VOLTAIRE













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VOLTAIRE
Cândido
Tradução Maria Archer
Editor: Bárbara Palla e Carmo
BIBLIOTECA VISÃO (126 páginas)


O HOMEM
            François-Marie Arouet, que é mais conhecido pelo seu pseudónimo, Voltaire, foi um célebre escritor francês, ensaísta, dramaturgo, poeta, e sobretudo um filósofo Iluminista, que veio a ter influência na Revolução Francesa e Americana. Nasceu em Paris em 21 de novembro de 1694, e faleceu na mesma cidade em 30 de maio de 1778. Nascido numa família burguesa, matricularam-no no Colégio de S. Luís em Paris. Frequentou Direito, mas não chegou a terminar o curso. Viveu uma vida de libertino, de pensador livre. Com Jean Jacques Rousseau e Montesquieu é um dos três pilares do Iluminismo em França. Acreditava no progresso, era racionalista e liberal, mas anticlerical. Considerava a religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) absurdas e ridículas. Simpatizava com o hinduísmo. Era contra o absolutismo, a nobreza e a Igreja. Criticava nesta sobretudo os dogmas, a inquisição e os jesuítas. Em 1717 esteve preso nas Bastilha por escrever uns versos desrespeitosos a Luís XIV. E em 1726 teve uma altercação com um cavaleiro, que lhe valeram cinco meses de prisão e o seu desterro para Inglaterra, onde permaneceu até 1729. Apesar de atacar algumas religiões, acreditava em Deus, que era possível apreender da Natureza através da razão. Em 1734 publica Cartas Inglesas a criticar o regime francês, voltando outra vez a ser condenado. Refugia-se então na Lorena, em Cirey, protegido por Madame Châtelet. Depois da morte desta foi para Berlim, convidado por Frederico II da Prússia. De 1754 a 1765 instala-se em Genebra, onde nem Calvino escapa à sua sátira. Os genebrinos não gostaram e ele vai para Ferney, onde fica quase até ao fim da sua vida. Regressa por fim a França, onde morre em Paris com 83 anos de idade, fazendo a sua última proclamação para a Humanidade: Morro adorando a Deus, sendo amigo dos meus amigos, não odiando os meus inimigos e a detestar a superstição.


A OBRA
            A sua obra é vasta e variada, sendo de destacar os seguintes trabalhos:
La Henriade (1723-28)
Ensaio sobre a Poesia Épica (1727)
Brutus (1730)
Zaire (1732)
Cartas Inglesas (1734)
Tratado de Metafísica (1734)
A Morte de César (1735)
Alzire (1736)
Mundano (!736)
O Filho Pródigo (1736)
Discurso sobre o Homem (1738)
Elementos da Filosofia de Newton (1738)
– Zulima (1740)
Maomé ou o Fanatismo (1741)
– Mérope (1743)
A Batalha de Fontenoy (1745)
Zadig ou o Destino (17447)
Semirámis (1748)
O Século de Louis XIV (1751)
Poema sobre a Lei Natural (1752)
Ensaio sobre os Costumes (1756)
Poema sobre o Desastre de Lisboa (1756)
Cândido (1759)
Tancredo (1760)
Tratado sobre a Intolerância (1763)
Dicionário Filosófico (1764)
– O Ingénuo (1767)


ROMANCE, Cândido

– O ESPAÇO E O TEMPO
            Cândido nas suas andanças percorre os três continentes, vai mesmo ao Eldorado, aonde ninguém consegue ir. O tempo não irá muito para além de 1755, data do terramoto de Lisboa, mas é um tanto distorcido.

PRINCIPAIS PERSONAGENS
               Cândido: a personagem principal, que os criados suspeitavam ser filho da irmã do barão e de um gentil fidalgo da vizinhança, que não conseguiu provar que tinha mais que 71 costados de nobreza. Era um jovem dotado de sentimentos suaves, com uma fisionomia que retratava a alma, e um raciocínio justo e um espírito simples, daí o nome Cândido.
                Cunegundes: a grande paixão de Cândido, filha do barão Thunder-ten-tronckh. Jovem de dezassete anos de idade, rosada, fresca, gorducha e apetitosa.
             Barão Thunder-ten-tronckh: o senhor do castelo onde Cândido foi criado. Era pai de Cunegundes, homem de ideias fixas sobre a nobreza, a quem exigia pureza de sangue, dando uns pontapés no rabo de Cândido quando o surpreendeu a ser demasido terno para a filha.
               Pangloss: filósofo e mestre de Cândido, a quem estima e considera, que tinha como certo que vivíamos no melhor dos mundos. Era o oráculo do barão.
               A Velha: personagem que acode a Cândido em Lisboa. Era filha do Papa Urbano X e da princesa Palestrina. Ela nasceu em beleza no meio dos prazeres, dos respeitos e das esperanças. Mas nem imaginava ainda o que iria sofrer.
                Dom Isaac: o judeu mais colérico depois do cativeiro da Babilónia, avarento e somítico.
              Cacambo: criado que arranjara em Cádis, só um quarto de sangue espanhol, natural de Tucumán. Já fora menino de coro, sacristão, marinheiro, monge, soldado e lacaio. Era agora fiel criado de Cândido.
               Martin: Velho sábio que Cândido conhecera no Suriname, mas que embarcara com ele em Bordéus. Um homem que sofreu tantas desgraças que ficou maniqueu, embora eles já não existissem ao tempo. Esta filosofia dualista dividia o mundo em bom e mau, em Deus e o Diabo, em espírito e matéria. Tinham uma visão pessimista do mundo.
              Paquette: uma criada de Thunder-ten-tronkh, que foi seduzida por um franciscano, expulsa do castelo, passando por uma odisseia terrível que a levou à prostituição em Veneza.
                 Frei Giroflé: um frade que gostava de comer e beber, e que se divertia com Paquette, mas ao lhe gabarem a sua sorte disse que mais de cem vezes pensara em deitar fogo ao convento. Os pais dele obrigaram-no aos quinze anos a vestir aquele hábito para deixarem a sua fortuna ao seu irmão mais velho.


