THOMAS MANN





THOMAS MANN
A Montanha Mágica
Tradução de Gilda Lopes Encarnação
Dom Quixote (2009) (832 p.)







     Este livro de 832 páginas, sei lá se vou ter tempo ou disposição para o reler, interroguei-me ao voltar a pegar nele. O tempo agora corre mais depressa, não espera por nós, que o queremos devorar todo, em vão, porque nos foge por entre os dedos, é mais volátil que a atmosfera terrestre, mais veloz que o pensamento, que não o consegue agarrar no presente. Um momento em que nos detenhamos, torna-se logo passado. Tinha uma vaga ideia que o autor ao abordar o tempo o distorcia, talvez ele tivesse soluções para o meu problema. Bem, para facilitar as coisas, resolvi ler este volume ainda mais devagar que habitualmente, para não lhe sentir o peso. Já ando nisto há mais de um mês. E não é que chegado ao fim do livro tive pena que o autor estivesse a resumir a história, apressando a narrativa, como para se ver livre dela, como a renunciar prolongá-la até onde ela podia ter chegado: portanto mais longe!
     Thomas Mann (1875-1955), nasceu no norte da Alemanha, região de maioria protestante. Era filho de Johann Heinrich Mann e da brasileira Júlia da Silva Bruhns, mulher de grande sensibilidade intelectual, mais do que o marido, que era todo voltado para o comércio. No romance faz várias alusões a Portugal, como quando evoca o terramoto de Lisboa de 1755, e por duas vezes, quando fala do vinho do Porto, ou refere a existência de vários epitáfios com nomes portugueses no cemitério de Dorf, onde a acção decorre. Em qualquer recanto recuado do seu coração, Portugal está presente. A matéria para esta obra, que tem muito de pessoal, algo de biográfico, foi ele encontrá-la em 1912, quando se viu obrigado a internar a sua mulher, Katharina, num sanatório de Davos, na Suiça. O romance, então iniciado, só seria publicado em 1924. É ver como então se deixavam amadurecer as grandes obras!


Estabelecimento hoteleiro em Davos, nos Alpes suiços, 
que inspirou  Thomas Mann a criar o fitíco Sanatório Berghof 

 

