é um menino sobredotado, dotado de faculdades paranormais, com o tal “brilho” que faz dele um iluminado, um vidente, capaz de prever acontecimentos futuros e ver os passados.

            A adaptação deste romance ao cinema por Stanley Kubrick deu projeção a este livro. O filme excederá em mestria o livro, pois é considerado, no género um dos melhores filmes de sempre. Para isto também terá contribuído a excelente representação de Jack Nicholson. Inicialmente o filme não foi muito bem recebido por King, por Kubrick não ter explorado o problema da desintegração familiar e pôr o acento tónico da obra em Jack, em vez de Danny. Kubrick quis potenciar o efeito terrificante do filme em vez de explorar o seu lado social, que seria menos comercial. Todavia, Stephen King tem sempre o mérito de ser o criador original da ideia, e mais tarde passou a aceitar melhor o projeto de Kubrick.

            Enfim, este livro tem sido objeto de muitas apreciações, naturalmente subjetivas. Há quem pura e simplesmente repudie este tipo de livros, e temos de os respeitar. Outros há, porém, que se deixam fascinar por estes ambientes fantasmagóricos, capazes de lhes causar calafrios, fazendo-os vivenciar novas experiências, como quando se entra numa montanha russa. Também estão certos. Haverá outros ainda que verão o livro sobretudo pela qualidade da escrita e construção do trama, analisam-no cientificamente, e nesse caso não acreditam muito na história, riem-se até das cenas de terror, apreciam-no sobretudo sob o ponto de vista criativo. Quanto ao filme houve quem adormecesse ao vê-lo. Este livro é para quem gosta do género, para quem se impressione com cenários estranhos e assustadores, acredite ou pelo menos aceite o fantástico, o sobrenatural, delire com cenas sinistras, medonhas, aterradoras, e, sendo assim, pode ver em The Shining um livro clássico de terror, para alguns críticos, como Peter Straub, uma obra-prima do género.

 


04/01/2024
Martz Inura




sábado, 8 de julho de 2023

ERNEST HEMINGWAY

 

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ERNEST HEMINGWAY
POR QUEM OS SINOS DOBRAM
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA
Tradução de Monteiro Lobato


O HOMEM
            Ernest Miller Hemingway é natural do Estado de Idaho, dos Estados Unidos da América do Norte. Nasceu em 21 de Julho de 1899 e faleceu em 2 de Julho de 1961. Fez apenas o segundo ciclo liceal, aventurando-se ainda jovem à carreira do jornalismo. Quis-se oferecer para a Primeira Grande Guerra, mas foi recusado por ter problemas de visão, contudo, não iria desistir da ideia de entrar na guerra, conseguindo um lugar de motorista na Cruz Vermelha em Itália. Vem dali O Adeus às Armas. Regressa à Europa em 1921, e aqui estabelece aqui relações privilegiadas com personalidades, que se viriam a tornar famosas, como Ezra Pound, Scott Fitzgerald, e Gertrude SteinTeve uma vida muito atribulada, com quatro casamentos e outras paixões à mistura. Foi premonitória a confissão de Fitzgerald, quando disse que ele precisava de uma mulher a cada livro. Acabada a guerra volta para a América, instala-se na Florida, mas cedo se aborreceu daquela monotonia em que vivia. Em 1930 está em Havana, a capital de Cuba, e entre 1936 e 1939, durante a Guerra Civil de Espanhaem Madrid, como correspondente de um jornal. Esta experiência inspirou Por Quem os Sinos Dobram. No fim da Segunda Guerra Mundial instalou-se em Cuba, mais outra paixão e um novo romance, O Velho e o Mar. Com a idade a sua saúde debilitou-se, sofria de diabetes, hipertensão, perda de memória, entrou em depressão, doença que já tinha afectado fatidicamente seu pai, e que o veio a levar a ele também ao suicídio com uma espingarda de caça.