– BREVE RESUMO DO LIVRO
            O autor dividiu o livro em 30 capítulos, ele tinha as suas razões, mas nós aqui, para efeitos de análise, vamos reparti-lo por doze partes:

Primeira Parte, Capítulo I, na Westfália
            Cândido vivia feliz a regaladamente em casa do seu tio e protetor, barão Thunder-ten-tronckh, um dos mais poderosos senhores da Vestfália. A baronesa, que pesava cerca de 330 libras era muito considerada e respeitável, talvez por isso. Havia um filho de barão em tudo digno do seu pai, a filha, Cunegundes, de dezassete anos de idade, que ele amava, e o mestre Pangloss, uma espécie de oráculo da casa, que considerava que viviam no melhor dos mundos: tudo tinha sido criado para um fim, e necessariamente, para o melhor dos fins. Um dia, Cândido foi visto a ter gestos de ternura para com Cunegundes, e o barão Thunder-ten-tronckh, indignado com tal gesto, expulsou-o da sua casa com grandes pontapés no traseiro.

Segunda Parte, Capítulo II, em Valdberghoff-trarbk-dikdorff
            Expulso daquele paraíso terrestre ele foi para a cidade vizinha de Valdberghoff-trarbk-dikdorff, falho de dinheiro e morto de cansaço. O nome em si já é assustador. Estava ali o rei dos búlgaros e ele apenas quis beber educadamente à sua saúde, e logo lhe fora postas a grilhetas e o levam para prestar serviço no regimento. Dão-lhe instrução e ele comete erros, recebendo como castigo vinte bastonadas. Um dia resolveu passear pela parada livremente, julgam-no desertor e é castigado. Perguntaram-lhe se queria ser vergastado 36 vezes por todo o regimento, se receber de uma só vez doze balas no crânio. Escolheu a primeira hipótese, claro. O regimento tinha 2.000 homens e à terceira volta ele pediu humildemente que lhe esmagassem a cabeça. Só então o rei dos búlgaros verificou que se tratava de um moço metafísico, ignorante das coisas do mundo, e lhe perdoou. Ele em três semanas de cirurgia intensiva recuperou das mazelas.


Terceira Parte, Capítulos III e IV: A guerra do búlgaros e a fuga para a Holanda
             Na aldeia vizinha também havia búlgaros e Cândido pôde assistir a uma batalha entre dois exércitos de búlgaros. E nada mais belo do que ver aqueles dois exércitos em ação, as trombetas, os pífaros, os tambores, os canhões, numa harmonia como nunca houvera outra no inferno. Ele escondeu-se o melhor que pôde, fugindo desta aldeia, sempre a pensar na menina Cunegundes. Muniu-se de alguns mantimentos nos seus alforges e foi para a Holanda. Andou a pedir esmola pelas ruas, mas logo o avisaram que desistisse dessa ideia, porque era posto num hospício. Eram anabatistas e queriam-no obrigar a dizer que o Papa era o Anticristo, o que ele recusou, expulsando-o dali e chamando-lhe malandro e miserável. Saiu e encontrou na rua um mendigo todo coberto de pústulas, cego e com o nariz comido, a boca de esguelha, os dentes negros, falando em falsete, e isto comoveu-o.
            Cândido, compadecido, deu dois florins ao velho, e só depois descobriu que se tratava de Pangloss, ali posto na miséria. Pergunta-lhe pela menina Cunegundes, e ele diz-lhe que ela morreu esventrada pelos soldados Búlgaros, depois de ter sido violada por tantos quando se pode sê-lo. Perguntou-lhe pelo barão e ele disse que lhe tinham esmagado ao cabeça por ele ter defendido a filha. A senhora baronesa fora esquartejada, e o filho tratado com a mesma crueldade da irmã. Cândido desmaiou mais do que uma vez. Recuperado tratou de curar o mestre. Foi pedir ajuda ao anabatista Jacques, que se deixou comover e tratou Pangloss às suas custas, ficando apenas sem um olho e uma orelha. Pangloss continuava a pensar que o mundo corria pelo melhor, que as desgraças particulares fazem o bem geral, embora não convencesse Jacques. E, sendo este obrigado por questões comércio levou os dois filósofos até Lisboa.  


