MARCEL PROUST





MARCEL PROUST
Em Busca do Tempo Perdido
À Sombra das Raparigas em Flor 
Tradução de Pedro Tamen
RELÓGIO D'ÁGUA (2003) (544 p.)





     Estas sintéticas apreciações reportam-se ao II Volume de Em Busca do Tempo Perdido, À Sombra das Raparigas em Flor, de Marcel Proust (1871-1922), aquele que lhe deu o Prémio Goncourt. Compõe-se o livro de uma primeira parte, Em Torno da Senhora Swann, e uma segunda, Nomes de Terras: A Terra (544 páginas). Recorda-se que o I volume tem como subtítulo Do Lado de Swann; o III, O Lado de Guermantes; o IV, Sodoma e Gomorra; o V, A Prisioneira; o VI, A Fugitiva; o VII, O Tempo Reencontrado. Marcel Proust, autor francês, meio judeu e homossexual, era de constituição física frágil e asmático, tendo tido quase sempre um vida bastante enfermiça e turbulenta. Apesar de economicamente não ter problemas, já que o seu pai era um médico ilustre e a mãe uma judia rica, teve dificuldades em atingir os objectivos para si traçados pela família e se integrar na sociedade. Já em idade madura, tendo perdido com muita mágoa os seus entes mais queridos, entre eles a mãe, talvez para compensação dessas perdas e do desacerto em que andou, pôs-se a escrever toda a sua vida (ou uma sua vida), como para a recuperar, amarrando-se a uma secretária mais de uma década. Morreu de uma pneumonia aos 51 anos de idade. O primeiro volume teve de o editar à sua custa, o segundo o editor só o aceitou publicar após insistências, e os dois últimos foram editados postumamente. Mas tal como ele disse, e aproveito aqui a sua ideia, as obras para a posteridade só deviam ser lidas anos mais tarde, para se evitar a sensação que se experimenta quando vemos algumas pinturas, que vistas de muito perto perdem toda a sua beleza. Não acrescento nada em dizer que a tradução de Pedro Tamen é excelente.   
     A primeira parte do livro decorre em Paris ainda na adolescência. O seu entusiasmo em ir ver Fedra, representada por Berma (Sarah Bernhardt). Reflexões sobre a representação. Na casa dos Swann e Odette: do amor, da infidelidade e do ciúme. Muita análise de costumes. A sua grande paixão por Gilberte, não correspondida, que ele deixa aos poucos morrer dentro de si. Apresentação ao escritor Bergotte (Anatole France?). As suas ambições literárias, que vê comprometidas. Jantar com o diplomata Norpois. A figura enigmática de Robert de Saint-Loup e o Barão de Charlus. Divagações sobre a sua carreira, sobre a diplomacia, a arte, a literatura. A segunda parte do livro leva-o para umas férias na estância balnear de Balbec na Normandia. Raparigas na praia e um novo amor a despertar em Albertine. Apresentação ao pintor Elstir (Monet) e ao impressionismo. Convívio com a Marquesa de Villeparisis, Madame de Sévinhé, Madame Verdurin. De novo Saint-Loup e o Barão de Chalus. Longas reflexões sobre a pintura, o amor, a sociedade. Tal como a primeira parte, povoada de algumas relações, nitidamente de natureza sexual, mas que ele trata de forma natural, como fenómeno tão-somente humano.
    A técnica discursiva que utiliza é a de, como fonte da sua narrativa privilegiar a memória, por influência de Henry Bergson, ainda seu parente, que a dividia em voluntária e involuntária: isto é, entre a que resulta da aprendizagem, de uma vivência, e é manipulada pela vontade; e a que, sem fazermos nada por isso emerge na nossa consciência, que é espontânea, imprevisível (dela excluindo a visual, que é do domínio da primeira). O autor não seguirá à risca estes limites. Ele vê a memória com nascente de ideias, emoções e sensações com que se faz a vida e recria o mundo. Nesta teoria é muito valorizado o passado, onde está o tempo perdido. Ao narrar a sua história, por vezes afasta-se dela, a sua descrição é fragmentária, saltitante, como resultado dessa tal memória involuntária ou fortuita, que aflora de quando em vez à consciência. Fica-nos a ideia de que neste aspecto ele terá influências de William James (Corrente da Consciência) e Sigmund Freud (Níveis de Consciência), mas que a tê-la, a terá obtido indirectamente, pois não conheceria a obra daqueles autores. Os seus escritos, porém, não são a retratação fiel da vida, porque afectados pela sua filosofia, pela sua estética literária, pela forma como tantos autores o influenciaram, e ainda pela sua própria análise, ao rever e apurar os livros.