A OBRA
            Ele foi jornalista, repórter de guerra, tem uma produção literária variada, que consta de literatura de viagens, como As Verdes Colinas de ÁfricaAs Neves do Kilimanjaro, crónicas de grandes momentos como Morte na TardeParis é uma Festa, cartas, contos, histórias, e dez romances, de que se destacam: O Adeus às ArmasPor Quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar.
      As suas obras ganham mais sentido e tornam-se mais veementes quando retratam as suas experiências pessoais, de que ele se socorre para lhes dar um realismo muito intenso. Ganhou o Prémio Pulitzer em 1953, depois de ter publicado O Velho e o Mar, e em 1954, foi laureado com o Prémio Nobel de Literatura. É conhecida a paixão do autor por Espanha.




POR QUEM OS SINOS DOBRAM

Sinopse do romance
         Como estratégia para uma ofensiva republicana, o general Goltz destaca Robert Jordan para a zona de Segóvia, onde vai dinamitar uma ponte, integrado numa operação mais vasta, destinada a conquistar aquela cidade. Tem ali a apoiá-lo dois grupelhos instalados em cavernas, o de Pablo, com 11 elementos e 5 cavalos e o de El Sordo, com 17 e sete cavalos, relativamente afastado.
            O grupo tinha elementos vindos da Estremadura, de destruir comboios. Pablo dá nome ao grupo, mas é um bêbado impenitente, descrente daquela acção ofensiva, e é a mulher, Pilar, que verdadeiramente manda ali. Pensam mesmo em matar Pablo, dado perigo que ele representa para o grupo, mas a mulher opõe-se e fica-se por aí. Esta apresenta a jovem Maria a Jordan, que com ela vai desencadear a relação romântica do romance. Mesmo de cabelo rapado, por acção dos falangistas, é graciosa e bela.
            Reconhecem a ponte que se pretende destruir, mas a missão é difícil, está ali um destacamento militar galego a protegê-la. Um forte nevão obriga a atrasar a operação. A vida na gruta é estúpida, ainda que cheia de sobressaltos, sobretudo quando sobrevoados por aviões. Aproveitam para recordar o passado recente, a acção de Pablo na tomada de Ávila e a morte horrenda de 20 fascistas com manguais de malhar trigo.
            Fazem uma visita ao grupo de El Sordo, que os vai apoiar, e regressam ao seu covil. A missão é difícil, questionável, não tem o apoio de Pablo, mas mesmo assim estão determinados a sacrificar-se pela República. Na ausência do marido, Pilar conta excertos da sua vida antes da guerra e a sua relação com Pablo. Este deve ter ouvido qualquer coisa a seu respeito que se mostra mais colaborante. Aguarda-se pelo melhor momento para desencadear a acção, na gruta fala-se de episódios recentes da guerra, a morte de misericórdia de um dos seus amigos, Kachkine, que foi gravemente ferido numa acção.
            Pela caverna passa um elemento destacado de uma patrulha falangista, aproxima-se demasiado e é abatida por Jordan e o cavalo recolhido. Temem um assalto e colocam quatros metralhadoras em posições estratégicas. Pouco depois aparece o resto da patrulha, que passa sob a mira das suas armas. Os falangistas parecem não dar pela sua presença e estes não desencadeiam o ataque, passando despercebidos, o que os terá salvado de uma morte certa.
            Pouco depois, ali perto, o grupo de El Sordo é atacado. Ele tinha mandado procurar cavalos e denunciado a sua posição. Há quem no grupo de Pablo queira ir ajudá-los, mas acabam por desistir da ideia, isso ia ser inútil, os dois grupos iam ser dizimados e não seria possível levar a cabo a missão de destruir a ponte. El Sordo resiste aos falangistas, desloca-se para cimo do monte, mas pouco depois vem a aviação que desfaz o grupo, que acaba por ser aniquilado pelos falangistas.
            É uma sensação terrível de saber que os seus amigos tinham sido todos mortos, mas felizmente encontra-se vivos, não foram detectados. Perante esta situação Jordan escreve uma carta a Goltz, enviando o seu emissário, Andrés. Aguardam naquela sofreguidão, Maria acaba por contar a Jordan as sevícias, as violências e atrocidades por que passou às mãos dos falangistas. Uma história de um horror difícil de ouvir da sua boca.
            O nevão foi forte, ainda se demoram, na gruta, entretanto Jordan aproveita para evocar o seu passado, falando do seu avô, e do seu pai, que se suicidara. Naquele impasse desaparece Pablo, bem como os explosivos destinados a fazer a detonação. Entretanto, Andrés, que fora levar a mensagem a Goltz, encontra especiais dificuldades em penetrar nas linhas amigas, onde há muita desconfiança, muita burocracia. No grupo, depois de um reconhecimento à ponte fazem um ponto da situação e dão-se conta da sua insuficiência para empreender a missão.
            Entretanto, Pablo, arrependido, regressa com cinco camaradas, ingénuos militantes da causa, dispostos a dar a vida pela República, mas sem os explosivos, que deitara ao rio. Jordan, com algumas granadas e uns restos de explosivos, consegue reunir material para ir fazer explodir a ponte, improvisando. O resto pode o leitor saber ao ler o livro. A acção decorre num intervalo de quatro dias, sempre na eminência do perigo, com a morte a rondar por perto, alguma paixão à mistura, e reminiscências de carnificinas a povoar-lhes o pensamento.

