JANE AUSTEN





Resultado de imagem para jane austen





JANE AUSTEN
Orgulho e Preconceito
EDITORIAL PRESENÇA (2014)
Tradução de Ângela Miranda Cardoso com
Maria João da Rocha Afonso

 
A MULHER
            Jane Austen nasceu em Sverton (Hampshire) em 16 de Dezembro de 1775, e faleceu em Winchester, No Reino Unido, em 18 de Julho de 1817, com 41 anos. Filha de um clérigo anglicano, e segunda filha, de uma frateria de sete irmãos, desce cedo manifestou interesse e vocação para às letras. Era originária de uma classe abastada, ligada à aristocracia e à religião, vivendo num mundo rural. Em 1801 mudou-se para Bath, e com a morte do pai, em 1805 para Chawton, para uma cotage que hoje é a sua Casa-Museu. Nunca casou, embora se admita ter tido os seus namoricos. Publicava anonimamente, Orgulho e Preconceito foi inicialmente uma obra recusada. Morreu da doença de Addison, dolorosa e deprimente, só mais tarde descoberta. As suas últimas palavras foram: Não quero nada mais que a morte.

A SUA OBRA
            A autora começou a escrever muito cedo, desde a juventude, normalmente pequenos textos, e até uma peça de teatro. Vão apenas aqui ser referidos os seus romances:
            - Razão e Sensibilidade (1811)
            - Orgulho e Preconceito (1813)
            - Mansfield Park (1814)
            - Emma (1815)
            - Northanger Abbey (1818) Póstuma
            - Persuasão (1818) Póstuma

O ROMANCE Orgulho e Preconceito

- Cronologia e Geografia do Romance
            O enredo do romance começa por volta de Setembro de 1811 e termina em fins de 1812. Passa-se em Hertfordshire em lugares imaginários como Longsbourn (residência dos Bennets), Netherfield (residência dois Lucas), aldeia de Meryton (onde um regimento de milícias esteve aquartelado por uns tempos). No Derbyshire: Pemberley (residência de Darcy), Lambton (primeira residência dos Gardiner). Kent (onde Darcy e a irmã Georgina passam o Verão). Sussex: Brighton (estância balnear para onde Lydia vai passar uns tempos com os Foster).

- Personagens
            Mr. Bennet - O patriarca da família Bennet, com cinco filhas, todas solteiras que urgia casar. Num tempo em que estava em vigor a Lei dos Vínculos por via masculina, elas estavam deserdadas, e ele pertencia a uma classe média descapitalizada, estava desprovido de grandes recursos. Mesmo assim enfrentava a situação com serenidade e algum humor: era um homem inteligente e culto, com um ar sarcástico, quase cínico, que usava para se escudar dos disparates da mulher, que, todavia, se preocupa mais do que ele com o destino das filhas. Embora gostasse de todas elas, dava preferência a Elizabeth e a Jane, as mais novas considerava-as ainda imaturas e um tanto doidas.
            Mrs. Bennet - A esposa do Mr. Bennet, uma mulher nervosa, cheia de achaques, cujo maior objectivo é ver as suas filhas bem casadas. Por ter um comportamento muitas vezes impróprio, usando expressões grosseiras, reveladoras da sua baixa condição social, muitas vezes repele os próprios pretendentes que tenta atrair para as filhas. Contudo, tinha plena consciência de que naquele tempo o futuro delas residia em conseguirem um bom casamento, empenhando-se neste desiderato.
            Jane Bennet - A mais velha das cinco irmãs, com 22 anos. É mais reservada e gentil do que Elizabeth, sua especial confidente, e fisicamente a mais bela de todas. O seu carácter gentil, ou talvez doce, a sua amabilidade não são de modo a desentender-se com Bingley, que, por motivos que a ultrapassam, se afasta dela por uns tempos, contrastando com as sucessivas incompreensões e desencontros que se verificam nos encontros de Elizabeth com Darcy. Caroline Bingley não aprova o seu namoro com o irmão. 
  
