VERGÍLIO FERREIRA
Manhã Submersa
Bertrand Editora (1990) (218 p.)
O AUTOR
Vergílio
António Ferreira era natural de Melo, concelho de Gouveia. Nasceu em 28 de Janeiro de
1916 e faleceu em Lisboa em 1 de Março de 1996. Ainda jovem, os seus pais
emigraram para o Canadá. Fica então a viver com os irmãos mais novos. Aos doze
anos, depois de uma peregrinação a Lourdes, influenciado pela família entra para o seminário, permanecendo ali
até ao sexto ano. Consegue concluir o curso liceal no Liceu da Guarda e
frequentar a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde conclui o
Curso de Filologia Românica. Enveredou então pela carreira de professor de Português e Latim,
bastante movimentada e preenchida. Desde cedo se dedicou à poesia, da qual só publicou pequenos
excertos, impondo-se como romancista. Escrevia febrilmente. A sua vida e obra,
de que vamos tecer só umas breves considerações, dada a sua riqueza e
complexidade, são bem dignas de um aturado estudo, que não cabe nestas páginas. Entre outros galardões, ganhou numerosos prémios literários, nomeadamente o Prémio Femina (França) em 1990, com Manhã Submersa.
A
OBRA
A obra de Vergílio Ferreira compreende
mais de duas dezenas de romances, dos quais se poderia destacar Manhã Submersa, Aparição, Cântico Final, Nítido Nulo, Para Sempre, Uma Explanada
sobre o Mar, Em Nome da Terra, os contos,
um volumoso diário, Conta Corrente, e vários ensaios com muito interesse.
A
sua produção literária estende-se fundamentalmente por duas correntes: pelo
Neo-realismo, já analisado atrás, em que, recorrendo à sua experiência pôde
tratar de temas que viveu intensamente, como Manhã Submersa (1954), o seu percurso de seminarista, e Nítido Nulo (1971), a sua vivência ao lado dos
irmãos, quando os pais emigraram; e, influenciado por André Malraux e Jean-Paul Sartre, pelo Existencialismo, com o romance Mudança (1949), (em que, grosso modo, o autor se aproveita de o
romance para introduzir nele um ensaio filosófico), no seu caso, chegar a um humanismo que redima o ser humano, como em Aparição (1959),
em que problematiza os limites da condição humana, ou em Alegria Breve (1965), Uma Explanada sobre o Mar (1986) ou Em Nome da Terra (1990), em que trata de
transitoriedade e provação da vida.
MANHÃ SUBMERSA
a. Breve
sinopse do livro
O livro está dividido em capítulos,
ao todo 21, e, embora não tenham títulos, estes são facilmente detectáveis.
Assim, para aliciar à sua leitura, vejamos a designação que encontrei para eles:
Viagem para o seminário. Primeiros dias. Integração na vida de seminarista.
Rejeição ao internato e carta para casa. Chamada ao reitor. Um dia como os
outros. O jogo das partidas. A esperança das férias. As férias na aldeia.
Regresso às aulas no seminário. A fuga do Gama. Entrada na puberdade. Uma
revista com uma mulher quase nua. Outras férias grandes. Castigo de palmatória.
Rejeição ao seminário durante as férias. Mais um ano escolar. Epidemia de
gripe. Funeral de um seminarista. Festa na aldeia e deflagração de uma bomba na
mão direita. Desistência do seminário.
b. Instituições
totalitárias.
Dado que o romance decorre numa instituição totalitária, tomada aqui no
seu sentido sociológico, convém precisar o conceito. São instituições deste
tipo, as que envolvem o internato de pessoas, que ficam sujeitas a um
regulamento interno, obedecem a uma autoridade tutelar, que prevê forte
vigilância, controlo físico, comportamental e moral, e punições ou castigos
mais ou menos severos para os seus prevaricadores. Normalmente usavam uma
vestimenta uniforme ou farda.
São instituições deste tipo, com
regime mais ou menos apertado: prisões, reformatórios, hospitais psiquiátricos,
seminários, colégios internos, institutos de reeducação, asilos e quartéis
militares, entre outras. Nas ditaduras estas instituições costumavam ter um
regime muito fechado, fortemente severo.
c. Linguagem
O
livro, de cariz autobiográfico, integra-se na corrente neo-realista, e está
escrito com uma linguagem elegante, límpida, recorrendo frequentemente a imagens
que lhe dão uma frescura e originalidade surpreendentes. O autor frequentemente
atribui qualidades materiais a coisas materiais e vice-versa, qualifica o
espaço com dimensões do tempo e reciprocamente, dá às coisas características
dos animais, e destes às pessoas, dá valor monetário ao que não é vendável,
confunde sugestivamente o que é gasoso com o que é líquido, agiganta as
pequenas distâncias, enfim, procura tirar a adjectivação da vulgaridade, para a
tornar provocante, mais expressiva. As coisas são vistas por dentro e por de
dentro. Cria frases por vezes longas e complexas, tradutores de um elevado
estado de tristeza e incompreensão. Possui uma narrativa singular, enriquecedora,
bem dentro da literatura.
d. A
exploração do tema
Reporta-se,
como já foi sugerido, a um seminário católico no período do Estado Novo,
retratando a vida dos seminaristas oriundos de famílias pobres ou remediadas, que,
não tendo possibilidades de mandar os filhos estudar, para aí os empurravam,
com a esperanças de virem a ser padres e fugirem à vida de miséria que os
esperava, ou, na pior das hipóteses, fazerem alguns anos do ensino liceal.
António Borralho, o nosso herói, não sente vocação para padre, mas para aí é compelido
pela mãe, como os outros. Esta sente-se privilegiada só pela ideia de vir a ter
um filho padre, garantidamente com um futuro melhor, para além de ficar com menos
uma boca em casa para comer.