Personagens mais importantes
          Robert Jordan: americano que se ofereceu para as Brigadas Internacionais em apoio à República Espanhola, e é destacado para destruir uma ponte. Tem uma paixão por Maria.
         Pilar: Mulher de Pablo, personagem forte de mulher, que cheira o futuro, e quem verdadeiramente manda ali no grupo, a sibila do romance.
         Maria: Jovem que foi estuprada pelos falangistas, e se deixa apaixonar por Robert Jordan. Figura frágil, vitimizada, a dar um lampejo de romantismo no meio de tanta tragédia.
        Pablo: quem dá nome ao grupo, corajoso no passado, mas que está afectado psicologicamente pela guerra. É um bêbado inveterado, por vezes cobarde.
     Anselmo: Guia de Robert Jordan, corajoso mas sensato, ainda tocado pela humanidade que escasseia por ali.
           Rafael: o cigano, pessoa ingénua, bem-intencionada, mas pouco vocacionada para aquela guerra.



Este romance foi adpatado ao cinema logo em 1943 por Sam Wood, com Gary Cooper e Ingrid Bergman

Linguagem.
            Utilizada uma linguagem objectiva, fria, sem grandes artifícios, jornalística, dando vida a factos intensamente vividos, abrangendo os episódios mais horríveis daquela guerra, as cenas mais desumanas, qual rosário de calamidades, cada qual a mais horripilante, mas também com momentos de doçura, de esperança e lirismo, a vida, toda ela, no seu selvagem esplendor.
            Recorre muito ao discurso directo. Usa e abusa de longos diálogos sem qualquer comentário ou descrição, mas estes são tão intensos e verdadeiros que os conseguimos suportar sem enfado. O ambiente de guerra é pesado, o futuro imediato imprevisível, o que leva a que as palavras se tornem densas, cheias de um significado que é imperioso apreender.