 Keira Knightley do filme Pride and Prejudice de Joe Wright de 2006


            Elizabeth Bennet – A protagonista feminina do romance. A segunda filha dos Bennet, com 21 anos. É a mais inteligente e sensata das cinco irmãs. Muito atraente e viva, de resposta pronta, tem o defeito de acreditar de imediato naquilo que lhe dizem, por ser sincera e honesta. Com uma forte personalidade, orgulhosa daquilo que é, não se intimida perante pessoas de classe superior, diz o que pensa e isto às vezes prejudica-a. Darcy tem dificuldades em se lhe declarar. Falha mesmo na primeira tentativa, porém, a sua grandeza moral e o seu encanto pessoal conquistam-no. Depois de muitas incompreensões, mesmo ao fim (capítulo 59) ele vem pedi-la em casamento. Ela tinha dito tão mal dele ao pai, Mr. Bennet, que este antes de dar o seu consentimento final teve de a chamar, nem estava a acreditar. 
    Rosamund Pike do filme Pride and Prejudice de Joe Wright de 2006
            Mary Bennet – Com 19 anos, é a mais simples das cinco irmãs, que gosta da leitura em vez da costura, mas sem grande atractivos. È pretensiosa ao julgar possuir grandes dotes artísticos.
            Catherine Bennet (Kitty) – de 17 anos, teimosa e estouvada, que acompanha Lydia.  
            Lydia Bennet - A irmã mais nova, de 15 anos, volúvel e imatura. Autorizam-na a ir uns tempos para Brighton para casa dos Foster, e ela foge com Wickham, o que enche de vergonha a família, que teve de andar de alhos para bogalhos à sua procura.
            Mr. Collins - Um clérigo anglicano que não prima pela inteligência, muito empolado, tosco e sem charme. É primo e herdeiro futuro de Mr. Bennet, por este não ter filho varão. Por aquele tempo estavam instituídos os vínculos na Grã-Bretanha. Vai ser rejeitado por Jane e acaba por se casar com Charlotte Lucas, a melhor amiga desta.
            George Wickham - Um oficial da milícia à procura de um bom casamento. Com boa aparência e charme bastante consegue atrair inicialmente Elizabeth, fazendo-se vítima de Mr. Darcy, mas o futuro vai revelar o que é trapaceiro, dissipador e pouco responsável. Foge com Lydia e para casar com ela vai exigir um dote avultado, que Darcy por amor a Jane vai pagar.
            Fitzwilliam Darcy - Um cavalheiro distinto e rico de Pemberley, sobrinho de Lady Catherine de Bourgh, o protagonista masculino do romance. Apesar de inteligente e honesto acanha-se a falar com Jane. É mais expansivo e palavroso a escrever cartas. O seu comportamento retraído faz com que pareça orgulhoso e arrogante, mas estas características dever-se-ão à sua timidez, à sua impreparação para lidar com as pessoas. Afectado pela consciência de classe, não usa as palavras mais correctas quando declara o seu amor a Jane, que o recusa liminarmente. Inicialmente no baile ele tinha dito que ela era agradável, mas não suficiente para o tentar, e ela agora respondia-lhe que ele era o último homem da Terra com quem ela casaria, o que cortava aos pedacinhos os aurículos e ventrículos do seu coração. Darcy está apaixonado por ela, admira a sua forte personalidade, a sua altivez, a sua dignidade imperial: ela era das que não se curvava perante as sua riqueza, e isto dava-lhe uma grandeza moral que o reduzia a uma mal digerida insignificância. Apesar da oposição de Caroline Bingley e Lady Catherine vai pedi-la ao fim em casamento com sucesso (capítulo 59). Tem como irmã, Georgina Darcy.
 Mathew Macfadyen do filme Pride and Prejudice de Joe Wright de 2006
            Charles Bingley – Um cavalheiro de 22 anos, charmoso e divertido que compra uma mansão em Netherfield, perto de Longbourn e dos Bennet. Vai a um baile de apresentação e logo se deixa enfeitiçar por Elizabeth, com quem dança duas vezes. Ela é a mulher mais bela que jamais viu. É amigo de Darcy, de feitio mais reservado e esquivo. Contrastando com ele, é afável e cortês, conseguindo fazer muitas amizades. Porém, é facilmente influenciável. A sua irmã Caroline (Miss Bingley) consegue-o afastar de Netherfield e de Elizabeth. Ficam, cada um para seu lado, desencontrados, mas a beleza dela já se terá apossado do seu coração. Ele não tem como lhe fugir. Vem quase ao fim pedi-la em casamento (capítulo 50), ela sente-se a mulher mais feliz do mundo.
 Simon Woods do filme Pride and Prejudice de Joe Wright de 2006
  
            Lady Catherine de Bourgh – É uma Lady snob que patrocina Mr. Collins. Vive em Rosings e é tia de Darcy. Sentindo pertencer à aristocracia, olha com desdém para a classe média. Vem mesmo a casa dos Bennet contrariar o namoro de Elizabeth com Darcy, que queria para sua filha Anne.
            Mr. e Mrs. Gardiner –Ele é irmão de Mrs. Bennet. Os Gardiners nutriam um grande afecto pelas suas sobrinhas, comportam-se por vezes como seus verdadeiros pais.
            Charlotte Lucas - a maior amiga de Elizabeth. Quando esta rejeitou a proposta de casamento de Mr. Collins, ela, um tanto surpreendentemente, pouco tempo depois aceitou-o como marido. Também tinha mais seis anos do que ela, não podia estar com esquisitices, pragmática, preferiu alguém que lhe garantisse um futuro confortável. É filha de Sir William Lucas e Lady Lucas.