        O romance é autobiográfico, ele fala na primeira primeira pessoa, à excepção da narrativa, e está cheio de análises psicológicas, mas também reflexões filosóficas, descrições levadas ao pormenor sobre o ambiente que o rodeia (rodeou), faz incursões sobre a teoria da arte, falando sobre literatura, representação, pintura, arquitectura, música, até mergulhar na análise social mais profunda, pondo a nu a burguesia da sua época. É portanto uma das primeiras obras a incidir na intertextualidade. Ele tenta captar toda a realidade vivida, como se a pretendesse sorver na sua totalidade, apoderando-se do próprio tempo. A literatura consiste em captar a vida tal como ela é, não a impregnar de ideologias ou pretensões morais: o leitor que as descubra se elas lá estiverem, construídas por força da natureza das coisas, não como propósito do autor.  
     Sendo embora um dos autores mais influentes do século XX, temos que admitir que nem toda a gente goste deste tipo de literatura, elaborada muito ao sabor da corrente da consciência, glosando minudências da vida nem sempre chamativas, por vezes arrastada, entrando em pormenores à primeira vista irrelevantes, com algumas descrições de uma minúcia que parece excessiva, cortando ao livro um fio condutor por que se guie, sem um intrincado enredo a espicaçar-lhe a curiosidade, com laivos, enfim, de obra experimental. Muitos consideram que o autor é demasiado descritivo, repetitivo: perdendo-se em obesas análises psicológicas; ou pairando em espaços ou situações, onde aparentemente não se está a passar nada, e que ele descreve como a mais entusiasmante epopeia ou maravilhosa paisagem. Sentem-se afogados no meio das suas prolixas análises, que lhes parecem por vezes aborrecidas, enfadonhas, tediosas, talvez mesmo estéreis.
     Contudo, usando um olhar mais profundo, se pode verificar que o livro é muito mais do que isso. Temos de contextualizar o que é minúsculo no todo grandioso de que  faz parte. E faça-se a ressalva de que ele exige um mínimo de cultura ao leitor para que possa ser apreciado, embora isto não signifique que uma pessoa culta e inteligente possa gostar dele obrigatoriamente. À Sombra das Raparigas em Flor, pode ser uma obra que não agrade a todos, dada a complexidade da análise do autor, a sua visão específica do mundo, a mestria e adornos com que usa a linguagem para chegar à realidade, o rigor e intensidade com que descreve ao pormenor o espaço físico em que decorre, e bem assim a sociedade do seu tempo. Mas será por isso mesmo, por toda essa laboriosa prossecução, pela originalidade desta profunda abordagem, que esta obra se torna marcante.
     Ele viveu intensamente a vida, conhece bem o mundo, e vai recriá-lo com palavras através de múltiplos estados de alma retidos na sua memória, como imagens que se projectem num ecrã para se fazer um filme. A sua obra pretende apoderar-se do próprio tempo, daí que procure não ignorar nada e seja tão exaustivo. Não é um romance fácil, dividido em capítulos, com uma estrutura simples, um enredo convencional, mas um rio caudaloso de recordações trespassado de observações sábias, apartes interessantes, descrições rigorosa, meditações profundas, purificadoras da linguagem, modeladoras do pensamento, que tornam a sua leitura enriquecedora. Ler este livro é um pouco como ir de férias para os princípios do século XX. Ele dá uma nova (outra) dimensão ao realismo.

          22/07/2011  Martz Inura