JOÃO GUIMARÃES ROSA
Grande Sertão:
Veredas (Volume II)
Editora Nova Aguilar, 1994
Por gentileza extraída da Internet (876
páginas)
O
HOMEM
João Guimarães Rosa, médico, diplomata
e escritor, nasceu a 27 de junho de 1908 na cidade de Cordisburgo, no Estado de
Minas Gerais. Desde cedo mostrou qualidades de inteligência e inclinação para
as línguas: aos seis anos aprendeu francês sozinho, aos nove holandês. Em 1929
já dava a conhecer os seus dotes literários ao publicar na revista Cruzeiro contos que depois iria incluir no
seu livro Saragana. Era um
autodidata. Em 1950 matricula-se na Faculdade de Medicina de Minas Gerais,
terminando o curso cinco anos depois. Casou com Lígia Cabral Penna, de quem
teve duas filhas. Passou a exercer medicina no interior da Minas Gerais, tomando
contacto com o seu povo, um pouco como a personagem João Semana do também
médico, Júlio Dinis. Concorre à carreira diplomática e é colocado em Hamburgo.
Ali encontra Aracy Moebius de Carvalho, a sua segunda esposa. Voltou ao Brasil
em 1951, onde aceitou cargos políticos no Itamaraty, sendo promovido a ministro
de primeira classe, correspondente a Embaixador. Era já uma pessoa muito
prestigiada. A Academia Brasileira de Letras atribuiu-lhe em 1961 o Prémio
Machado de Assis pelo conjunto da sua obra. Em 1963 foi eleito por unanimidade para
a Academia Brasileira de Letras. Não aceitou ser logo empossado, por tal ato
pressagiar a sua morte. Isto não parecia racional. Por fim lá o convencem, ele
foi empossado, e ao fim de três dias morria subitamente de um AVC no seu apartamento
do Rio de Janeiro – estávamos em 19 de novembro de 1967, tinha ele 59 anos.
A
OBRA
Consulte-se
a relação das suas obras, contando que Saragana,
Grande Sertão: Vereda e Corpo de Baile são consideradas as mais
importantes:
– Magma (1936)
– Saragana (1946)
– Com o Vaqueiro Mariano (1952)
– Corpos de Baile: Noite do Sertão (1956)
– Grande Sertão: Veredas (1956)
– Primeiras Histórias (1962)
– Campo Geral (1964)
– Tutaméia – Terceiras Histórias (1967)
– Estas Histórias (Póstumo) (1969)
– Ave, Palavra (póstumo) (1970)
– Antes (2011).
O ROMANCE Grande Sertão: Veredas
Grande
Sertão: Veredas, que alguém já reputou como um dos cem romances mais importantes
de sempre, desde há muito que tinha despertado a nossa curiosidade. Andámos em
2018 à procura dele na Feira do Livro de Lisboa, mas estava esgotado. Fomos a
seguir a algumas reputadas livrarias, e ele não estava à venda. Recorremos
então ao OLX e aos alfarrabistas, que o tinham anunciado na Internet. Telefonámos
a um e ele respondeu: “Está na Internet, mas faz apenas parte do histórico das
nossas vendas, passou por cá um estudante brasileiro e comprou-o. Ligámos a
seguir para um grande alfarrabista da cidade do Porto, na esperança de
encontrar lá um. Ele respondeu-nos: “Sim, já tive cá esse livro, mas esteve ainda
há pouco tempo aqui um casal de brasileiros e comprou-me o último”. Enfim, os
brasileiros, que reconhecem o valor de Guimarães Rosa, ao verem o livro a preço
módico esgotaram-no. Fizeram bem, não os invejo. Espera-se uma nova edição. Não o quisemos requisitar nas
bibliotecas públicas, porque precisávamos dele por vasto tempo, e fazemos-lhe
anotações à lápis nas páginas, já que a nossa memória é limitada. Incrível, tivemos
mesmo de o retirar em PDF da Internet.
– LOCALIZAÇÃO ESPACIAL E TEMPORAL
O sertão brasileiro tem seguramente
mais de um milhão de quilómetros quadrados, e vai desde o Norte de Minas Gerais
até lá cima ao Atlântico, aos Estados do Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do
Norte. O sertão do livro, embora o narrador o considere o mundo, é mais pequeno,
confina-se a sítios do Goiás, ao Norte de Minas Gerais, à Bahia, Piauí e
Maranhão. Os estudiosos dizem que Riobaldo narra o livro numa fazenda que
herdou perto do Rio S. Francisco, localizada a “um dia e meio de cavalo”, no
Norte de Andrequicé, mas o narrador no fim do livro (pág. 874), diz: Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou
meu contar minha história inteira. É lá, no meio daquelas veredas,pequenos riachos, que a ação se decorre. Julgamos que por volta de 1800, mas o tempo está um tanto
distorcido, expande-se ou encolhe como o de Albert Einstein, e o narrador
tomava-se da liberdade de andar de trás para a frente e vice-versa. Há locais
de referência como Chapadão do Urucúia, onde Reinado e Diadorim se conheceram;
Liso do Suçuarão, local da travessia frustrada do bando de Medeiro Vaz; Fazenda
dos Tucanos, onde Zé Bebelo é capturado pelos homens de Hermógenes; Paredão,
local onde se dá a última batalha e foi sepultada Maria Deodorina da Fé Bettencourt
Marins (Diadorim).