- Breve Súmula do Romance
            Nos primeiros seis capítulos do romance as personagens são apresentadas umas às outras, é realçado o interesse das jovens casadoiras em arranjar bons partidos. Mr. Bingley, um jovem rico, de porte aristocrático, compra ali perto uma casa apalaçada em Netherfield, e isto é motivo para que as famílias façam convites recíprocos, como mandavam as regras de cortesia. Era assim que se davam a conhecer e surgiam oportunidades de casamento. São feitos convites para jantares e organizam-se saraus dançantes. O casal Bennet na sua casa em Longbourn apresenta as suas cinco filhas: Elizabeth (Lizzy), Jane, Mary, Catherine (kitty) e Lydia. Em Lucas Lodge o casal Lucas dá a conhecer a sua filha Charlotte. Logo no primeiro baile que se organiza estabelecem-se as relações entre os casais: Bingley e Elizabteth, e Dracy e Jane.
            No 6º capítulo instala-se em Meryton um regimento de milícias, naturalmente com muitos oficiais, tirados das classes mais abastadas e até aristocráticas, que põem as jovens loucas, na sua sofreguidão de ali encontrarem ali um bom partido. Do 7º ao 12º capítulo anda-se à volta de Jane que fez uma visita a Netherfield, à mansão de Bingley. Ela adoece, será uma gripe, mas já não a deixam sair, e fica por lá com Elisabeth por uns tempos, que dá para as relações entre elas e os seus pretendentes se desenvolverem. Os Bennet não se importam nada que as filhas fiquem uns tempos em Netherfield, até retardam a sua vinda, mas Miss Caroline Bingley está contra aquela relação do irmão com Elizabeth.
            Do 13º capítulo ao 21 capítulo as irmãs Elizabeth e Jane voltam finalmente a Longbourn a casa dos pais. É então que aparece por lá o clérigo anglicano, Mr. Collins, ainda seu primo. Ele é tedioso e as irmãs num dos dias seguintes vão até Meryton, onde Wickham dá uma péssima imagem de Dracy a Elizabeth. Mas Mr. Collins persiste, ele vinha ali à procura de noiva. Em virtude da Lei dos Vínculos ali em vigor, que era agnatícia, isto é, os bens transmitiam-se por via masculina, ele era o herdeiro de Mr. Bennet, que não tinha filho varão. Com este pedido ele estava a tentar atenuar a injustiça que era ir herdar o que devia pertencer às cinco irmãs. Inicia os contactos mas Mrs. Bennet demoveu-o de se propor a Jane, que já estaria noiva, e ele volta-se para Elizabeth, que o recusa perante o seu espanto e desgosto dos pais, que vêem defraudadas as suas esperanças dos seus bens ficarem no seio da família. Os Bennet ainda insistem para que ela o aceite, mas a sua recusa é definitiva. Entretanto, Elizabeth recebe uma carta de Miss Caroline Bingley dizendo que o irmão já não regressa a Netherfield como tencionava, e está de relações com Miss Georgiana Darcy, ideia que volta a reforçar no capítulo 24º, tentando com isto afastá-la do irmão.
            Nos capítulos 22 e 23, Mr. Collins volta-se para Lucas Lodge, fazendo uma proposta de casamento a Charllote Lucas, no que vai ter êxito. Ele era clérigo já amadurecido, tinha 25 anos, e alguma pressa em constituir família. Elizabeth fica admirada com este aproveitamento de Charlotte, tanto mais que ela era a sua maior amiga, mas acaba por aceitar a sua decisão, já que era seis anos mais velha do que ela, e estaria com receio de ficar encalhada, aceitando o sacrifico de casar com aquele bronco. Sir William Lucas e Lady Lucas ficam felizes, por assim darem um destino feliz à sua filha, que estava a ter dificuldade em encontrar um parceiro à altura, enquanto os Bennet ficam tristes, por se perder aquela oportunidade soberana de manter os seus bens na família.
            Entre os capítulos 25º e 28º surgem em Longbourn os Gardiner, tios das Bennet, muito ligados às sobrinhas, que tratam como filhas. Jane está em Londres. Elizabeth e Mary acabam por ir visitá-los pouco depois a Pemberley, perto de Meryton, onde ainda está o regimento de milícias cheio de oficiais encantadores, de que podiam tomar partido nos sucessivos encontros que se proporcionassem. Há uma conversa entre Elizabeth e Wickham, um oficial desse regimento, que é inimigo declarado de Darcy. Wickham é galante, e ela sente-se atraída por ele, mas esta ligação não irá perdurar. Os tios já a tinham alertado, porém, contra os seus desvarios. Elizabeth é honrada com mais de uma visita a Rosings a Lady Catherine de Borough, que se pavoneou a mostrar os seus luxos aristocráticos.