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O terramoto de Lisboa de 1755, recreação histórica


Quarta Parte: Capítulos V e VI, em Lisboa
            Navegam para Lisboa, mas no Tejo deparam com uma grande tempestade. Cândido ainda tenta salvar Jacques, mas Pangloss disse que este porto de Lisboa fora feito expressamente para nele se afogar aquele anabatista. Entram na cidade ainda com algum dinheiro, quando Lisboa começa a tremer. Era o fim do mundo. Alguns estilhaços de pedra ferem Cândido. Para Pangloss ia tudo pelo melhor, porque, se existia um vulcão em Lisboa, não podia estar noutra parte; porque não é possível as coisas não estarem onde estão. Mas deram por si estava um homem vestido de preto, familiar da santa Inquisição a interroga-los, perguntando se tinham dúvidas quanto ao pecado original.
            Após o terremoto ter destruído três quartos da cidade, para prevenir a sua ruína total foi decidido fazer um auto-de-fé, queimando-se a fogo lento algumas pessoas com grande cerimonial: isto seria necessário para impedir mais males deste género. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que este era um segredo infalível para a terra não voltar a tremer. Arranjaram então um biscainho e dois homens que ao comerem frango, puseram o toucinho de lado. Cândido então pensou: Se este é o melhor dos mundos, onde estarão os outros? Cândido foi açoitado ao som de música cerimonial, e Pangloss enforcado. Teve a sorte de encontrar uma Velha que o ajudou.
            A Velha, devota da Senhora da Atocha, de Santo António e Santiago de Compostela levou-os para um recanto e ordenou a Cândido que retirasse o véu a uma menina que ali estava, e ela era nada mais nada menos que Cunegundes. Ele perguntou se ela passara pelos suplícios que lhe contaram, e ela disse que sim, mas isso não fora suficiente para a matar, mas que mataram o pai e o irmão, e a mãe cortaram-na aos bocados. Ele quis saber a história dela, mas ela antes, quis que ele lhe contasse como viera ali parar.
            Depois, ele disse que estava na cama quando aprouve ao céu mandar os búlgaros assolar o seu castelo e matar o seu pai, o seu irmão, e cortar a mãe aos bocados. Um bruto violou-a, e o seu capitão, vendo aquela falta de respeito matou-o com ele ainda em cima dela. Levou-a como prisioneira e vendeu-a a um judeu chamado Dom Issacar, que traficava entre Holanda e Portugal. Este tivera a honra de assistir a este auto-de-fé em que foram queimados dois judeus e um biscainho que casara com a comadre. Cunegundes, amada do Inquisidor, assistira à cerimónia num lugar de honra, sendo-lhe servidos refrescos enquanto se cantava o Miserere. Fora ela que mandara a sua serva, a Velha, buscar os dois.
Dom Issacar ao chegar a casa ficou furioso ao vê-la acompanhada. Achava que já repartia a custo  os favores de Cunegundes com o inquisidor-mor, e vê-la ali com Cândido era mais uma afronta que não podia suportar, puxa de uma espada para o matar, mas Cândido foi mais lesto e matou-o primeiro. Chega o inquisidor, e sabendo que se ele gritasse era o seu fim e o de Cunegundes na fogueira, mata-o também. Havia três cavalos andaluzes na estrebaria, pertencendo aos senhores, e afastam-se da cidade montados neles.

Quinta Parte: Capítulos X, XI e XII, em Cádiz
            Cândido, Cunegundes e a Velha seguem para Cádis, mas em Badajoz um franciscano rouba a Cunegundes os diamantes que ela possuía. Querem ir para o Novo Mundo, mas agora não têm com quê. Então a Velha sugere que se venda um cavalo. Ali os ventos eram mais constantes, talvez aquele fosse o melhor dos universos possíveis. Está ali uma armada para ir para o Paraguai, e ele dá mostras de tal presteza militar que o general lhe dá o comando de uma companhia, é agora capitão.Tinha aprendido com os búlgaros.  Embarcam, felizes: Cândido, Cunegundes, a Velha, dois criados e dois cavalos.
            Durante a viagem a Velha conta a sua história. Ela era filha do Papa Urbano X e da princesa Palestrina. Criaram-na no meio do luxo e do fausto. Esteve para casar com o príncipe soberano de Massa-arrara. Mas a amante do seu futuro marido envenenou-o. A mãe e ela fogem numa galera, mas em pleno mar são aprisionadas por corsários e vendidas em Marrocos, passam a ser escravas. Os filhos do imperador envolveram-se em guerras e mataram-se uns aos outros. Ela ficou debaixo de um amontoado de mortos, e foi com dificuldade que saiu do meio deles.
            Na continuação da sua história diz que nasceu em Nápoles, onde cada ano se castram duas ou três mil crianças. Muitas morrem. E isto para que adquiram uma voz efeminada, a fim de mais tarde irem cantar para a princesa Palestrina, sua mãe. Foi feita prisioneira e violada várias vezes por dia, e a sua mãe esquartejada. Num período de fome os janízaros cortaram um pedaço das suas nádegas e comeram-na. Acabou por ser criada de Dom Issacar.