– LINGUAGEM E LÉXICO
A linguagem de Grande Sertão: Veredas carateriza-se por recorrer à oralidade castiça
do povo sertanejo. Aceita o regionalismo sertanejo, que argamassa, e deixa
aparecer novas palavras, neologismos que o narrador inventa para melhor
expressar as suas ideias. Baseia-se num Português arcaico. Nem todos poderão
compreender integralmente o que ele está a dizer sem ter de pensar um pouco, e com
isto vão toldar o romance de uma suave neblina rústica, que lhe dá sentidos
difusos e lhe adensa o mistério, pois obriga-nos a pensar um pouco para o
percebermos. Usa, só por exemplo, a palavra forcejar, em vez de esforçar-se, soldadesca
em vez de soldados, como Alexandre Herculano ainda usava. O próprio narrador diz às vezes falar por “palavras tortas” (pág.
701). Recorre frequentemente a antíteses como: Não queria e queria (pág. 689). Fui eu e não fui (pág. 300). Recorre a expressões curiosas como: Sei lá sei? (pág. 711). Usa mesmo vocábulos
errados, mas próprias dele, como: Estava
falando contra comigo (733). Contudo, é evidente o seu esforço em
explicar-se bem, aventurando-se a entrar nos domínios da ciência e da filosofia,
usando um discurso por vezes caricatural.
Gosta de pôr a partícula negativa “não”
no fim da frase. Dispensa o artigos definidos e indefinidos no início das
frases. Recorre algumas vezes ao pronome relativo “que”, como conjunção “e” (pág.,
306…). Troca o plural pelo singular (Pág. 302, 306, etc.). Troca o vê pelo bê,
“brabo” (pág., 105). Usa expressões próprias divertidas como: “Num átimo”, num
instante (pág. 106…). Troca o haver pelo ter. Troca o tempo dos verbos – o indicativo
pelo conjuntivo. “Em brevidade” é com
pressa; “estúrdio” é estúpido; “nunca não vi” é nunca vi; “mal satisfeito” é insatisfeito; “precisão” é necessidade; “cômodo” é acomodo; “desouvia” é fazia que não ouvia; “diversiava” é divergia; “no
pontual” é com pontualidade; “gerais”
é Minas Gerais; “porqual” é porquê; “xente” é gente; “trivial” é natural; “semelhava”
é parecia; “inteligenciava” é
pensava; “particípio” é participação;
“sestronho” é estranho; “estúrdias” é estapafúrdias”, “esparramáveis” é desprezíveis; “carrancista” é carrancudo”; “manhãzim” é manhazinha; “sincero” é comovido de verdade; “assaz” é aliás; “aprouve”, é aprovou, e muitas mais, com a sua lógica sertaneja
divertida.
– Riobaldo: é a personagem principal do romance, e o seu narrador. Já
a iniciar a velhice conta as suas aventuras de jagunço a uma visitante
ilustrado. Tem conhecimentos de gramática e história pátria, até sabe a regra dos três. É um
homem sabido, corajoso, aventureiro, com um fundo muito humano, revelando
também alguma ingenuidade. Em ocasiões especiais de jagunço é apelidado de
Taratana e depois de Urutu Branco. Durante uma trégua de três dias com o grupo
rival, no meio de tantas dificuldades acha que para vencê-lo tem de fazer um Pacto como o Diabo. Vai a um
cruzamento e chama por ele, mas não obtém qualquer resposta. Procura conduzir o grupo
com sensatez e justiça, apoiando-se nos mais velhos e experientes como João
Gonhá, Marcelino Pampa, João Concliz e Alaripe. Por fim, herdeiro de duas
fazendas, e tendo obtido o seu objetivo de aniquilar o grupo de Hermógenes, e
acabar com a jagunçada, fica doente. Desgostoso com a morte de Diadorim
regressa, após algum luto, às suas fazendas e casa com Otacília.
– Diadorim: é a personagem mistério do romance. Afinal uma mulher,
mas só no fim do romance se fica a saber, quando morre e é despido para ser
lavado pela mulher de Hermógenes. Filha única de Joca Ramiro, já em pequena se
disfarçava de menino. E foi ainda nesta idade que Riobaldo a conheceu como o
nome de Reinaldo. Mais tarde, quando entra num grupo de jagunços revela um
segredo a Riobaldo, dizendo-lhe que afinal era Diadorim. Possui olhos verdes, é
desembaraçada, consegue passar por homem para andar naquela aventura. Quer
vingar a morte do pai, e é ela mesmo que o mata, morrendo também no confronto. Afinal,
chamava-se Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins.
– Joca Ramiro: é o chefe grande
acima de todos, de caráter carismático. É ele que lidera a primeira guerra
no início do livro. É um fazendeiro rico, guerreiro valente, prestigiado, sábio e corajoso, que
procura ser justo. Quando Zé Bebelo é feito prisioneiro, depois de andar a
espiar os seus homens é sujeito a julgamento pelo grupo. Ele deu a todos
liberdade para o acusar e defender, decidindo pela sua libertação, na condição
de ser desterrado para o Estado de Goiás. Esta decisão foi contra vontade de Hermógenes
que o queria ver ali morto, e começou a conspirar contra ele, até o matar à
traição. Aquele perdão seria um sinal de fraqueza, não próprio de um jagunço. Ele
desejava que ele fosse torturado e por fim morto.