            Entre os capítulos 29º e 34º, Elizabeth aceita um convite de Charlotte para ir passar uns dias a sua casa. Ela era agora Mrs. Collins, mas não deixava de ser sua amiga, e havia ainda a possibilidade de estabelecer ali novos encontros. Os Collins estão bem relacionados e recebem ali muitas visitas, entre as quais a de Darcy. Elizabeth estranha o afastamento de Bingley e Jane num daqueles convívios, e inesperadamente recebe uma proposta de casamento de Darcy. Porém ele fê-lo de uma forma tão desajeitada que ela o rejeitou. Darcy ficou de rastos. É este capítulo que dá justificação cabal ao título do livro: por um lado o orgulho de Elizabeth, que apesar de deserdada, não aceita a forma superior como foi tratada por Darcy na sua proposta, e o preconceito (também orgulho) de Darcy por se julgar superior a ela, só por ser rico, pertencer a uma classe superior, quando ela tinha uma beleza majestática, uma dignidade moral de uma grandeza desmedida. No 35º capítulo Elizabeth recebe uma longa carta de Darcy, na qual ele procura justificar-se, mas que não chegou para a convencer. Os capítulos seguintes, até ao 38º, são o desenvolvimento deste incidente.
            No 39º capítulo as Bennet regressam a casa, a Longbourn. Lydia vai para Brighton a convite dos Foster e Elizabeth segue para casa dos tios Gardiner, em Pemberley, onde visita os antigos criados de Darcy, que dizem do jovem mil maravilhas, e inesperadamente ele aparece por lá. Daqui até ao capítulo 45º há uma longa intriga em que entram as irmãs Bennet, os Gardiner, Bingley e Miss Bingley, Darcy e Miss Darcy. E no capítulo 46º algo grave ocorre que assombra a família Bennet: Lydia foge com Wickham e não sabem onde ela está. Ora um acto tão leviano, caso não casassem, constituía uma desonra que afectaria as restantes irmãs. Elizabeth está desconsolada e tem de regressar a casa. Darcy vem despedir-se, e dá com ela a chorar. Mr. Bennet vai à procura de Wickham, e a sua mulher tem receio que ele o convide para um duelo e morra às suas mãos, deixando-as a todas na miséria. Mas tal não acontece, ele não dá com Wickham e regressa a Longbourn. Parece que Darcy dá com eles, e mais tarde os Gardiner escrevem a Elizabeth uma carta dizendo que o caso foi resolvido, Wickham casou com Lydia: eles arcaram com as despesas do seu dote.
            A partir do capítulo 53º a acção intensifica-se, Mr. Bingley aparece por Longbourn. A irmã Caroline não o conseguiu afastar de Jane. Ela era uma jovem de uma tal beleza que o enfeitiçou logo no primeiro encontro. Era uma deserdada, mas um simples seu olhar enriqueceu-a aos seus olhos, apoderando-se da sua alma. No capítulo seguinte janta em casa dos Bennet, já se presumia para o que seria. Elizabeth está triste, sente-se rejeitada por Darcy, e, tendo recolhido mais informações, que vinham em seu favor, sentia-se cada vez mais apaixonada por ele. Contudo, mesmo que as suas relações estivessem quebradas por qualquer enguiço, ainda tinha alguma esperança que se restabelecessem. Mas ele não veio, e isto era desencorajador. No capítulo 55º Mr. Bingley pede Jane em casamento ao pai, que aceita, Jane sente-se a mulher mais feliz do mundo, e em casa todos comungam dessa alegria.
            Do 56º ao 59º capítulo trata-se da trama entre Elizabeth e Darcy. Estranhamente aparece lá por casa Lady Catherine de Bourgh a pedir para Elizabeth se afastar de Darcy, já que ela tem um estatuto inferior, mas ela não promete rejeitar sem mais nem menos qualquer proposta de casamento que ele lhe faça, embora nada esteja tratado. Também Mr.Bennet recebe uma carta do hipócrita Mr. Collins a reclamar do procedimento de Lydia e a levantar rumores sobre a relação de Elizabeth com Darcy. Esta, depois das últimas conversas que teve com Darcy, tinha a desagradável sensação das relações entre ambos estarem se não cortadas, pelo menos murchas, e agora à sua volta todos pareciam querer dizer o contrário. A seguir, já no 57º capítulo, Darcy e Bingley aparecem em Longbourn