Sexta Parte: Capítulos XIII, XIV, XV e XVI, em Buenos Aires e Paraguai
            Chegaram a Buenos Aires e o capitão do navio levou-os a casa do governador, Dom Fernando D’ Ybaraa y Figueroa. Ele afeiçoou-se por Cunegundes, que lhe parecia de uma beleza impressionante. Era um homem poderoso, e Cândido não se atreveu a dizer que ela era sua mulher ou sua irmã, e ele apossou-se dela. A Velha aconselhou-a a aceitar a sua proposta de casamento, e, sabendo que a fuga de Cândido e Cunegundes de Lisboa já era aqui conhecida, aconselhou Cândido a fugir.
Cândido trouxera um criado mestiço de Cádiz, chamado Cacambo, que conhecia o Paraguai e já fora servente no colégio de Assunção, e, depois das últimas despedidas, é para lá que fogem. No Paraguai os frades eram donos de tudo e o povo de nada. Dividiram a terra em 30 províncias e faziam a guerra a Espanha e a Portugal. Os dois foram desarmados e levados até junto do comandante das forças ali estacionadas, que era afinal o irmão Cunegundes, agora padre jesuíta.
            O irmão de Cunegundes disse que o reverendo Superior da Ordem, padre Coust gostou dele e o mandou para Roma. Os soberanos paraguaios querias jesuítas alemães. Agora era coronel e padre. O barão e Cândido abraçaram-se. Este manifestou desejo de desposar a irmã. O que ele foi dizer! O barão irritou-se, com ela não, que tinha 72 costados de nobreza. Pega numa espada para o atacar. Cândido defendeu-se, acabando por o matar. Cacambo estava de sentinela e viu tudo, deu o barrete do morto a Cândido e fugiram montados a cavalo, antes que dessem pelo sucedido.
            Os dois perdem-se num bosque. Ouvem uns gritinhos e duas meninas com dois macacos. Cândido pesando que elas estavam a ser molestadas por eles pega na sua espingarda de dois canos e mata os macacos. Internam-se no bosque e adormecem, e quando acordam estão amarrados com cascas de árvore e cercados de 50 Orelhões, que eram os habitantes daquele país. Eles achavam que ele era um jesuíta, e olhavam para ele como olhos esfomeados. Cândido pensou logo que iam ser comido, ou cozido ou assado. Mas Cacambo que conhecia os Orelhões, disse que ele era dali natural, e que Cândido fugira por ter matado um jesuíta. Eles mandaram dois deputados investigar o caso, e, tendo sido confirmada esta confissão libertaram Cândido, e em vez de o comer cobriram-no de amabilidades. Afinal, a pura natureza é boa.


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Peru, cidade inca de Paititi, a que atribuem ser o Eldorado com que terá sonhado o explorador e conquistador castelhano, Francisco Pizarro. Porém, nas suas descrições o Eldorado de Voltaire mais parece ser Machu Picchu, que só sendo descoberto pelos europeus recentemente, já constaria das lendas incas desde há muito tempo.



Sétima Parte: Capítulos XVII e XVIII, no Eldorado
            Cândido quando saiu da fronteira dos Orelhões pôs em questão aquele hemisfério ser melhor que o do Norte, e pensou no caminho mais curto para regressar à Europa. Mas se regressasse ao seu país os búlgaros cortavam-lhe a garganta; se voltasse para Portugal era queimado, se ficassem ali corriam o risco de ser comido no espeto. Cacambo sugeriu que fossem para Caiena. Foram, mas a viagem era longa e os cavalos morreram de fadiga. Viram uma canoa vazia junto a um rio e embarcam nela, recomendando-se à Providência. Pararam na primeira aldeia que encontraram e encontraram crianças a jogar à malha com pedras de ouro e diamantes. Foram logo entrega-las ao precetor, que as voltou a deitar fora, como coisa pouco valiosa. Eles recolheram-nas. Continuaram a viagem e foram comer numa hospedaria, e ao fim quiseram pagar com o ouro que tinham apanhado do chão, ao que os hospedeiros se riram dizendo que não era costume receber ali como paga pedras das suas estradas, que as hospedarias estavam abertas para comodidade do comércio e eram pagas pelo governo. Eles ficaram siderados.
            Enfim, eles estavam no Eldorado. Cacambo mostrou a sua curiosidade e o hospedeiro encaminhou-o para um velho sábio do lugar. Ele disse que tinha 172 anos e que o pai, que fora escudeiro do rei. Mandou-os servir licores em copos de diamante. Coutou-lhe que aquela era a antiga pátria dos Incas, que a certa altura eles abandonaram para conquistar uma parte do mundo, e que acabaram nas mãos dos espanhóis. Só os espanhóis e um inglês chamado Raleigh chegaram a vir até ali há cem anos, mas que a sua terra é rodeada de rochedos inabordáveis e grandes precipícios, e só assim têm conseguido sobreviver à rapacidade das nações europeias, que desejavam com um furor inconcebível as pedras e as escórias da sua terra, e que, para as possuírem, maturariam até ao último dos homens (pág. 64). Passaram ali um mês, mas Cândido, cheio de saudade de Cunegundes quis partir, levando consigo doze carneiros carregados de ouro e pedras preciosas. O rei estava admirado por na Europa gostarem tanto da sua lama amarela. Foi então que rumaram para Caiena.