Importância desta obra
             Por quem os Sinos Dobram é uma obra marcante, com uma intensidade e uma riqueza de pormenores com que se costumam distinguir os romances de cariz autobiográfico. Apesar de, ao longo da narrativa as personagens estarem sempre sob o espectro de uma morte iminente, a vida ocorre ali nas suas diversas cambiantes, transborda de humanidade. Hemingway consegue traduzir com alguma exactidão os efeitos do egocentrismo e do divisionismo espanhol: Onde se encontrarem três espanhóis juntos, dois aliam-se contra o terceiro, e depois o dois primeiros começam a trair-se mutuamente. Nem sempre, é claro, mas com a frequência suficiente para tirar uma conclusão. E infelizmente, esta característica não será estranha a toda a humanidade, desde Abel a Caim.
            Embora alguns críticos possam encontrar fraquezas neste romance: como sejam a linguagem por vezes obscena; o amor salvífico entre Jordan e Maria, por demais repentino para ser crível; algumas paragens na narrativa, justificadas pelo nevão, que ele aproveita para evocar o passado; longos diálogos com pouco enquadramento; uma linguagem por vezes coloquial, jornalística; quanto a nós, estas debilidades são pouco relevantes, o livro relata com grande veemência as consequências do ódio e da intolerância, com o seu caudal de perseguições despóticas, processos vexatórios, suplícios cruéis, condenações demenciais, atentados irracionais, e todo um rosário de desvarios, que ele descreve com uma grande leveza de meios, sem descurar o rigor narrativo. Quase sem querer, leva-nos ao interior de uma guerra civil, de violência estrema, a que assistimos à distância, interessados, ainda que com alguma repulsa.
            As insuficiências que se apontam ao livro serão apenas artifícios para escrever o romance, que é sobretudo uma obra de arte, não um exemplar de realismo e convenções que se queiram apresentar ao leitor. O livro obriga-nos a uma reflexão profunda sobre a vida e a morte, o amor e o ódio, a coragem e a cobardia, a relatividade das ideias, a baixeza a que pode descer o género humano. É o testemunho da insanidade a que leva à guerra, aqui civil, que opõe irmãos, cidadãos do mesmo país, e, por amor a ideias de um valor passageiro, mesquinhas. Os fins defensáveis não podem justificar os meios perversos. Ele conduz-nos a ambientes, realmente vividos, em que se mata e morre por ninharias, a sociedade perdeu a sua consciência moral, entrou em anomia.
            Por quem o Sinos Dobram, pondo a nu a violência que ainda existe no género humano, gerada no interior do caldo económico, social e cultural em que se insere, é, sem dúvida, uma obra que consegue iluminar historicamente um período dos mais importantes do século XX, premonitor da Segunda Guerra Mundial, em que o imperialismo económico e político e as ideologias estão no seu auge, é um dos manifestos anti-guerra mais veementes que se possam ler, uma obra a vários títulos fundamental para a compreensão deste período. Ainda que Hemingway não se detenha em grandes explanações morais, a vida está lá, com toda a evidência, para o leitor tirar as suas ilações de ética. Os sinos dobravam pelos milhares de mortos que estavam a ocorrer a cada momento por toda a Espanha católica, vitimizando as duas facções em luta, e continuam a dobrar pelas vítimas das guerras que sobrevêm ainda hoje, estupidamente, por esse mundo fora. Há que ler este livro.

(A REVER)

Martz Inura, 21 de Junho de 2015

terça-feira, 13 de junho de 2023

ANTON TCHÉKHOV

 



ANTON TCHÉKHOV
A Senhora do Cãozinho
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Relógio D´Água Editores



O HOMEM

Anton Pávlovitch Tchékhov foi um consagrado escritor russo, percursor do conto moderno. O pai era um pequeno comerciante, cristão ortodoxo, muito devoto, mas demasiado austero, talvez tirano, e a mãe muito carinhosa e ótima contadora de histórias. Tchekhov tinha mais cinco irmãos e chegou a participar no coro da sua paróquia. Foi neste ambiente que formou a sua personalidade. Nasceu em 29 de janeiro de 1860, em Taganrog, um porto marítimo no Mar de Azov.

O pai foi à falência, tinha ele dezasseis anos, a família foi para Moscovo à procura de novas oportunidades, vivendo com grandes dificuldades, e ele continuou em Taganrog para concluir dos seus estudos secundários, que teve de pagar através dos mais diversos trabalhos. A sua paixão era Medicina, e foi então para Moscovo, onde se matriculou na faculdade e se juntou à família. Mas mesmo aqui teve de recorrer ao seu génio na escrita para sobreviver economicamente.

Ele ansiava por ser um médico reputado, um investigador científico, mas aos vinte anos já era um escritor famoso, os seus contos eram avidamente lidos. O leitor moderno deve ter em conta que naquele período, em que não havia rádio, televisão ou cinema, a literatura, cuja publicação muitas vezes se iniciava nos jornais em fascículos, tinha muito público. Em 1884, forma-se em Medicina, mas continua a escrever, e em 1886 ganha o prémio literário Pushkin. Infelizmente já evidenciava sintomas da tuberculose, que o levariam à morte.

Em 1890 faz uma viagem de comboio e navio ao Extremo Oriente, à Ilha Sacalina, no Mar do Japão, onde convive com as condições de vida difíceis e desumanas que as pessoas ali suportam, que o marcaram bastante. Em 1886 compra uma casa a cinco quilómetros de Moscovo, em Melinovo, hoje museu, para onde leva a família e exerce medicina, muitas vezes gratuita, aos camponeses pobres em redor. Dedicava-se também à agricultura e jardinagem. E continuava a escrever, isso era obrigatório, incluindo agora peças de teatro, que tiveram maior ou menor êxito.  