- Apreciação Geral de Orgulho e Preconceito
            Jane Austen escreve neste livro com uma clareza, uma elegância, uma ironia, um poder de análise deveras impressionante. Alguém disse que ela, em 1813, escrevera o primeiro romance moderno, e não podemos estar mais de acordo. Esta notável autora, sem olhar a correntes literárias, a grandes prosadores, a acrobacias estilísticas, tentou descrever o que via à sua volta o melhor que sabia. O romance tem muito de autobiográfico, só assim se explica que ela consiga escrever este livro com uma tal riqueza de pormenores, que vá tão longe nas suas observações. É uma vigorosa história de amor, um romance de costumes que marca uma época. Temos de atender àquela sociedade, arcaica, para compreendermos o mundo que ela nos retratou, e com grande clarividência. Em meados do século XX, nos meios rurais atrasados da Velho Continente ainda se viam resquícios antigos destas sociabilidades.
            Sendo filha de um clérigo anglicano, era por formação e convivência conservadora, e o admirável é que, passando por sobre essas inquinações, ela tinha uma noção bem nítida das injustiças da sua época, não as denunciando abertamente, mas expondo-as com toda a evidência aos leitores no romance, ao mostrar nas suas diversas cambiantes a iniquidade que era para a mulher a Lei dos Vínculos de linha masculina, que as deixava à mercê dos homens, que muitas vezes através do dote, na prática as tornavam uma mercadoria, quais escravas daqueles tempos. E mesmo no que se refere à educação, que ela considerava muito importante, e que achava que não devia ser entregue a tutores (como era o caso do pai), mas a professores profissionais, ansiando por um ensino liberal, moderno, não a pensar exclusivamente em formar mulheres para o casamento, dando-lhe talentos especiais, aptidões domésticas, como vinha desde os tempos de J. J Rousseau.
            Ela escreve na terceira pessoa, como entidade omnisciente à realidade que analisa, aclarando algumas situações que às vezes é demorado explicar através de diálogos, tornando mais densa a narrativa. E as personagens que criou, cujo pensamento frequentemente traduz, têm subtilezas que as aproximem da vida, quando encaram tão a sério as suas responsabilidades, se dão ao trabalho de interpretar meticulosamente os seus contendores à procura de dar sentido às suas palavras, aos seus actos e omissões, com uma curiosidade cheia de lucidez. Elas têm luz própria, uma marcante individualidade, são distintas. Ainda que tenham as melhores das intenções, têm os seus vícios, os seus defeitos, erram por vezes, se algumas são hipócritas outras são orgulhosas ou têm graves preconceitos, calam ou dizem demais, são dotadas do bom e do mau que caracteriza o ser humano. É evidente que vivem numa sociedade que as forma, que as adequa às circunstâncias, impondo-lhe também os seus constrangimentos.
            Jane Austen não traduz aqui todos os aspectos da sociedade, volta-se sobretudo para a classe média e alta, centradas no meio rural, quase não há crianças no livro, não se aprofunda na análise económica, volta-se sobretudo para as raparigas casadoiras, ávidas de bons partidos, num período em que a mulher estava subalternizada nas heranças, inferiorizada perante a lei, não tinha empregos, dependia muito dos maridos, e quando eles faltavam, dos irmãos. Ela só vê uma parte da realidade, aquela que está em causa, engrandecendo sobretudo o universo feminino, sim, mas naquilo que faz é quase perfeita, ao nível de Shakespeare e Tolstoi. Ela nem deu o seu nome aos seus romances, eram anónimos, escritos (By a Lady), não era presumida ou pretensiosa por escrever um livro, dois livros, três livros… e quando estava para nos deixar, muito atormentada pela doença, disse que não queria nada mais do que a morte, não pediu aos homens homenagens na Terra nem aos céus a Eternidade. Levaram-na para a Catedral de Winchester, um belo lugar para se juntar santas, fantástica escritora! 


Martz Inura
21/01/2017


Nenhum comentário:

Postar um comentário