     A acção decorre, pois, num sanatório, no dealbar da Primeira Grande Guerra, quando Hans Castorp, a sua personagem principal, resolve ir ali visitar um primo, Joachim Ziemssem, e curar uma anemia, e ali acaba por ficar sete anos. Por esta altura a tuberculose pulmonar era uma doença epidémica na Europa. Sobressaem ainda no romance as personagens de Clawdia Chauchat, que, envolvendo-se com Hans Castorp, permite dar uma auréola romântica à obra; e além dela, Leo Naphta, ex-jesuíta, dogmático e totalitário, e Ludovico Settembrini, humanista, liberal e maçom, que vão servir de contraponto às teses filosóficas tratadas na mesma. O sanatório em si, como que constitui um cadinho de nações, um microcosmo europeu, que ameaça a cada momento envolver-se em mais uma guerra fratricida.
     Pretende ser uma obra sobre o tempo, relativo, num lugar distanciado do mundo, num espaço também algo mágico. O tempo aqui é muito lento, de tal modo se agiganta que quase esmaga as pessoas com a sua vastidão. Tem-se a impressão que ele as pretende capturar para as desterrar para um universo mais denso, fugido à civilização cá de baixo, "da planície", aprisionando-as num ermo de onde lhe vai ser difícil sair. O autor, assim faz intenção no preâmbulo, vai, portanto, adensar esse tempo, descrevendo o mundo à sua volta com uma extraordinária minudência, tornando mais aturadas as descrições físicas, mais aprofundadas as análises morais, as confrontações políticas são pormenorizadas e as tradições históricas ricas em elementos figurativos.  Desterrados naquele mundo remoto, onde o tempo parece infinito, as suas personagens vão-se dar ao trabalho, ou serão mesmo impelidas a ver tudo mais amplamente, não lhes faltando vagar para dissecar as suas próprias almas.
      O aqui não é o ali, o agora não o antes. Todo o movimento é circular, diz-se a certo ponto no romance, reportando-se às leis da conservação das massas e às leis da periodicidade. Deduz-se ainda que quer no espaço, quer no tempo, as coisas andam sempre se não forem paradas. De facto, a Terra anda à volta do Sol até voltar ao ponto de partida, nunca pára, e o mesmo se dirá do Sol, no seu movimento de translação na Via Láctea. O sangue do corpo dos animais faz o mesmo, ao estar sempre a retornar ao coração, e até que ele pare. E se estudarmos o circuito da água no planeta, esta está sempre a voltar ao oceano, o seu ponto de partida, através da evaporação, condensação e circulação fluvial. E outra questão pertinente o autor nos põe: O tempo é relativo, só pode ser medido através do movimento, e então se tudo parasse, o tempo deixaria de existir? Fica para o leitor resolver.
     O romance decorre num tempo extenso, fugidio, mal cronometrado. Na "planície" ele rareia, é mais etéreo, as pessoas tendem a ser mais práticas, mais directas, mais sintéticas; ao contrário, lá em "cima" a vida é mais feita de palavras do que de acções, tudo é mais observado, mais sentido. Os gestos  mais insignificantes podem revestir-se de um profundo significado. A acção efectiva-se num espaço recôndito, algo esconso, anda meio expatriado das mentes, centra-se num presente invisível, por isso o autor faz longas incursões ao passado, que é mais manuseável, e logo desde o início, quando nos faz uma pequena biografia de Hans Castorp, que que inteiro refaz perante nós. Diz ele: Um homem faz-se sobretudo pelo passado, não por uma simples atitude tomada no presente, por mais nobre ou vil que seja.
    Thomas Mann  é mestre a criar microcosmos sociais, descrevendo-os meticulosamente. E desde a vertente física à psicológica, não ignorando o modo de dizer, os sotaques, os gestos e os trejeitos. O ambiente ali não muda muito, pois o Sanatório Internacional de Berghof é quase uma prisão, inalterável, onde muitos se vêm refugiar para recuperar a saúde, mas a paisagem humana muda um pouco mais com a alteração do estado clínico dos pacientes e as imensas potencialidades das pessoas que ali vivem: das mais variadas proveniências, com diferentes línguas, diversos modos de pensar e sentir, com costumes dissemelhantes. E estão sempre a ser renovadas, porque algumas morrem, disfarçadamente, para se evitar dramatismos, outras recuperam a saúde: estão umas a chegar e outras a partir. A vida no sanatório, onde há tratamentos marcados, cinco refeições diárias, períodos de repouso fixados e eventos vários, flui copiosamente, está cheia de acontecimentos.
      O autor é exaustivo sem ser prolixo, procura iluminar bem a realidade para que possamos analisar a fundo as situações e nos integremos no mundo para onde nos remeteu: A sua linguagem é clara, quase transparente, não obstante tratar de temas com grande erudição, e desde as trivialidades da vida até às filosofias que fazem correr meio mundo contra o outro. Ele vai até à raiz dos problemas, sobrevoa as evidências com uma clareza surpreendente: é ao mesmo sintético e ecléctico, minucioso e sóbrio, muito esclarecido, um poço de sabedoria.   