                Durante uma visita a Moscovo, em 1897, sofre uma forte hemorragia nos pulmões. Ele não queria reconhecer a sua doença, foi com dificuldade que o convenceram a ser observado. Foi-lhe diagnosticada uma tuberculose e recomendado um novo estilo de vida. Com a morte do pai em 1898, ele compra uma casa em Ialta, onde pensa ter melhores condições para se curar, levando para lá a mãe e uma irmã. Ali continua a escrever várias obras, em que se inclui duas peças para o Teatro de Arte em Moscovo. Reincide na plantação de árvores e jardinagem. Foi visitado por Liev Tolstói e Máximo Gorki, nomes sonantes da literatura russa, que o admiravam e já se tinham apercebido da sua grave doença.

            Ele era um solteirão muito cobiçado na Rússia, e em maio de 1901 casa-se com Olga Knippe, uma atriz. Dado a doença dele e a profissão dela, ele passa a maior parte do tempo em Ialta e ela em Moscovo. Um tempo depois ela tem um aborto espontâneo, o que é motivo de muita controvérsia. A verdade é que ele, apesar do seu otimismo continua a piorar. Em 1904 a doença está no seu estádio terminal, embora ele não o reconheça. Os seus amigos recomendam-lhe a ir fazer uma cura à Alemanha – era dar-lhe mais uma réstia de esperança para a sua vida, que se estava a encurtar. Em 3 de junho, ele partiu com Olga para a cidade alemã de Badenweiler, na Floresta Negra, para ali ser tratado, mas já era tarde. Em 15 de julho de 1904 ele morria naquela cidade.

 

    Um dos volumes publicados pela Relógio D'Água Editores

 A OBRA

            A obra de Anton Tchékhov é vasta, e estendem-se ao conto, ao ensaio, às novelas, às peças de teatro e às cartas. Não se vão referir aqui todas, que facilmente poderão ser recolhidas nas suas imensas biografias. Citamos as mais importantes para que os leitores as comecem a ler:


No teatro, umas catorze peças, as seguintes:
– Ivanov (1887)
– A Gaivota (1896)
– As Três Irmãs (1900)
– O Jardim das Cerejas (1904)

Nos ensaios (dois):
– Caderno de Notas

Nas novelas (cinco):
– A Estepe (1888)
– O Duelo (1891)

             Nos contos, eles são mais de quinhentos, teremos de nos confiar ao bom gosto dos editores que normalmente editam uns tantos em vários volumes, não nos dando outra escolha, contudo, salientam-se alguns:


– O Camaleão (1884)
– Vanka (1886)
– Kachtanka (1887)
– O Estudante (1894)
– A Casa de Mezanino (1896)
– Ionitch (1898)
– Homem num Estojo (1898)
– Groselha (1898)
– Queridinha (1898)
– A Senhora do Cãozinho (1899) (No Brasil A Dama do Cachorrinho)


UMA OBRA SELECIONADA: A Senhora do Cãozinho

 

PERSONAGENS PRINCIPAIS

– Dmitriy Dmitrich Gurov, banqueiro de Moscovo, que desconsidera a esposa, achando-a banal e entediamte, uma espécie inferior, a quem é infiel.

– Anna Sergeyevna, uma jovem mulher casada, um tanto abandonada pelo marido, mais velho do que ela, e muito voltado para a sua vida profissional.

 

BREVE RESUMO

            Dmitriy Dmitrich Gurov, um homem a chegar aos quarenta anos, estava casado com uma mulher que parecia ter o dobro da sua idade, alta e esquisita. Ele achava que ela tinha ideias curtas e aspeto repulsivo, e procurava não estar muito tempo em casa. Tinha uma filha e dois filhos. Passara uns dias em Ialta, sempre à procura de novos encontros, não lhe escapavam as mulheres bonitas. Um dia viu uma senhora loira, nada alta a passear com um cãozinho, que lhe chamou à atenção. Voltou a encontrá-la no jardim municipal e no parque, sozinha, não sabia quem era, para ele era a mulher do cãozinho (cachorrinho). Ele no meio dos homens não sabia o que dizer, chateava-se, mas no meio de mulheres não lhe faltavam palavras, sentia-se feliz.