Oitava Parte: Capítulos XIX e XX, no Suriname
Cândido e Cacambo seguiram para Suriname, mas numa viagem de 100 dias, dois carneiros atolaram-se nos pântanos, dois carneiros morreram de fadiga, sete ou oito carneiros caíram de fome num deserto. Ao fim da viagem já só tinha dois carneiros. Ao aproximarem-se de um negro, a este faltava-lhe a perna esquerda e a mão direita. Foi o seu amo Vanderdendur que o tratou assim, e dava-lhe apenas uns calções como roupa, duas vezes por ano. Converteram-no ao cristianismo, dizendo-lhe que todos eram filhos de Adão, mas ele era mais infeliz que os cães, os macacos e papagaios. Cândido contrata um veleiro para o levar a Veneza sem escala, mas ele vendo-lhe fortuna faz chantagem com ele, embarca primeiro os carneiros e foge-lhe com eles.  Cândido é obrigado a partir para Bordéus num barco francês, já sem carneiros. Arranjou para companheiro o homem que declarasse ser o mais desgostoso da sua condição, e o mais infeliz da sua terra.
            Esse homem era o velho sábio Martin, que disse ser maniqueu, num tempo onde já não havia maniqueus, ou seja, homens que dividem o mundo em Bom e Mau, em Deus e o Diabo, que acham que o Espírito é intrinsecamente bom e a matéria intrinsecamente má. Deparam-se com dois navios que descarregam a sua artilharia um sobre o outro. Era um espanhol e um holandês, que se afundou com mais de uma centena de almas. Era assim que se tratavam os seres humanos uns aos outros. Entretanto, viu um carneiro a nadar à volta do seu navio, e recolheu-o. Durante quinze dias falaram. Aquele carneiro dava-lhe a esperança de reencontrar Cunegundes.

Nona Parte: Capítulo XXI e XXII, em França: (Bordéus e Paris)
            Estão a chegar à costa de França, Martin diz que os seus habitantes, metade são doidos, outros são manhosos, há vários geralmente afáveis e bastante estúpidos, ensaiam originalidade, mas a sua ocupação é o amor, a maledicência e o dizer disparates. Cândido pergunta-lhe se já viu Paris e ele diz que ela tem um pouco disto tudo. Sobre o fim para que o mundo foi criado diz que foi para nos enfurecer. Cacambo fora para Veneza localizar Cunegundes. Cândido pergunta-lhe se os homens sempre foram assim mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos salteadores, fracos, levianos, cobardes, invejosos, gulosos, bêbados, avaros, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochados, fanáticos, hipócritas e idiotas. Ele responde-lhe com a parábola do pombo e do gavião, que não mudaram os seus instintos, mas os homens podem, porque possuem o livre arbítrio.
            Cândido parou o tempo suficiente para vender uns diamantes. Entretanto adoeceu, e à força de remédios e sangrias a sua doença tornou-se séria. Depois da cura deixa-se levar pelo abade Périgord que o leva a uma peça de teatro. Discute-se sobre o teatro francês. Ele fica enfeitiçado com uma atriz, a menina Clairon, que tinha parecenças com Cunegundes. Dá-se a conhecer à marquesa Parolignac e falam de literatura. Entretanto, recebeu de Veneza uma carta de Cunegundes, a quem o governador de Buenos Aires roubara tudo. Ele estava decidido a ir ter com ela quando aparece o abade Périgord e a polícia, que o prende como estrangeiro suspeito. Para evitar expor-se à justiça, seguindo os conselhos de Martin, oferece três diamantes aos guardas que logo o soltaram. Ele pede ao polícia para o levar a Veneza, mas ele diz que o mais que pode fazer é levá-lo à Normandia. Ele aceitou, porque ao menos saía daquele inferno.

Décima Parte: Capítulos XXIII. Ida para Inglaterra (Portsmouth)
            Partem para Inglaterra num barco holandês. Martin diz que são tão loucos como os franceses, mas uma loucura de outra espécie. Andam em luta no Canadá por umas jeiras de neve. Aportaram a Portsmouth. Ali chagado vê quatro homens pôr-se em frente de um homem corpulento, e cada um mete-lhe três balas na cabeça. Ele fica intrigado. Era um almirante. Segundo lhe disseram foi por ele não ter feito por matar tanta gente quanto se desejava. Lá na terra era costume matar de vez em quando um almirante para encorajar os outros. Seguem para Veneza. Tudo ia bem, tudo corria pelo melhor que era possível.