– Medeiro Vaz: chefe de jagunços que se junta ao bando de Joca Ramiro.
Personifica a o respeito pela palavra, a coesão do grupo, a fidelidade a uma ideia.
Após a morte de Joca Ramiro fracassa na sua tentativa de vingar a sua morte, ao
atravessar o Liso do Suçuarão. Antes de morrer aponta Riobaldo como seu sucessor,
o que este recusou, sugerindo Marcelino Pampa, que de modo provisório chefia o
grupo até à chegado de Zé Bebelo, que por ironia do destino queria acabar com
os jagunços. A morte de Medeiro Vaz é muito chorada, e depois comovente o seu
enterro e a partilha dos seus escassos bens.
–Zé Bebelo: é a personagem ambígua. Quer acabar com os jagunços e ser
deputado. Usando uma verborreia por vezes complicada e confusa, gaba-se de
nunca ter sido comandado por ninguém, e de já ter feito isto e aquilo. Movia-o
razões de natureza política. Apesar de não acreditar muito nele, Riobaldo guarda-lhe
algum respeito. Ensinara-o mesmo a melhorar o seu Português. É capturado pelo
grupo de Joca Ramiro, e ainda é a intervenção de Riobaldo em seu favor no
julgamento que o salva de uma morte quase certa. É desterrado para o Goiás, mas
pouco depois regressa, tem a ambição de mandar, e assume o comando do grupo para dar caça a Hermógenes.
Mais tarde é posto em questão por Riobaldo, que o substitui.
–
Hermógenes: personifica o mal, a
violência e a crueldade. É o vice-chefe de Joca Ramiro, e depois o chefe de
grupo, após o matar pelas costas, traiçoeiramente. Tem prazer em torturar os
seus inimigos, inventa os suplícios mais horrendos. Riobaldo já percebeu os
seus maus instintos e tem-lhe um ódio de morte. Apelida-o de “Cão” e “Demo”. Entre
os dois há como que uma cortina de indiferença e receio recíprocos. Riobaldo,
instigado por Diadorim, quer vingar a morte de Joca Ramiro. Assalta-lhe a
fazenda e cativa-lhe a mulher para o atrair. Morre às mãos de Diadorim, a filha
única de Roca Ramiro.
– Ricardão: aliado de Hermógenes, de quem é fiel amigo e confidente.
Mas enquanto Hermógenes fazia o cangaço por instinto assassino, ele andava com
eles com objetivo de fazer grandes roubos e capturas – tornar-se um homem rico.
Morre com um tiro ás mãos de Riobaldo, antes que Diadorim o matasse à faca.
–Só Candelário: chefe de jagunços, homem muito sensato e previdente,
da inteira confiança de Joca Ramiro, de quem é compadre e amigo. Mais para o
fim do romance ajuda a combater os seus assassinos.
–
Quelemém: o homem instruído, compadre
de Riobaldo, que lhe transmitiu muita da sua sabedoria, e que ele está sempre a
citar. Ao fim dá-lhe a notícia da morte do padrinho, que lhe tinha deixado duas
fazendas.
– Nhorinhá: é o símbolo do amor sensual. Prostituta de grande beleza
e sedução que Riobaldo admira, e a quem os jagunços recorriam. Mesmo seguindo
aquela vida, Riobaldo está sempre a falar nela. Ele tinha-a por uma mulher excecional,
capaz de o satisfazer, e com quem gostaria de casar se o permitissem as
circunstâncias.
– Otacília: é o símbolo do amor comprometido, quase romântico, da
mulher fiel, que fica em casa a rezar pelo marido. Filha do dono da fazenda
Santa Catarina, ficou noiva de Riobaldo depois de receber uma pedra de topázio.
Ela é recatada e feminina, de uma beleza subtil. É uma moça mansa, branda e delicada.
– Brigi: a mãe de Riobaldo, que depois dele ter tido uma doença o
obrigou a pedir esmola em pequeno até obter certo montante, sob o pretexto de
uma promessa (pág. 136). Morreu cedo. O filho ainda recorda o seu enterro, e a
ação protetora do seu padrinho Selorico Mendes. A partir da sua morte a sua
vida nunca mais foi a mesma.
– Selorico Mendes: é o padrinho de Riobaldo, dono de três fazendas, prudente,
mas medroso, de quem este suspeita ser o seu verdadeiro pai. Mandou-o estudar em
pequeno, já se preocupava com o seu futuro. Quando morreu deixa-lhe duas
fazendas, porque a outra tinha-a deixado a uma das suas amantes.
– Titão Passos: homem ponderado
em simples (pág. 202). Quando Riobaldo falava com ele não tinha ânimo de
mentir. Como jagunço esteve ao serviço de Hermógenes. Mais tarde chefia uma
parte do grupo. Uma vez, perseguido pela soldadesca,
tivera de se escapar para a Bahia (pág. 82). É ele que através de Gavião-Cujo
recebe a notícia que mataram Joca Ramiro e vai dar caça a Hermógenes.