      Em todas as áreas para onde nos transporta, ele as disseca com grande mestria. E isto podemos verificar nos domínios mais palpáveis do material, ao ler a seguinte transcrição, a folhas 321: Confrontados com a molécula química, estamos desde logo perante um abismo ainda mais escarpado e misterioso do  que o que se ergue entre a natureza orgânica e inorgânica: o abismo que separa o material do imaterial. É que, como se sabe, a molécula era formada por um conjunto de átomos, e o átomo nem sequer tinha dimensão suficiente para ser apelidado de infinitamente pequeno. Era uma concentração de tal modo minúscula, ínfima, prematura e efémera do imaterial, do ainda não transformado em matéria mas já idêntico a esta, de energia, que já não se podia - ou ainda não se podia - conceber como matéria, sendo antes um estado intermédio  ou fronteiriço entre o material e o imaterial. Repare-se que ele, já naquela disse que se previa, ou ainda não se previa, admitindo, portanto, que se viesse a prever, como veio. E também na esfera do imaterial, área em que ele não é menos ousado e profundo, ele nos surpreende quando fala do psiquismo, como que antecedendo nesta matéria António Damásio, senão vejamos a páginas 311:  A consciência de si  era, portanto, uma mera função da matéria transformada em vida, e, a um nível mais elevado, esta função volta-se contra o seu próprio portador, tornando-se o desejo de conhecer e explicar o fenómeno que a produzia, um desejo da vida, ao mesmo tempo auspicioso e desesperado, de se conhecer a si própria, anseio inglório em última análise, já que a natureza não pode reduzir-se a um conhecimento e a vida não pode, por mais que se queira, perscrutar-se a si mesma.
     Este livro, apesar de grande deve ser lido devagar para ser apreciado. Foi a minha percepção quando me predispus a fazer-lhe mais uma leitura. Não deve ser lido com a pretensão de encontrar uma história com um enredo empolgante, porém, estéril; cheia de diálogos vivíssimos mas inconsequentes; com a ideia de ir encontrar um final empolgante, que uma vez atingido se esvaia no esquecimento. Não, este livro, mais do que um mero instrumento de lazer, de entretenimento, deve ser lido com uma ambição maior: como se esteja em romagem pela vida e pela cultura da Humanidade.
     Alguns leitores poderão dizer menos bem deste livro, do qual se tem vergonha de dizer mal para não se parecer estúpido, pois é dos romances mais influentes do século XX, acusando-o de não ter enredo, de transformar frequentemente o romance num ensaio, e eles não compraram o romance com essa finalidade. Poderão ainda criticá-lo por as suas personagens mais fortes serem psiquicamente muito refinadas, usando uma linguagem que em certas matérias parece ser mais do autor do que delas próprias, sendo portanto, nessa parte, uniformes, artificiais; que ele às vezes as põe a falar desarvoradamente, enchendo quase uma página, dando a impressão de terem entrado em monólogo. Contra esses detractores, que obviamente terão as suas razões, dizemos que em parte estes pretensos desvios se justificam por o romance se desenrolar lá "em cima", onde o tempo e o espaço estão desfocados, deformando a realidade.
     É indubitável que o autor não receia defrontar-se com qualquer matéria, que manuseia com grande destreza e profundidade. É ler a descrição detalhada que faz ao fim, de várias sessões de espiritismo. Ele vai longe no conhecimento da doença e da morte, que viu ali de perto e durante longo tempo. Senão, leia-se esta descrição deliciosa, a páginas 606, quando o médico, conselheiro Behrens, fala para Luise Ziemssem, que vem dar assistência ao filho, nos seus últimos dias de vida: Conheço bem a morte, sou um funcionário ao seu serviço, temos a tendência a valorizá-la, acredite no que lhe digo! Posso assegurar-lhe que ela não vale nada. Tudo aquilo que a precede e que, em certas situações, pode assumir contornos ultrajantes não pode ser imputado à morte: são circunstâncias que fazem parte da vida mais activa e que podem conduzir à cura e à sobrevivência. Ninguém que regressasse do reino dos mortos lhe poderia relatar qualquer  coisa de concreto sobre a morte, porque ninguém a experiencia. Nascemos nas trevas e nelas nos afundamos.
     Thomas Mann, não raras vezes põe-se de fora do romance, como se estivesse, também ele, a observar as coisas de longe, chega a chamar o leitor ao palco onde se desenrolam os acontecimentos, e por uma vez interroga-o mesmo, quando Clawdia Chauchat e Hans Castorp trocam um beijo "russo", frio, no fim do livro. Como se fosse cometido de dúvidas sobre o que se estivesse a passar, fosse como nós, um mero espectador, ele convida-nos a fazer uma análise crítica da realidade. Tenho de concluir: A Montanha Mágica é um romance histórico de uma certa Europa a desmoronar-se, estilisticamente, uma peça musical com vários andamentos. O enredo será pobre, sim, mas está cheio de humanidade, e frequentemente transforma-se em ensaio, em que dá forma a diferentes visões do mundo, por vezes antagónicas, como aquelas que são defendidas por Naphta e Settembrini. Liberdade e autoritarismo, esperança e descrença, Reforma e Contra-reforma, e outras ideias modernas da época, são ali postas em confronto. O autor, dominando uma vasta cultura, está bem dentro do seu tempo: Física, Química, Biologia, Psicologia, Filosofia, mas também Política, Direito, Arte, História e Literatura são tratadas no livro com desenvoltura pericial. E podendo estas matérias ser tediosas num romance, ele as consegue transformar numa aventura ao mesmo tempo agradável, curiosa e didáctica, exercendo, portanto, um papel pedagógico. Ler este livro é por isso também um exercício de inteligência: enriquece-nos de conhecimentos, obriga-nos a uma saudável ginástica mental, servirá de apuro à nossa linguagem. É um livro modelar. 

     02/2012 Martz Inura

Nenhum comentário:

Postar um comentário