Faça-se
aqui um alerta para quem estudar estes assuntos com rigor científico. A versão
de Vergílio Ferreira, embora pessoal é autêntica e profunda, representa a sua visão da realidade. É sabido que houve neste período seminaristas que aceitaram bem
esta disciplina dos seminários e deram bons padres, e, muitos dos que saíram por falta de
vocação, conseguiram integrar-se no sistema social e terem daquele período boas recordações. Também
quanto à fé, os casos estão divididos: há os que continuaram a acreditar em
Deus; os que passaram a agnósticos; e os que se tornaram ateus. Há de tudo,
este assunto era digno de uma tese de mestrado. O livro é literariamente muito rico, tratando com veemência um tipo de internamento juvenil, característico
daquela época, indubitavelmente opressiva, que convém fixar e estudar.
A
vida nos seminários antes de 1974 era muito controlada. Os seminaristas vestiam
fatos pretos, comiam em refeitórios colectivos, dormiam em camaratas, viviam sob
a orientação dos perfeitos, sujeitos à autoridade do reitor e a um regime
restritivo, denominado regulamento, que previa um apertado controle físico,
moral e espiritual. Estavam sitiados por horizontes infinitos de pecado, com horrores
de infernos a cercá-los para sempre. A opressão era notória: tinham os passos
contabilizados, o discurso analisado e censurado, até a altura e o tom de voz eram
aferidos. Os internados não podiam estar demasiado ligados a alguém ou excessivamente
voltados para si próprios. Deviam vestir as calças debaixo das mantas para não
se ver a nudez das pernas, usar roupas largas, não ler livros ou revistas
profanas, e muito menos pecaminosas. O correio era aberto pelos superiores, que
o censuravam. Havia castigos corporais.
Os alunos deviam ser aplicados, e, mais que obedientes –, submissos. Eram tão controlados moral e espiritualmente que chegavam a ter medo dos seus próprios pensamentos, que não podiam pisar terrenos proibidos, sob pena de se sentirem a resvalar para o fundo dos infernos. A opressão era tão exaltante que os assustava nas súbitas sombras surgidas nas paredes dos edifícios, os ameaçava na luz difusa das portas e janelas, no ar que pairava nos sombrios aposentos, inventando a cada momento terrores desconhecidos. O ambiente era propício a criar-se uma rede de “protegidos” e “protectores”, síndroma da falta de carinho, que nalguns casos tinha conotação sexual. No livro este tema é apenas aflorado. Sentimentos de impotências, solidão e medos infindáveis povoavam as suas almas juvenis. Mesmo nas férias sentiam-se estigmatizados, alvo das críticas das pessoas, que os designavam de padrecos. Porém, sair do seminário não era uma decisão fácil para alguns, exigia deles um gesto heróico, que a maioria não ousava, representava para si uma derrota, falharam na opção que tomaram, iam enfrentar a crítica da família e da sociedade, iam abandonar os estudos que os pais, a viver pobremente, dificilmente teriam possibilidades de continuar.
Os alunos deviam ser aplicados, e, mais que obedientes –, submissos. Eram tão controlados moral e espiritualmente que chegavam a ter medo dos seus próprios pensamentos, que não podiam pisar terrenos proibidos, sob pena de se sentirem a resvalar para o fundo dos infernos. A opressão era tão exaltante que os assustava nas súbitas sombras surgidas nas paredes dos edifícios, os ameaçava na luz difusa das portas e janelas, no ar que pairava nos sombrios aposentos, inventando a cada momento terrores desconhecidos. O ambiente era propício a criar-se uma rede de “protegidos” e “protectores”, síndroma da falta de carinho, que nalguns casos tinha conotação sexual. No livro este tema é apenas aflorado. Sentimentos de impotências, solidão e medos infindáveis povoavam as suas almas juvenis. Mesmo nas férias sentiam-se estigmatizados, alvo das críticas das pessoas, que os designavam de padrecos. Porém, sair do seminário não era uma decisão fácil para alguns, exigia deles um gesto heróico, que a maioria não ousava, representava para si uma derrota, falharam na opção que tomaram, iam enfrentar a crítica da família e da sociedade, iam abandonar os estudos que os pais, a viver pobremente, dificilmente teriam possibilidades de continuar.
d. Conclusão
Este livro retrata a vida no seminário nos princípios de século XX sob o ponto de vista de quem rejeitou o sistema, e, na verdadeira asserção do termo – de uma forma quase fotográfica –, tão realista que bem pode ser
objecto de estudos sociológicos a quem a ele recorra para estudar as instituições totalitárias do período
salazarista. Estas instituições procuravam controlar os internados desde o rumo
dos seus passos, à textura das suas palavras, com pretensões a apossarem-se do seu
próprio pensamento. Queriam moldar o corpo e a alma dos internados à sua imagem,
rodeados de proibições, castigos e condenações deste e do outro mundo, e até à
eternidade.
Trata-se
de uma obra-prima do neo-realismo português, autobiográfica, testemunhal, bem
sentida na carne e no espírito, usando um Português quase corrente, incrustado
de imagens de rara beleza, trazendo à nossa presença uma realidade bem viva, diria
que em alto-relevo. A quem viveu estas experiências impressiona o
realismo das suas descrições, às quais dá uma tonalidade dramática. Para compreender todo o alcance e profundidade da
obra de Virgílio Ferreira, teremos que ler as suas obras de teor
existencialista, em que o autor tem pretensões mais ousadas, mas o livro Manhã Submersa, pela forma veemente como
está escrito e pela realidade que trata, tão à flor da pele, merece uma leitura
obrigatória.
26.10.2013
Martz Inura
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