GONÇALO M. TAVARES
Aprender a Rezar na
Era a Técnica
Editorial Caminho
O
HOMEM
Gonçalo
Manuel de Albuquerque Tavares nasceu em Agosto de 1970 na cidade de Luanda,
Angola. Tem nacionalidade portuguesa e é professor universitário. No campo
literário é poeta, romancista, ensaísta e dramaturgo. Recebeu muitos prémios
literários, as suas criações são ousadas e originais, não deixam ninguém indiferente.
Dos seus numerosos prémios vamos só citar o Prémio Revelação de Poesia da
Associação Portuguesa de Autores com Investigações
em 1999, o Prémio José Saramago em 2005 com o romance Jerusalém, e o Prémio para o Melhor Livro Estrangeiro em França em
2010, com Aprender a Rezar na Era da
Técnica.
A
OBRA
A obra de Gonçalo M. Tavares, sendo
o autor ainda jovem, é já bastante volumosa e multifacetada. Vai, como se viu
atrás, da poesia ao romance, do teatro ao ensaio, revestindo-se de grande
originalidade e arrojo, tratando de temas questionáveis com ingredientes
cénicos aliciantes que a convidam a ser estudada, e mesmo adaptada ao cinema, ao
teatro e até à ópera. Citemos algumas das suas obras fundamentais, apenas um
resumo delas, na esperança de que os seus melhores livros ainda estejam para
sair:
- Investigações
(poesia) (1999),
- Um
Homem: Klaus Klump (2003),
- A
Máquina de Joseph Walser, (2004),
- Jerusalém
(2004),
- Aprender
a Rezar na Era da Técnica (2007).
O
ROMANCE Aprender a Rezar na Era da
Técnica
Breve
Súmula
A
primeira parte – Força. Trata da afirmação de Lenz Buchmann, um médico
cirurgião, filho de militar, apologista da lei do mais forte (Herbert Spencer), determinado a
impor-se aos demais. A sua juventude foi marcada pela violência, tornando-se uma
pessoa fria e calculista, insensível perante a fraqueza humana.
É um médico da Era da Técnica, que se pretende eficiente e frio, moralmente
indiferente ao doente, capaz de odiar a natureza – a doença e à morte de seu
irmão Albert Buchmann não o impressionam. A partir de determinada altura, tendo
atingido o limite de competência na sua vida profissional e conseguido a
estabilidade económica vai tentar a política e ingressar num partido, tornando-se
o vice de Kestner. Ele não se contenta em estender o seu poder a um só homem, ele
quer estendê-lo a toda a sociedade. Na sua nova função vai encontrar-se com
Julia Liegnitz e Gustave Lignitz, curiosamente filhos de um soldado a quem o
pai matara durante a guerra. É um homem diabólico – é ler como ele mata a
mulher, Maria Buchmann e o vagabundo Rafa. Não olha a meios para atingir os fins,
ao ponto de fazer explodir uma estátua num teatro, para, com esse sucesso
explorado em seu favor, ganhar as eleições. Deste acidente morreu um actor
secundário, mas nada que ele não resolva com um funeral estrondoso,
que mais servirá para lhe granjear visibilidade, ao evidenciar a sua eficiência
e altruísmo. Porém, a sua vitória estava inacabada, ele era apenas vice-presidente,
mas nada que não estivesse já previsto na sua prodigiosa inteligência. Ele iria
fazer com que o seu amigo Kestner morresse vítima de um atentado à bomba, no
qual mais uma vez se iria evidenciar pela sua aparente compaixão, ao fazer discursos
inflamados de gratidão e homenagem à sua vítima, que o iriam catapultar à presidência, se a Natureza aqui não o
tivesse contrariado.