Décima Primeira Parte: Capítulos XXIV, XXV e XXVI, em Veneza
            Chegou a Veneza e mandou procurar Cacambo, mas não o encontraram em lado nenhum. Martin não era consolador, para ele não havia virtude nem felicidade na Terra, só em Eldorado, onde ninguém podia ir. Cândido começou a pensar que Cunegundes já tivesse morrido e ficou em estado de prostração. Na Praça de S. Marcos encontrou Paquette, a criada dos Thunder-ten-tronckh, e ela conta-lhe o rosário das suas desventuras. O franciscano seu confessor seduziu-a e ela foi expulsa. Um médico salvou-a e passou a ser sua amante. Este, cansado da mulher deu-lhe um veneno que a matou e ela fugiu. Agora era prostituta em Veneza e vivia com frei Giroflée, que fora aos quinze anos obrigado a ir para um convento para o seu irmão mais velho ficar com toda a fortuna dos pais. Visitaram a cidade.
            Cândido e Martin conseguiram uma audiência com o senhor Prococurante, nobre veneziano. Ele era acompanhado por duas lindas jovens, que uma ou outra vez dormiam com ele. Viu ali alguns quadros de Rafael que ele tinha comprado por bom preço. Durante o jantar foi executado um concerto. Falaram de música, que ele considera difícil, de Virgílio e da Eneida, que o nobre veneziano desmereceu em relação a Tasso e Ariosto. Disse não gostar de Milton. Despedem-se e fazem mais uns apartes filosofais.
            Uma noite Cândido e Martin vão a uma hospedaria comer com seis estrangeiros e são surpreendidos com a presença de Cacambo. O nosso romântico quer ir logo ter com Cunegundes, mas ele disso o dissuade, dizendo que ela agora estava em Constantinopla. Bem, mas mesmo que fosse na China ia à procura dela. Despediu-se dos seus convidados ilustres, que quase invejou, mas eles não gabavam a sua sorte: O primeiro era Achmet II. Fora sultão, destronou o seu irmão e foi destronado pelo seu sobrinho, vindo passar o Carnaval a Veneza; o segundo era Ivan, destronado no berço e o seu pai e a sua mãe encarcerados; o terceiro era Carlos Eduardo, rei de Inglaterra, mas arrancaram o coração a 800 dos seus partidários e foi destronado; o quarto era o rei dos polacos, que a sorte da guerra privou dos seus direitos hereditários, vindo passar o Carnaval a Veneza; o quinto era também um rei dos polacos, que perdeu o seu reino duas vezes, o sexto era Teodoro, rei na Córsega. Cunhara moeda, mas agora só tinha um criado, e viera passar como todos os outros o Carnaval a Veneza. A Cândido só o preocupava agora ir ver Cunegundes.

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Constantinopla, a cidade onde Voltaire vai terminar o  seu livro