– Guirigó: um menino pretinho que
encontraram num assalto, que se junta ao grupo. É mais uma vítima da pobreza, geradora
da fome e da violência. Diz apenas ser filho de Câncio. Apesar de menino já é
insubordinado e rebelde, a vida endureceu-o, mas no grupo gostam dele para se
reverem no seu lado infantil. De certa maneira condiciona e influencia o
grupo. Quando há ações violentas é arredado com uma guarda de dez homens
juntamente com o cego Borromeu e a Mulher legal de Hermógenes.
–
RESUMO DO ROMANCE
Para efeitos de análise vamos
dividir este livro em seis partes, embora ele esteja escrito de uma ponta a outra
sem qualquer capítulo. Podia ter outra divisão. Talvez assim, com esta síntese se
torne mais compreensivo, e possa ter uma função mais didática.
Diadorim (Bruna Lombardi) e Riobaldo (Tony Ramos)
de uma novela da Globo exibida em 1985
de uma novela da Globo exibida em 1985
Primeira parte
A sua filosofia de vida
Riobaldo começa a falar, mas nem
sequer se apresenta, só a páginas 46 é que sabemos o nome dele. E nem ao seu interlocutor,
que nunca intervém na conversa, mas que é uma pessoa jovem e dotada. O seu
relato é desconexo. Ele tem umas ideias um tanto alinhavados, mas confusas, caóticas.
Mas é assim mesmo, à maneira do “Realismo
Mágico”, com o tempo distorcido, não linear. Disserta sobre o bem e o mal,
o amor e o ódio, o sertão, Deus e o Diabo – esboça uma filosofia de vida. Ele
sente alguma dificuldade em expressar-se, recorrendo por vezes à sabedoria do
seu compadre Quelemém, do Estado de Goiás. Mas, com ele disse, estudou qualquer coisa com o
mestre Lucas. Decorei gramática, as
operações, a regra de três, até geografia e estudo pátrio (pág. 13). Ele andava
um pouco aborrecido com a sua vida, vai a casa de Joca Ramiro e encontra
Medeiro Vaz, que não era carrancista,
e o convida a entrar no seu grupo, o que ele aceita, seguindo na companhia de
Diadorim. Depois contará que estava farto da fazendo do seu padrinho Selorico
Bastos. Faz uma descrição geográfica do sertão, fala do prazer que era andar
com Diadorim, sob o comando de Medeiro Vaz. Volta à infância: Não me envergonho, por ser de escuro
nascimento (pág. 51): Define o que é
a vida de sertanejo. Jagunço é homem já
meio desistido de si (pág. 64). Deus e o Diabo são temas recorrentes.
Segunda Parte
Sob a perseguição dos homens do
governo
A segunda parte inicia-se com as movimentações
de Medeiro Vaz. Agora alguém carece de
ir… – diz ele (pág. 81). Por esta altura, para Riobaldo, Diadorim ainda era uma mocinha de cabelos louros. Portanto, ele já no início sabia que ele
era feminino, ou efeminado. A seguir fala do seu grupo ter sido atacado pela
soldadesca e alguém ser levado preso. A situação era grave, e por essa altura Medeiro Vaz já acusava doença a quase
acabada (pág. 84). Andou por lá o sargento Leandro e um tenente. A situação
complicou-se, foram mortos aí uns treze jagunços, talvez mais, fora os que
foram presos. O que restou do grupo seguiu até um ponto que ficassem a salvo:
Serra Escura. Andam por ali perdidos, sentem-se acossados. Quem manda ali
provisoriamente é Zé Bebelo, Medeiro Vaz está muito doente. Não demorou a
entrar em agonia, e na hora da morte apontou para Riobaldo com seu sucessor.
Quem capitaneia agora? – Alguém pergunta. Ele vê o nome dele vir ao lume, mas
recusa: Coração me apertou estreito… Eu
não queria ser chefe! (pág. 104). Vão a eleições, um processo complicado,
em que Zé Bebelo é nomeado (pág. 120). Dá-se a seguir a partilha comovedora dos
bens de Medeiro Vaz (121). Zé Bebelo tem qualidades de comando, começa por
subdividir o grupo em quatro pelotões e dá as suas primeiras instruções. É um
homem feliz.
Terceira Parte
Volta à infância e diz como tudo
aquilo começou
Riobaldo puxa a história para trás,
quando encontrou o menino Reinaldo, que não sabia nadar, e atravessaram o Rio S.
Francisco numa pequena barcaça. Minha mãe
estava lá no porto, por mim (pág. 147). Depois a mãe morreu, a Brigi, como era
chamada. O que foi uma grande tristeza para ele. Teve que amadurecer à força. A minha vida mudou para uma segunda parte
(pág. 149), desabafou ele. Encontra Zé Bebelo, um fazendeiro a quem ensinara
algumas letras, fora dele moço professor
(pág. 174), que o convida a entrar num grupo para acabar com os jagunços. Ele
queria ser deputado. Fala-lhe do desaire que teve Hermógenes no confronto com
as forças do governo, em que sofreram dez mortos (mas foram mais). Ele conseguira
escapar. Foi andando pelo sertão que vira um menino vistoso, chamava-se
Reinaldo. Gostou logo dele. Mas volta a recordar-se de Otacília da Fazenda
Santa Catarina, que viria a ser a sua mulher. Ele até ali ia às prostitutas,
uma delas Nhorinhá, cuja sensualidade e beleza admirava. Saiu com Reinaldo, que
surpreendentemente tomava banho sozinho
no escuro (pág. 199). A afeição deste era real. Ele mesmo se declarou a Riobaldo
como fiel amigo. Mais tarde revela-lhe um segredo: Ele não é Reinaldo, mas
Diadorim (pág. 214). Era um amor puro entre os dois sem qualquer viciice.