Segunda
Parte – Doença. Contra o que estava nas suas perspectivas, Lenz Buchmann
começa a sentir dores de cabeça, a ter menos forças, a perder qualidades
íntimas (cognitivas). Todavia, apesar de doente o ímpeto da sua natureza perversa não
abranda, mesmo assim ele manda apagar o nome do irmão no brasão da família para
ficar como filho único perante a posteridade. Chama Julia Liegnitz e Gustave Liegnitz
para sua casa a fim de o apoiarem, e vai visitar o túmulo do pai para se
fortalecer de passado. Apesar de acabado fisicamente o seu peso social
mantém-se inalterável, ele ainda é o vice-presidente, o seu lugar ainda não foi
ocupado. Quando os homens do lixo fazem barulho à sua porta ele ainda os
consegue silenciar recorrendo às suas influências. Só quando o seu estado de
saúde se agrava e o seu mal se torna irreversível é que o
visitam, à excepção de Kestner, que tem mais que fazer. Qualquer mudança em
casa o incomoda. Acamado, as suas forças enfraquecem, a sua memória vai-se
apagando dia-a-dia, fazendo dele um morto-vivo. O médico vem visitá-lo, mas os
exames que faz são apenas uma encenação para garantir os honorários e
tranquilizar a sua consciência, pois já não é possível salvá-lo.
Terceira
Parte – Morte. Por mais ousado e forte que seja um homem, a morte um dia chegará,
fazendo-o baquear como a mais fragilizada criatura, de nada lhe valerá o
dinheiro, a influência social e o poder político que tenha acumulado. É então
que, a exemplo do pai, para quem a morte não nos devia vencer, que decide
suicidar-se. Pede ajuda a Julia Liegnitz, que achou justa a pretensão, contudo,
não teve coragem para a implementar, encarregando para esse efeito o irmão,
Gustave Liegnitz. Este vai buscar a arma – é só colocá-la na mão de Lenz
Buchmann para ele premir o gatilho e já está. Mas eis que a vida tem coisas
curiosas, Lenz Buchmann já não tem forças para premir o gatilho, e vai ter que morrer
miseravelmente como o mais comum dos mortais. Para maior suplício chamam um
padre para lhe dar a extrema-unção, que ele abomina, tentando cuspir-lhe. A Igreja para ele era apenas tolerada enquanto lhe fosse útil para apaziguar o
mundo. Por fim o homem vai ter mesmo que morrer para o livro acabar. Muitos
dizem que os seres humanos antes de morrer passam por uma experiência post mortem em que são mergulhados num
túnel de luz, no qual ouvem vozes celestiais amigáveis e a presença
compreensiva de uma divindade. Bem, aqui o nosso herói da Era da Técnica não testemunha nada disso, distingue apenas o som e a luz de um canal de televisão que está a tentar
apaziguá-lo.
Estilo
do Livro
O romance transporta-nos para um
mundo surreal, ao estilo de Kafka. As personagens ainda que não
sendo incoerentes têm um comportamento a rondar o absurdo, criando-nos um
universo assustador. O livro está dividido em três partes, que se estendem a 58
capítulos, e um número ainda maior de sub-capítulos. Há capítulos que não dão
para encher uma página, mas julgados necessários para traduzir uma ideia que o
autor pretenda materializar, como se estivesse imbuído daquele prazer
de retratar todos os retalhos da realidade, como na música Modest Mussorgsky em Quadros de um Exposição. É uma escrita sóbria,
precisa, sem grandes floreados, natural mas sombria, que atinge quase sem
darmos por ela. O seu objectivo não será o de evidenciar os seus dotes
estilísticos, mas o de explicar a filosofia de um homem de um modo científico a
pessoas que não tenham grande formação escolar. A obra não tem um enredo forte,
centra-se em Lenz Buchmann, introduzindo pequenas histórias de permeio, que,
podendo retirar alguma emoção expectante ao livro, servirão para melhor retratar o
mundo que o autor quer construir, e ali buscar o seu leitmotiv.
Uma
Apreciação Geral
Aprender
a Rezar na Era da Técnica fala de um tal Lenz Buchmann transporta-nos para
um universo quase absurdo, kafkiano, onde a moral foi distorcida no sentido de
predominar a lei do mais forte, onde o indivíduo vive obcecado pela luta de
sobrevivência, dando razão às teorias de Darwin e Herbert Spencer, aqui interpretadas no seu pior
sentido como factor determinante da evolução da humanidade. A narrativa,
construindo uma sociedade que se rege por leis diferentes das actuais, baseada
na violência e no egocentrismo, concentra em si uma racionalidade tão estranha,
que a sua linguagem é por vezes metafórica, podendo-nos obrigar a mais do que
uma leitura. O ser humano aqui representado é egoísta, desprovido de compaixão,
encarando o seu cérebro como arma que sirva para esmagar quem se lhe oponha com
o fim de obter o domínio do mundo.
