LOUIS-FERDINAND CÉLINE





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LOUIS-FERDINAND CÉLINE
MORTE A CRÉDITO
Assírio & Alvim
Tradução de Luiza Neto Jorge

O HOMEM
            Louis-Ferdinand Céline nasceu em 1894 no seio de uma família da pequena burguesia, nos subúrbios de Paris. Terminada a instrução básica não prossegue os estudos, fica por casa a ajudar a mãe no comércio. Em 1912 é incorporado no exército francês. Toma parte na Primeira Grande Guerra, conflito em que é ferido e condecorado. Regressa à vida civil. Mandam-no então para Londres. Casa e descasa. Não pára muito tempo no mesmo lugar, em 1916 vemo-lo numa empresa de exploração de madeiras nos Camarões, mas não por muito tempo, no ano seguinte regressa à França, a Rennes, para trabalhar na Fundação Rockefeller. Enquanto recolhe dados sobre a tuberculose prossegue o ensino secundário. Só em 1922 conseguiu concluir a sua licenciatura em medicina. Em 1925 está a trabalhar e a viajar sob a égide da Liga das Nações. Possui um temperamento irrequieto, leva uma vida de aventureiro, mais ou menos errante. Os panfletos políticos, que começa a publicar ainda antes da 2ª Guerra Mundial, denunciam-no como anti-semita. Há até quem o indicie de colaborar com o nazismo. Assim, antes do fim da guerra vê-se obrigado a fugir para a Alemanha, e, depois desta, para a Dinamarca. Por estas acusações chega a ser julgado à revelia e a ser condenado a um ano de prisão. Mesmo acabando por ser amnistiado, estas posições prejudicaram a sua aceitação como literato, tornando-o um escritor maldito.


A OBRA
            Escreveu quase uma vintena de romances, dos quais se destaca: Viagem ao Fim da Noite, a sua obra mais reconhecida, Morte a Crédito e De Castelo em Castelo, traduzidos em português, e ainda panfletos, diversos textos e muitas cartas.



O ROMANCE “MORTE A CRÉDITO”

            Breve Sinopse
            Na clínica onde trabalha, o doutor Ferdinand está farto de ouvir reflexões menos lisonjeiras às suas histórias, mas não tem emenda, e num daqueles dias, depois das consultas diárias sai com o seu colega Gustin, e dali a pouco, nesse mesmo estilo, está a contar a história da sua infância e adolescência. A sua família ainda que remediada é pouco estruturada. A mãe, embora terna é convulsiva e absorvente, e o pai, desiludido com as suas repetidas tropelias, é afastado e severo: não confia muito nele, não lhe augura grande futuro. Vai falar, portanto, desse jovem Ferdinand. Trata-se de um puto rebelde, um tanto selvagem, pouco dado à disciplina, difícil de educar. Vivendo num meio já por si problemático, é de difícil integração, contudo, com as suas habilidades lá vai tentando safar-se, ainda que um pouco desiludido da vida e de si mesmo, sem grande amor-próprio.
            O pai é empregado de escritório e a mãe vendedora de bugigangas, vivem com dificuldades. Ao sair da escola é iniciado na vida comercial, mas não vai dar-se bem, em casa é um empecilho, e fora dela está sempre a meter-se em encrencas. Não tem queda para a escola e está a falhar no trabalho. Os pais querem-lhe arranjar um modo de vida, fazer dele à força um bom comerciante, ou pelo menos um diligente caixeiro, e vão empregá-lo nos Armazéns Berlope, na esperança que eles ali o consigam domar, contudo, ainda não será desta vez que ele não se ia meter em problemas. É um estouvado, não tem tino, e é mandado embora por indecente e má figura. Sem saberem mais o que fazer, com a ajuda de um tio enviam-no para a Inglaterra, para aprender uma língua estrangeira, e nem ali é bem sucedido, não faz mesmo tenção de aprender muito, está a interessar-se pelo sexo oposto e quer divertir-se, ultrapassar aquele tempo ínvio. Saído da Inglaterra não regressa a casa dos pais, não tem objectivos, vai-se empregar numa empresa de expedientes pouco claros, até ter que sair dali sem saber onde cair morto. É mais uma vez o tio que o ajuda. 

            Meio social onde a acção decorre
            O livro incide sobre um meio social degradado, com elevados índices de anomia, está focado nos estratos mais baixos da sociedade, onde grassa a miséria, prolifera a doença e se disputa o pão palmo a palmo, numa luta desenfreada pela sobrevivência, cheia de dificuldades e carências, onde, como diz o autor, as pessoas são acossada pela angústia da côdea.
            Fazendo o reverso da cidade de Paris, que esperaríamos cidade luz, a irradiar glória e grandeza, Céline leva-nos a uma França mergulhada na miséria, cheia de vícios e injustiças. Tanta é adversidade e penúria que se enfrenta, que a vida que as pessoas consigam viver, não a podendo pagar, é mais a “Morte a Crédito” que eles vão conseguindo adiar.