Riobaldo aborreceu-se com Zé Bebelo,
que tinha a mania de querer ser deputado, e adere ao
grupo de Joca Ramiro, convencido por Diadorim, que diz que ele é o homem que existe mais valente (pág. 205).
Mas Joca Ramiro está pela sua fazenda, tem os seus bandos sob a chefia de Hermógenes,
de quem Riobaldo não gosta. Ele era ruim…
fel dormido, flagelo com frieza (pág. 235). Era o alferes de Joca Ramiro. Disseram-lhe
que fora escolhido por ser duro, mal leal
de toda a confiança (pág. 236). Entram em muitas “guerras”, andar no sertão
é uma autêntica aventura. Sertão é onde
manda que é forte, com astúcia (pág. 19). Volta a recordar-se da Fazenda
Santa Catarina e de Otacília, de quando a foi pedir em casamento (pág. 262).
Diadorim teve ciúmes. No meio daqueles jagunços ele sentia-se diferente de
todos. Hermógenes era ali o chefe, o
primeiro tiro ele dava. Uma madrugada ele foi com o grupo fazer uma emboscada
aos homens de Zé Bebelo. Aquilo ensimesmou-o: ele ira matar gente humana.
O narrador intervala aqui a sua história para falar de Maria Mutema, que envenenou o . marido e
importunava o padre da terra, o qual acabou também por morrer (pág. 308). Voltou à
vida de jagunço, diz que Hermógenes o incentivava a ser mais odiento. Implicava
com ele, e passou a odiá-lo. Há uma reunião dos grupos na fazenda do carismático
Joca Ramiro, Riobaldo queria conhecê-lo, ele era o chefe dos chefes. Era um
homem de largos ombros, de aspeto imponente e grande presença: a gente olhava sem pisar os olhos (346) – confessou. Riobaldo saiu
para dar caça ao grupo de Zé Bebelo. Estava
condenado para matar. Conseguem por fim encurralar Zé Bebelo. Ele tinha boa
pontaria, mas não tinha coragem de o matar. E felizmente que alguém o alertou
que o queriam levar dali vivo – eram ordens de Joca Ramiro.
Zé Bebelo foi aprisionado e levado a
um julgamento sumário (pág. 356). Joca Ramiro deu voz a todos os seus “filhos”
para o acusarem ou defenderem. Vários o queriam-no morto, entre eles Hermógenes
– talvez ainda torturado. Riobaldo foi um dos que se ergueram para o defender,
pois ele não cometera nenhum crime, e até lhes podia valer num próximo desaire
que tivessem perante as autoridades. O julgamento é demorado, a sentença é
ouvida pela boca de Joca Ramiro (pág. 384), que o mandou em liberdade com um
cavalo e o seu fusil, na condição de ir desterrado para o Goiás e não voltar, ou
até ordens em contrário. Riobaldo estava a ficar farto daquilo, e um dia monta a
cavalo e vai-se embora. Mas Diadorim viu, vem atrás dele e fá-lo voltar para
trás: Que você em sua vida toda toda por
diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegando em mim sempre (406). Ele
não pôde recusar o seu pedido.
Paisagem do Grande sertão: Japalão
Quarta Parte
A Morte de Joca Ramiro
Algo trágico aconteceu que vai mudar
tudo: Mataram Joca Ramiro (pág. 415).
Foi Gavião-Cujo que o anunciou. Diadorim desmaiou. Hermógenes isolou Joca
Ramiro de Só Candelário e matou-o pelas costas, enterrando-o ali mesmo.
Convidam Riobaldo para ser chefe do grupo, mas ele recusou. A vida era uma
coisa terrível. Aproveita para sair desta desgraça e contar a sua ida à fazenda
Santa Catarina, onde conheceu Otacília. Fala de Brigi, sua mãe, e de seu
padrinho, Selorico Mendes. Recorda a singeleza de Nhorinhá, puta e bela, repisa nas contradições do
seu amor por Diadorim e Otacília (pá. 439). Há emboscadas, estão a ser
perseguidos pelos homens do governo. Riobaldo achava que quem devia estar ali a
chefiar o bando devia ser o Zé Bebelo. Alguém o foi procurar e juntam-se os
dois grupos para dar caça aos “Hermógenes”. Dos confrontos que faziam iam
registando mais algumas mortes. Riobaldo dá algumas sugestões, que Zé Bebelo
desaprova, ele é que era o chefe. Riobaldo dá como presente uma pedra-safira a
Diadorim, mas ele recusa-o: até em quando
se tenha terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro (pág. 530).