Ao fim de lermos alguns capítulos deste
livro facilmente nos damos conta que Lenz Buchmann pretende afirmar o seu Ego
de modo exponencial, tentando subordinar o mundo todo à sua vontade. Neste
universo não existe um Deus supremo, e a Igreja é só tolerada se não prejudicar
o sistema. Na Natureza não existe um desígnio superior, mas apenas uma energia
inexorável, que se traduz na sobrevivência dos mais aptos – a moral está reduzida
a uma técnica. Para ele, ao indivíduo é determinado por três factores
principais: o factor económico, ou seja, a aquisição da riqueza; o factor
social, com o prestígio, o reconhecimento e a visibilidade social engrandecidos;
e ainda o factor político, com a obtenção do poder da coisa pública, de modo a
anular o pensamento dos outros, que passarão a pensar como ele próprio – é o totalitarismo
no seu mais elevado grau de refinamento. Em conclusão: Ele aspira a concentrar todo o mundo em
si mesmo, aspira a tornar-se Deus.
Lentz Buchmann é, pois, uma mente
perversa que não olha a meios para obter os fins, move-o interesses práticos,
imediatos, que engrandeçam a todo o custo o seu Ego. A vida para ele é a luta
pela predominância sem hesitações, de um
lado se perde de outro se ganha. O homem representado nele será um predador
primário, grotesco, cruel, enfim, desumano. Como cirurgião ele interessa-se mais pelas
células do que pelo doente, na política pensa mais no poder que exerce que na
sociedade. Estamos aqui perante um mundo assustador: violento, egoísta, materialista e ateu.
Um autor nunca poderá fazer um retrato completo e fiel e do mundo, e aqui
Gonçalo M. Tavares dá-nos a conhecer algumas das suas arestas mais negativas,
que não ignorando outras que haja positivas, poderão servir para reflectirmos sobre elas.
Mas não se julgue que o autor, ainda
que tenha do mundo uma visão pessimista, se cole à filosofia de Lenz Buchmann,
na Segunda Parte deste romance, em que trata da doença ele retrata-nos de modo
eloquente como afinal a moral daquele, valorizada pela competência técnica, tinha
falhado. Buchmann quis pertencer aos fortes, àqueles que não se deixavam morrer,
como seu pai que se suicidou, mas ele quando decidiu imitá-lo já não o
conseguiu, os seus dedos fragilizados já não lhe obedeceram. É um herói
falhado, a Natureza cilindrou os seus ideais de um modo implacável. Ele agora
tem um cancro, ou o cancro tem-no a ele.
Perdeu o vigor físico, está a perder a memória, vai morrer de um modo miserável
sem técnica que lhe valha.
Apesar de tratar de um tema nem
sempre agradável, de retratar o lado menos bom da espécie humana, Aprender a Rezar na Era da Técnica está
escrito com uma grande imagética, faz-nos reflectir sobre a realidade actual. Transporta-nos para um mundo imaginário, surreal, mas tão bem construído que não
demoramos a quase acreditar nele, dada a coerência e força como está pensado e escrito.
Depois de o lermos podemo-nos até sentir angustiados, enojados, tal a
maleficência que ali fomos encontrar, mas isto que sirva para compreender o que
de menos bom grassa à nossa volta, por vezes desolador, que podemos mudar, ainda que de modo ínfimo, e a começar por nós próprios. Gonçalo
M. Tavares demonstra aqui ter uma mente prodigiosa, é original,
contra-cultural, provocador. Não foi sem razões que este livro recebeu o Prémio
para o Melhor Livro Estrangeiro em França em 2010. Este é um romance
importante, que não nos dispensamos de ter na nossa biblioteca.
Martz Inura
15/11/2016
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