Décima Segunda Parte: Capítulos XVII, XVIII, XIX e XX, em Constantinopla
Cândido arranja uma galera que o leva ao sultão Achmet de Constantinopla. Mal entrado a bordo salta para o pescoço do seu velho criado. Vê Cacambo e pergunta-lhe por Cunegundes, quer saber se ela mantém a sua antiga beleza. Ele diz que ela agora é escrava de um antigo soberano asilado Ragotski, e lava gamelas. A Velha serve também naquela casa e ele próprio é escravo do rei destronado. Cândido sente-se infeliz com aquela cadeia de infelicidades. Desce até junto dos forçados remadores, que estão a ser chicoteados, e verifica que dois deles são o barão irmão de Cunegundes, e Pangloss. Cândido, depois dos primeiros desabafos resgata Pangloss, o mais profundo metafísico da Alemanha, e o barão, com um diamante, que valia mais que o resgate, mas que o dono da galera restituiria o troco na próxima paragem. Chamam dois judeus e Cândido vende mais diamantes e todos partem noutra galera à procura de Cunegundes.
Só então o barão explicou a razão de ainda estar ali vivo. Afinal o golpe de Cândido não o matara, ele fora curado na Missão. Nomearam-no então capelão do embaixador de França em Constantinopla. Um dia foi banhar-se com um jovem icoglan, e foram os dois apanhados nus. Ora ele não sabia que isso na Turquia era um crime, e foi condenado por um cadi a levar 100 bastonadas na planta dos pés e a ser condenado às galés. Quis saber como Pangloss ainda estava vivo e ele explicou-lhe que, naquele dia da sua condenação devia ser queimado, mas tinha chovido a cântaros em Lisboa e a lenha não ardia, então, à falta de melhor foi enforcado. Ora, o carrasco era perito em queimar, não em enforcar, e a corda estava molhada e enrodilhou-se – ele continuou a respirar. Quando lhe fizeram a incisão crucial ele deu um grito e o homem fugiu. Pouco depois tiraram-no dali e acharam que dissecar um herege era um perigo, porque ele tinha o diabo no corpo. Era melhor um padre exorciza-lo. Veio depois um cirurgião português que o curou. E depois arranjaram-lhe um emprego como lacaio de um cavaleiro de Malta. Entrou numa mesquita, estava lá uma linda devota com um ramo de flores, que deixou cair, e ele logo se apressou a pegar nele e dar-lho. Ora isto era um crime na Turquia. Levam-no a um juiz muçulmano que o condenou a levar 100 bastonadas na planta dos pés e a seguir para as galeras. Cândido perguntou-lhe então se ele continuava a afirmar que estávamos no melhor dos mundos, e ele asseverou esta ideia, porque não podia desdizer-se, tal como Leibniz.
            Enquanto Cândido, o barão, Pangloss, Martin e Cacambo discorriam sobre os acontecimentos contingentes e não contingentes deste universo, chegam a casa do príncipe da Transilvânia, e o barão empalideceu ao ver o rosto envelhecido e escuro de Cunegundes. Ela abraçou o irmão e Cândido, que logo resgatou a ela e à Velha. Havia na vizinhança uma quinta que Cândido foi aconselhado a comprar, até encontrarem outra melhor. Este, empolgado, comunicou a sua intenção ao barão de casar com a irmã. O que este achou inadmissível. Cunegundes lançou-se aos pés do irmão para ele autorizar, mas ele manteve-se inflexível. Cândido argumentou que depois de o ter salvo a ele e à irmã, aquilo era uma ingratidão. Mas ele era fanático, ela tinha 72 costados de nobreza, não casaria com ela enquanto ele fosse vivo. 
            Cândido já tinha perdido o desejo de casar com Cunegundes, mas a extrema impertinência do barão impeliu-o a realizar o casamento. Consultou os seus amigos e Pangloss disse que o barão não tinha direito algum sobre a sua irmã, à luz das leis do Império, e que ele podia casar com ela. Martin propôs mesmo que deitassem o barão ao mar, mas Cacambo considerou que era melhor devolvê-lo às galés. Depois disto tudo era esperado que Cândido tivesse uma vida mais feliz, mas não. Cunegundes estava cada vez mais velha e rabugenta, Cacambo andava estafado a cultivar a horta, Pangloss triste por não ser considerado nas universidades alemãs. Cândido, Pangloss e Martin discutiam frequentemente sobre metafísica e moral. Martin concluiu que o homem fora nado e criado para viver em inquietação, ou na letargia do aborrecimento. Cândido não concordava. Pangloss confessara que sempre sofrera horrivelmente, mas tendo afirmado uma vez que tudo ia às mil maravilhas não ia desdizer-se, embora não acreditasse nisso. Cândido falou com um dervixe turco que disse que o trabalho nos liberta de três calamidades: o aborrecimento, o vício e a necessidade. Veio para casa a pensar nisto. Pangloss afirmava que os sucessos estão encadeados uns nos outros, porque os bons levam aos maus e vice-versa. Cândido concordou, mas achou que cada um tinha de cultivar o ser jardim.