Continuam a caça a Hermógenes e Ricardão, mas aquilo ainda ia demorar. Diadorim
numa conversa aceita que Riobaldo se case com a moça da Fazenda de Santa
Catarina.
Nas suas caminhadas pelo sertão
dentro passam por lugarejos infetados pela peste, e esta é mais uma contrariedade
que têm de enfrentar. Zé Bebelo comandada na dianteira do grupo e dava a suas
ordens. Encontram um pretinho abandonado que levam consigo, era o Guirigó (pág.,
561). Mas aquela luta com o Hermógenes não estava a ter êxito. Desesperado ele
bebeu um pouco mais, e num cruzamento bradou para os ares: Lúcifer! Lúcifer! Ele queria vencer aquela batalha de qualquer
maneira, nem que tivesse de fazer um Pacto com o Diabo (pág. 601). Mas do lado
de lá não ouviu resposta. Ele sugeriu mesmo a Zé Bebelo que introduzisse alguém
para o bando dos Judas para os expiar e controlar.
Da mesma novela da Globo: o grupo de jagunços de Riobaldo
Quinta Parte
Riobaldo chega a chefe de bando
Chegam a Veredas Mortas. Riobaldo
começa a ficar aborrecido com a inoperância de Zé Bebelo, e vai pôr a sua
liderança em questão. Ah, agora quem aqui
é quem é o chefe? (pág.621). O caso é discutido no grupo, que se apercebe
que estavam na altura de mudar, e acharam que o novo chefe devia ser o Riobaldo.
Romperam então aos risos e aos gritos designando-o como o “Urutu-Branco” (pág.
625). Ele pega no seu pessoal e exercita o seu comando. Visita seõ Habão, que
cheio de medo lhe pôs tudo à disposição, mas ele só mesmo era enviar uma
pedra-topázio a Otacília como compromisso para o seu casamento, do que
encarrega um jagunço. Continua a sua incursão pelo sertão, recebendo hospedagem
e recebimentos. Precisava de renovar os cavalos e é isso que faz. Com ele
levava o menino Guirigó, pretinho que as moças adoravam e animava o grupo.
Andou longo tempo pelo sertão de Minas Gerais – terra pobre e triste.
Um caso curioso, passou por nhõ
Constâncio Alves. Riobaldo ao deparar-se com ele não o roubou, perdoou-lhe.
Isso podia ser sinal de fraqueza, e disse alto para os seus cabras: Perdoei este; mas, o primeiro a surgir
nestas estradas, paga! Acontece que o próximo homem que lhe apareceu
montado numa égua com uma cachorrinha atrás. Pareceu-lhe uma pessoa pobre e
miserável, a quem não lhe apetecia roubar nem matar. Mas ele tinha de cumprir a
palavra, e emendou: Bem, eu disse que
seria o primeiro que me aparecesse seria morto, e a égua foi a que primeiro me deu
nas suas vistas (pág. 682). O pobre homem borrou-se todo de medo. Prenderam
a cachorrinha e mandou embora o homem, que nem olhou para trás. Mas não iam matar
a cachorrinha, para quê? Ele queria dá-la a Diadorim, mas acabou por a soltar.
Ela correu feliz atrás do dono, que não tardaria a alcançar. Esta judiação fora
para lhe salvar a vida.
Riobaldo queria ir à fazenda de
Santa Catarina ver Otacília, embora soubesse que Diadorim não gostasse. Ele
estava dividido, ele era dois, diversos
(pág. 700). Houve quem entrasse nu grupo e quem quisesse sair, e ele deixou, na
condição dele devolver ao chefe o que lhe pertencia. Foi então que resolveu
fazer toda a travessia do sertão (pág. 719). Conduz os seus homens com
autoridade, mas também respeito, grande espírito de aventura, à laia do Oeste
Americano. Em nove dias atravessaram o sertão naquela zona, só um homem ficou
para trás depois de um ato de loucura em que teve de ser abatido. Aquilo fora
obra do Demónio.
Continuou
a sua cavalgada pela Bahia. Deu ordem para que não entrassem com bruteza nos povoados, nem se amolasse ninguém, sem a razoável
necessidade (pág. 749). E aproveita para ir à fazenda de Hermógenes capturar-lhe
a mulher, e assim o atrair. De seguida
tocharam fogo à casa (pág. 739). Contudo, procurou ser humano com ela: Dei ordem de bom tratamento (pág. 749). O
grupo de Hermógenes continuava longe. Param num povoado, ele foi para a casa
mais rica, onde estava as irmãs Maria da Luz e Hortência, foi comedido, pois tinha
a sua Otacília em mente. Pelo serão muitos campos estavam em chamas, era a
época das queimadas. Diadorim queria vingar a morte de Joca Ramiro, e ele tinha
de cumprir essa missão. Para tal chama para junto de si os homens de mais
confiança e experiência, como João Gronhá, Marcelino Pampa, João Concliz e
Alaripe. Por uns momentos descansam. Chove, jogam às cartas (pág. 772).
A
perseguição a Hermógenes prossegue, voltam para Minas Gerais, ele é difícil de
apanhar. Alaripe faz uma batida pela zona, viu um cavaleiro e os seus homens. No
grupo depreendem que se trata do bando de Hermógenes e montam-lhe uma emboscada.