Um dia ao entardecer encontram-se no jardim ao jantar, Gurov fez uma festa ao cãozinho, Spitz, ele não o conhecia e rosnou, e a senhora esclareceu-o que ele não mordia, mas corou. Era muito tímida, e a custo iniciaram uma conversa. Espontaneamente fizeram algumas revelações um ao outro. Ele disse que era banqueiro em Moscovo, onde possuía duas casas, e ela que fora criada em Petersburgo, mas casara-se numa cidade de província não muito longe dali. Confessou que dissera ao marido que estava doente e viera para ali descansar, esperando a vinda dele a qualquer momento. Ele viu-a frágil e sensível, a viver uma vida tão insípida que saiu dali com um sentimento de pena por ela.

Uma semana mais tarde encontra-se no molhe da cidade a ver a entrada de um vapor no porto, conversaram animadamente, até que a multidão que estava por ali se dispersou. De repente ele abraça-a e dá-lhe um beijo na boca. Há uma atração demasiado forte entre eles – irresistível. Anna Sergeyevna cedeu aos seus desejos, mas sentiu-se a mais vil das mulheres ao ceder àquela aproximação, o marido deixara-a vir para ali descansar, e afinal ela estava-o a trair. Ela queria ter uma vida honesta, o seu marido não demoraria a chegar, isto não podia estar a acontecer. Disse que ia pensar nele, mas que tinha de se ir embora, que não lhe ficasse com rancor. E Gurov, embora contrariado teve de se ir embora.

Dmitrich Gurov regressou a Moscovo, era já inverno. Tenta integrar-se no seu trabalho e esquecê-la, mas aquela mulher não lhe saída do pensamento. Fechasse ele os olhos que ela lhe vinha à mente; e a dormir que estivesse, ela aparecia-lhe em sonhos. Ela tinha um casamento infeliz como o dele. Começou a interrogar-se se não a amava mesmo, sendo um homem de relações tão volúveis. Estava farto dos filhos e da mulher. Um dia disse em casa que ia a Petersburgo, e foi à cidade onde vivia Anna Sergeyevna. Sabia que o marido se chamava Drídiritz, era de origem alemã, e vai à sua procura. Não demorou a encontrar a casa, ainda viu o cão, cujo nome, de repente lhe fugiu da lembrança: Não a viu e não teve coragem de lhe entrar pela casa dentro.

Ora no teatro da cidade ia apresentar-se o espetáculo A Gueixa, era natural que ela fosse à estreia. Foi lá e não demorou a encontra-la, acompanhada de um senhor de suíças, muito alto e curvado. Ele compreendeu logo que estava na presença porventura a mulher mais bela do mundo. Durante um intervalo o marido veio fumar cá fora e ele foi junto dela saudá-la. Ela ficou embaraçada, saindo de imediato até cá fora para um sítio menos frequentado, perguntando, porque viera ele ali, e para quê? Ele não sabia o que dizer e pediu para ela ter compreensão. Foi então que ela lhe confessou que sofria por andar sempre a pensar nele. Ele não resistiu a puxá-la para si e beijá-la. Ela suplicou-lhe para que se afastasse, que depois se encontrariam em Moscovo. Estava tomada por um sentimento contraditório de felicidade e angústia. Afastam-se e ele sai do teatro.  

A partir daquele encontro Anna Sergeyevna passou a ir regularmente a Moscovo, dizendo ao marido que ia a um médico especialista de senhoras. Ela quando chegava ao hotel anunciava a sua chegada, enviando-lhe para casa um chapéu vermelho, para não se denunciar. Um dia Gurov foi levar a filha ao liceu e a seguir foi encontrar-se com ela ao hotel. Tinha uma vida dupla: uma convencional, com a família, baseada na mentira; e outra secreta com a amante, sob o signo do adultério. Quando os dois se encontraram no hotel, beijaram-se apaixonadamente. Tomaram chá. Ela chorou de emoção. Estes encontros prosseguiram, eles não sabiam como os parar. Os dois tinham descoberto finalmente o amor, mas continuavam presos às amarras do passado, de que não sabiam como se libertar. Tinham, contudo, a esperança de um dia encontrarem a solução, o mais complicado ainda estaria para vir.  