            Linguagem
            As personagens usam a linguagem do seu dia-a-dia, o autor escreve tal qual se fala, expressando por vezes alguns dos seus pensamentos mais grosseiros, mais hediondos, mas que são o retrato da sociedade. As personagens são mostradas a nu, podemos-lhes entrar na alma, o autor revela-as sem qualquer pudor, sem qualquer constrangimento, e elas, de tão descabeladas e sórdidas, chegam a tornar-se irónicas. Usa portanto a linguagem falada, vulgar, ao mesmo tempo que a polvilha de extrapolações eruditas, por vezes científicas.
            O seu texto está carregado de termos esquisitos, alguns quase enterrados no cemitério da história. Caguinchice é insignificância, gagá é paranóico, marmanjo é malandro, pança é barriga, mariolices é pieguices, matarruano é grosseiro, caqueirada é miudezas, bagunça é confusão, cagaço é medo, cu é ânus, pilantras é pobretana, paparoca é comida, cheta é dinheiro, topar é ver, chonar é descansar, fanar é roubar, pirar é fugir, emborcar é beber, puto é criança, canetas são pernas, pichota é pénis, baiuca é casebre – e assim por diante.
            Por outro lado recorre a expressões idiomáticas castiças, próprias do calão, que estamos fartos de ouvir na linguagem falada, mas que os escritores se coíbem de usar, como: “estou-me nas tintas”, “estar na merda”, “co’ catano!”, “do pé para a mão”, “a correr na mecha”, “andar numa fona”, “partir a moca a rir-se”, “ir num pulo”, “era um ver-se-te-avias”, “torcer o nariz”, “andar numa lufa-lufa”, “estar à rasca”, “com os bofes na boca”, “a foder o juízo” “não me podia ver nem pintado”, “dar à língua” “perder a tineta”, “dar à perna”, “pilhar uns morfes” “bater à punheta”, “coisas a dar com um pau”, “na pinocada”, “dar a volta ao miolo” – expressões deste tipo.
            É hábil a descrever os factos da vida real, que a maioria dos escritores encobrem, se recusam a narrar, dando-nos uma versão despudorada do mundo. A vida sexual das personagens, de que ele não se furta de falar, é narrada sem censuras, indo até ao mais recôndito das suas almas, ainda que constranja alguns leitores. Nesta matéria recorre por vezes a uma narrativa quase epopeica para descrever factos algo melindrosos, de modo que possam ser lidos sem alarmes por crianças, que não lhes compreenderão o alcance.

            Estilo
            O seu estilo é quase desprovido de regras, solto, por vezes anárquico. É de salientar o seu grande poder de observação, que vai desde o captar os pequenos tiques das personagens, as suas mal disfarçadas manhas, até ao seu aspecto físico, os pormenores das ruas, das paisagens naturais, a descrição minuciosa dos diversos misteres que desempenham, mostrando estar bem dentro do assunto, não fosse este romance autobiográfico. Dizem que o seu texto é musical, mas o facto não perceptível na tradução.
            Atrai a acção novelesca para a vizinhança do leitor, encurtando espaço entre o passado e o presente, levando a narração à toada de relato testemunhal, imediato, o que cria evidência aos factos e torna o enredo mais vivo. Algumas das suas páginas são do estilo de crónica jornalística: factuais, pessoais, familiares ao leitor. Os acontecimentos aparecerem junto dos nossos olhos, como se tudo tivesse acabado de ocorrer.
      
      Conclusão
            Nem tudo será perfeito neste romance, a sua introdução é titubeante, às vezes confusa, e o mesmo se dirá da parte final, com uma narração que nos parece abreviada. O dia-a-dia de Ferdinand no colégio inglês estará coarctado de alguma realidade, e o seu desinteresse pela língua inglesa parece-nos forçado. Mesmo não querendo, em tanto tempo ele havia de aprender qualquer coisa, como aliás, o corrobora a experiência pessoal do autor.
            Mas se estes são alguns dos aspectos menos conseguidos, temos de reconhecer que o romance é impressivo e forte, verdadeiro: nós acreditamos no que estamos a ler, ainda que as matérias nem sempre sejam humanamente agradáveis. Recupera sem restrições a linguagem falada para o romance. Louis-Fedinand Céline não é um impostor, um mistificador da vida, não se refugia em artificialismo de escritor burguês, dá da vida uma visão quase fotográfica, sem filtros, sem falsas rendas, impiedosa mas real, neste aspecto foi original, revolucionário, e nisto reside muita da sua grandeza.

13 de Março de 2015
Martz Inura

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