Quando ele se aproxima desencadeiam o ataque. Dá missões de envolvimento ao seu
pessoal. No ardor da batalha ele verificou que já não tinha mando nenhum sobre
aquela gente: comandar é só assim: ficar
quieto e ter mais coragem (pág. 795). Mas depois de lhe dar batalha, de
terem ocorrido tantas mortes, Hermógenes
não fazia parte atual daquele bando (pág. 800). Era o grupo do Ricardão. Mandou-o
sair do seu esconderijo para o interrogar, mas como Diadorim se preparava com
uma faca para o matar, deu-lhe um só tiro, que o matou ali mesmo (pág. 804). Durante
o confronto, dez homens davam guarda à Mulher (de Hermógenes), ao menino Guirigó
e ao cego Borromeu (pág. 803).
Riobaldo
mandou a seguir vigias e espias saber por onde andava Hermógenes, e não lhe
traziam novidades. Até que aparece Suzarte a dizer que avistou mesmo o bando do
Hermógenes para as bandas do Paredão (pág., 808). Ele dispôs logo o bando para
lhe dar caça. Aparece por lá uma mulher ao longe, ele pensou que fosse Otacília
a vir pedir-lhe para apressar o casamento, mas não era ela, para seu grande
desapontamento (pág. 810). Há um pequeno desentendimento com Diadorim, e ele tem
de frisar que ele é o chefe. Submisso, ele responde-lhe que ele sempre fora o
seu chefe. A perseguição prossegue e inicia-se a batalha já num povoado. A Mulher,
o menino Guirigó e o cego ficam afastados da luta. Mas os seus homens estão a
firmar a sua posição.
A
luta está a tornar-se enorme. Pouco depois as coisas mudam, parte do povo dos Hermógenes,
que eram tantos, estão a rodear o seu pessoal, tomando a retaguarda (pág. 847).
Ele chegou a ter medo, a situação era perigosa. Riobaldo teve pena de ver ali a
um canto a Mulher, o cego Borromeu e o menino. Aquilo ainda estava demorado.
Eles eram trezentos e tantos. Estão
cada vez mais perto de Hermógenes. Diadorim era dos mais motivados em vingar Joca
Ramiro, e num momento que teve oportunidade, aproxima-se dele e crava-lhe uma
faca no ventre. Uma ousadia da sua parte, que lhe custou a vida. Riobaldo ficou
para morrer pág. 857). Ele nem queria acreditar. Vieram alguns jagunços gritar
para ele: Chefe, chefe, ganhámos, que acabamos com eles! Mas para
Riobaldo aquela vitória não lhe sabia a nada, tinha a enegrecê-la uma tragédia.
Por fim, a mulher do Hermógenes
pediu para que lhe trouxessem o corpo
daquele rapaz moço, vistoso, de olhos muito verdes. Enquanto a Mulher lava
o corpo, Riobaldo orava todas as rezas que sabia da Bahia. Então ela exclamou: A Deus dada, pobrezinha… (pág. 861). Era
um corpo de mulher, moça perfeita. Ele estarreceu de dor, agora podia perceber
o sentido de alguma das suas palavras, interpretar os olhos que ela lhe movia.
Ele já não sabia por que nome lhe chamar, e foi então que foi impulsionado a
dizer: Meu Amor! E de repente viu-se
abraçado à Mulher, que lhe ia lavar o corpo. E todos os (seus) jagunços decididos, choravam. Ela ia ser
sepultada no cemitério do Paredão. A partir dali andou por lá meio esquecido.
Sexta Parte
Epílogo
Nas Veredas-Mortas Riobaldo sentia-se endoidecer, não sabia como repor
Diadorim em vida. Eu estava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome
(pág. 864) – confessa ele. Como é que eu
sabia destronar contra a minha tristeza? – diz mais à frente. Baqueou por
lá, devastado. Foi parar uma casa pobre, levado por Alaripe. Ficou doente com
uma sezão especial, com febres altíssimas. Como já bastasse ficou desmemoriado,
via-se a dançar com demónios, que nem não
existem (pág. 866). Sem saber como levaram-lhe para casa de seo Ornelas.
Ele, a mulher, filhas e parentas, ainda foram quem o vieram animar, dizendo que
ele acabara com a jagunçada em Minas Gerais. Otacília estava cada vez mais
bonita e já a davam como sua pretendida, mas ainda queria guardar um luto por
Diadorim, afinal, Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins. Finalmente casa com Otacília,
não podia ter feio coisa melhor.
Uma paisagem do Grande Sertão
–
APRECIAÇÃO GERAL
Grande Sertão: Veredas é um
romance brasileiro pós-modernista, experimental – aqui cabe muita coisa. Tem
algo do “Realismo Mágico”, ao dar um
ar sobrenatural à vida, distorcer o tempo e o espaço, criar um ambiente mágico,
como aqueles pactos com o Dado de Riobaldo e de Hermógenes. O livro está narrado
na primeira pessoa, é uma autêntica confissão de Riobaldo, contando com alguma
nostalgia e um falar gostoso toda a sua vida de jagunço a um jovem doutor, que
o ouve pacientemente sem interferir. Não utiliza capítulos, o livro é todo
escrito de corrida, como se o ilustre ouvinte estivesse ali uma semana inteira
a ouvi-lo contar a sua história de vida. Recupera uma linguagem regional, lentamente
cozinhada no sertão, uma forma local de falar docemente deformada, por vezes lírica, cheia de neologismos, que chegam a confundir os leitores menos
sabidos. Para muitos, que já tenham visto e ouvido novelas sertanejas brasileiras
difundidas pelos canais de televisão poderá não ser tão difícil.