 
– UMA APRECIAÇÃO GERAL
Voltaire ensaia aqui um romance com respigos de ensaio. Cândido, o otimista, está escrito numa linguagem simples, e com uma sobriedade clássica, sem artifícios pretensiosos, possuindo a clareza da água cristalina. Trata de factos com grande rigor e seriedade, ainda que exagerados e inverosímeis, com a exaltação de quem estivesse a escrever uma odisseia. O livro está cheio de histórias pouco exemplares, frequentemente escabrosas e horríveis, que ele escreve com uma frieza brutal. Mas o leitor não se espere ver aqui um enredo racional, uma história ao sabor desta época: trata-se de uma sátira ao século XVIII, temos de contextualizar o livro.
            É notória a sua antipatia pela inquisição, pelos jesuítas, pelos franciscanos, e, de um modo geral pela Igreja de Roma. É contra o dogmatismo e a intolerância, o esclavagismo, a usura, é contra a superstição, fazendo quase uma volta à Terra para nos demonstrar que não estamos no melhor dos mundos. Do mesmo modo satiriza a nobreza e os seus pergaminhos, os seus ridículos costados de sangue azul, o fleumatismo e a intransigência alemã, mas também a superficialidade dos franceses, o mercantilismo dos ingleses, o fanatismo religioso dos portugueses, a avidez pelo ouro dos espanhóis, o esclavagismo dos holandeses, a usura dos judeus, as filosofias baratas que inundavam o mundo. Pode ter errado nalgumas observações que fez, mas, atenção, ele escreveu este livro em 1759!
Há uma faceta romântica exacerbada a acompanhar todo o romance, aquele amor irrefreável entre Cândido e Cunegundes, que resiste a todos os revezes, às maiores adversidades. É tão exagerada que acabamos por não a levar muito a sério. Ele descreve aquele amor de uma forma tão obsessiva que o torna caricatural. O seu propósito será o de satirizar a própria paixão., recolhendo mais um argumento em seu favor. Aquela paixão vai perdendo a sua chama, como se nem o amor fosse razão suficiente para um mundo mais feliz. Ao fim, Cândido casa com Cunegundes só para afrontar o fanatismo do cunhado, que é capaz de tudo para impedir aquele casamento, por ele não possuir os tais 72 costada de nobreza. E, casado com ela, tem de a suportar, velha e enrugada, cada vez mais rabugenta.
Na sua quixotesca viagem pelo mundo, ele encontra as pessoas mais perversas e estúpidas que se possa imaginar, pessoas violentas e avaras, que só veem ouro e diamantes à sua frente. No capítulo XXI, a páginas 79, ele faz uma longa descrição dos seus defeitos, que vimos atrás. Estamos perante um mundo cruel. Bem, à exceção do Eldorado, um sítio a que ninguém pode lá ir. Só ele o conseguiu por artes mágicas. Cândido foi expulso de casa dos seus protetores por amar Cunegundes, e nas suas deambulações vai encontrar a miséria, o horror, a violência, a avidez e a injustiça, contrariando a teoria do seu mestre Pangloss, que representa as ideias de Leibniz, em que crê devotamente.
Durante esta odisseia ele passa de pobre a rico e vice-versa, e da mesma contingência são vítimas a maioria das personagens do romance, assistindo aos maiores horrores, suportando as maiores violências e injustiças, sofrimentos físicos e morais, desgraças sobres desgraças, desventuras inimagináveis, suplícios que só mesmo os seres humanos seriam capazes de inventar no melhor dos mundos. Nenhuma parte da Terra escapa à sua crítica, a não ser o Eldorado, onde, como se disse, ninguém pode ir. Contudo, as suas denúncias são inspiradas em factos realmente passados – na história daquele tempo.
Os relatos de Voltaire, cheios de uma fantasia, que se diria surrealista, são escritos com uma convicção e seriedade tais que parecem já estar a antecipar-se ao Realismo Mágico, que grassou pela América do Sul e até pela Europa. Por outro lado, as suas histórias são por vezes fora do senso comum, absurdas, só possíveis de imaginar, que ele relata de um modo quase científico, satirizando o mundo que o rodeia, como que criando modelos com que mais tarde Franz Kafka se poderá inspirar para escrever a Metamorfose.
É curioso que muitas das suas das suas personagens morrem no decorrer do romance, da maneira mais desumana e horrenda, passando por tormentos só concebíveis por humanos, e ele, como que por artes divinatórias, as ressuscita mais à frente, explicando em pormenor os factos, demonstrado por A mais B, menos C, a dividir por Z, como afinal elas não morreram, para, num propósito que se diria sádico, as voltar a fazer sofrer suplícios ainda mais horrendos, como se não bastasse o que já tinham sofrido. Com este exagero ele também pretende ridicularizar o otimismo de Pangloss e de Cândido.
Ainda hoje os otimistas e pessimistas se chocam. Para alguns pessimistas, na Natureza predomina a lei da selva, da dominância do mais forte sobre o mais fraco, que se reproduz na sociedade. Para eles o ser humano é uma máquina, um invólucro de tecidos cavernosos, sangue e fezes, mais um condenado à morte, que nasceu a chorar e morre a chorarem por ele. Ainda não encontraram um sentido para a vida, que para eles foi concebida para os martirizar. Assim pensa Martin. E com que justiça a Providência os criou sem os ouvir, contra a sua vontade? Mesmo que este mundo fosse já um paraíso, será justo obrigá-los a viver? Obrigar um ser humano a ser feliz à força é um crime, pois o que é felicidade par uns, é infelicidade para outros.
E então a Terra não poderia ser mais hospitaleira? Ter um clima mais moderado, sem terremotos na Terra e tempestades no mar, poupada aos ciclones, aos tornados, aos tsunamis? E os próprios seres humanos não poderiam ser menos vulneráveis às doenças, à dor e ao sofrimento, e, intrinsecamente não poderiam ser mais bondosos, mais solidários, menos violentos, menos egoístas, e sobretudo mais inteligentes? Alguém que explique! Terramotos como o de Lisboa de 1755, não seriam erradicados da face da Terra num mundo benfazejo? Ele põe as coisas em questão, faz-nos refletir. Por que é que este mundo há de ser assim!...
Voltaite em certos aspetos parece preceder Schopenhauer e Nietzsche. É muito eloquente a demonstrar a voracidade humana, quando a páginas 64, um velho da corte de Eldorado traduz a realidade deste mundo: Mas como a nossa terra é rodeada de rochedos inabordáveis e fundos precipícios, temos conseguido permanecer ao abrigo da rapacidade das nações europeias, que desejam com furor inconcebível as pedras e as escórias da nossa terra, e que, para as possuírem matariam até ao último de nós. Ainda hoje é evidente esta verdade com a corrupção, a violência, o fanatismo, e a avidez que impregna o ser humano, onde com tudo se quer fazer dinheiro, não se olhando a meios. Isto, de um homem que morreu dizendo que morria a adorar a Deus, a amar os amigos e a não odiar os inimigos. Cândido é um excelente livro, escrito à luz do século XVIII, do Iluminismo, que continua atual e nos pode ainda fazer rir.

02//07/2019
Martz Inura




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