 

Tchékhov com a esposa Olga, que o acompanhou a Badenweiler

 COMENTÁRIO GERAL DESTE CONTO

            O conto começa inopinadamente, sem grandes antecedentes. Ao estilo de Tchekhov, versa uma fatia da vida das personagens. É considerado uma obra-prima do gênero pela capacidade do autor em retratar a psicologia das personagens de forma subtil e complexa, através de um estilo realista e conciso. Usa uma linguagem simples e direta para descrever a vida de Dmitri Gurov, um homem infeliz e entediado que busca nas aventuras amorosas um meio para fugir da monotonia da sua existência.

            O autor utiliza a narrativa para explorar temas complexos, como a natureza do amor e da felicidade, a relação entre as pessoas e a sociedade, procurando utilizar diferentes técnicas para criar suspense e surpreender o leitor. A história é contada na terceira pessoa, mas está focada no ponto de vista de Gurov, o que permite ao leitor experimentar a transformação da personagem ao longo do conto. Há um aspeto original nesta obra, o autor tenta descrever as emoções não por expressões inflamadas das personagens, mas através de pequenos detalhes e gestos exteriores.

            O conto não se limita a uma simples história de amor proibido, ele mergulha no cotidiano da vida social. E mais, A Senhora do Cãozinho (cachorrinho) é uma obra que consegue ser ao mesmo tempo uma história íntima e pessoal e uma reflexão profunda sobre a natureza do ser humano – a condição humana. É fotográfica, quase amoral, o autor não se preocupa muito em tecer comentários morais das suas personagens. É um exemplo notável do poder da literatura em explorar e iluminar as complexidades da vida, para que, sem preconceitos possamos refletir livremente sobre ela.

Casa de Tchékhov em Melodino transformada em museu
 

 A IMPORTÂNCIA DE ANTON TCHÉKHOV PARA A LITERATURA OCIDENTAL

       Anton Tchékhov notabilizou-se pela sua capacidade capturar a complexidade das emoções humanas, indo até ao mais profundo da vida cotidiana. Os seus contos, peças de teatro e novelas são marcados pela sensibilidade e sutileza da sua escrita, que influenciaram diversos escritores posteriores, mais claramente na forma como introduziu a técnica da “corrente de consciência” ou “fluxo da consciência” na literatura, muito utilizada no século XX.

            Os seus contos, em particular, são considerados como uma das mais importantes contribuições à forma literária do conto moderno, ao lado de Edgar Alan Poe. A sua técnica previa narrar um corte abrupto da vida das personagens, sem prólogos ou epílogos. Eles são caracterizados pela sua concisão, objetividade, e mestria em capturar detalhes significativos da vida cotidiana que muitas vezes passam despercebidos. A sua obra foi admirada por autores como James Joyce, Liev Tolstói, Máximo Gorki, Virginia Woolf, e muitos outros.

            Além de suas realizações literárias, Tchékhov era médico, e também conhecido pelo seu grande humanismo. Teve uma vivência rica de experiências, por vezes dolorosas. Os seus escritos refletiam as preocupações e questões sociais da sua época, incluindo a pobreza, a injustiça e a desigualdade. Ele preocupava-se mais em equacionar os problemas da sociedade, do que apresentar soluções para os mesmos. Fugia ao debate ideológico. Isso não obstou que se tornasse um dos mais acérrimos paladinos da justiça social da sua época, por obrigar as pessoas a refletir.

Em suma, a importância de Anton Tchékhov para a literatura ocidental é inegável. Ela foi escrita num período em que a sua influência era fulcral na cultura. A sua obra literária foi traduzida por dezenas de línguas, influenciou milhões de leitores e continuou a inspirar e influenciar escritores de todo o mundo até hoje. A proficiência com que consegue captar a realidade e atingir a profundidade da vida cotidiana continua a ser um exemplo de excelência literária. Morreu aos 44 anos de idade de tuberculose, quando ainda se esperava o melhor dele.

 


Martz Inura
10.5.2023