Riobaldo Taratana é, pois, um jovem
empurrado para a marginalidade, para os confins do sertão, onde vagueia por lá
como num labirinto infinito, palmilhando as veredas do Rio S. Francisco, e todo
aquele sertão imenso, o seu mundo. Não tendo estudado muito, revela às vezes
uma fresca sabedoria: Mestre não quem
sempre ensina, mas quem de repente aprende. Noutra parte diz: Quem desconfia é sábio. Sobre ser
jagunço diz: Fui eu? Fui e não fui. Não
fui! – porque não sou, não quero ser (pág. 300). E já antes tinha dito: De ser jagunço não gostava (pág. 86). Consegue
vencer mil e uma contrariedades. Quando chega a chefe do bando, exerce uma chefia
com muito saber e sensatez, de que se terá inspirado em Joca Ramiro. Mas ele
não queria ser jagunço, foi impelido a isso, sagaz, em vez de mandar prefere
comandar, para ter o poder mais diluído. Tem um coração puro, a sua rústica
sabedoria esta mesclada de ingenuidade. E tinha medo, pois viver ali era perigoso:
Eu tinha medo, medo em alma. Ele anda
por aquelas veredas por vezes a assaltar fazendas, a levar cativa uma mulher,
até a matar gente humana, e por outro lado, ó santa inocência! encomenda
a Maria Leôncia de rezar por mim um terço todo o santo dia, e,
nos domingos um rosário (pág. 15).
Mas João Guimarães Rosa não recupera
só uma linguagem perdida, ele reconstrói para nós o mundo sertanejo de
determinada época, os medos, as aspirações, o seu modo de sobrevivência, todo o
redil de relações sociais, económicas e políticas, as suas crenças. Fala de
pessoas, meio perdidas, enterradas numa terra árida, mas com zonas férteis e
rios caudalosos como o S. Francisco. E ele está a reportar-se a uma região,
onde cabiam bem duas Franças, se estendia a bocados de Goiás, norte de Minas
Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão: o sertão era o mundo. Eles estavam amarrados
àquela terra, e para além de si próprios e do sertão, só conheciam Deus no céu,
e o Diabo inferno. Embora Riobaldo diga, com a sua ciência natural que Deus existe mesmo quando não há. Mas o
Demónio não precisa de existir para haver (pág. 77).
Outro ingrediente que dá muita força
ao livro, lhe cria um suspense suplementar, é o amor reprimido de Riobaldo por
Diadorim, um belo jagunço de olhos verdes, que viu em menino, com mãos de fada,
e que lhe dedica uma amizade tão profunda e desinteressada que o torna irresistível.
O leitor estará sempre a ver onde aquela afeição vai parar, num mundo ainda tão
retrógrado como aquele no campo moral e sexual. Todos sabem que ele é um pouco
efeminado, mas é tão amigável e tão apaixonado por aquela vida de jagunço que acaba
não só por ser tolerado, como até respeitado. Diadorim teve ciúmes de quando
Riobaldo se declarou a Otacília, mostrando uma
meiga tristeza, muito definitiva (pág. 536). Não que também não afetasse
Riobaldo, que gostava demais dele
(pág. 537). Só ao fim é conhecida a sua verdadeira identidade, o que deixa
Riobaldo para morrer. Ele vai lá confirmar o facto no seu leito de morte, onde a mulher
de Hermógenes o ia lavar para ser sepultado, e com espanto confirmou o caso,
tão incrédulo estava. Ele era afinal uma mulher. Estava justificado para os leitores de formação mais
antiga aquela dualidade.
Grande Sertão: Veredas é, na verdade, uma autêntica
epopeia, não de reis ou príncipes, a reinarem ou dirigirem os seus Estados, mas
da gente marginalizada, acossada pela pobreza da terra e pela violência do meio
social, nascida num mundo árido e hostil, que se junta para enfrentar à sua
maneira violenta aquela vida difícil, e tentar sobreviver. O autor em maio de
1952 fez uma incursão de 240 quilómetros pelo sertão de Minas Gerais para se
documentar para esta sua obra. Riobaldo Taratana, o nosso herói, é um homem de origem dúbia, que chegou a andar
a pedir esmola, trabalho que mesmo feito em fé de promessa, teve
vergonha (pág. 138). Era órfão de mãe, e não conhecendo o pai, que desconfiava
ser o padrinho, vai a seguir integrar um bando de jagunços, aceitando aquela
vida de guerreiro aventurosa, fugindo do ambiente social em que vivia. Com a sua
sabedoria, coragem e prudência chega a chefiar um bando, contribuindo para a
extinção dos jagunços de Minas Gerais, tornando-se um herói lendário do sertão brasileiro.
A grande fortaleza do livro não está
na sua raridade formal, apesar de bem delineada, já tinha sido ensaiada por
outros escritores, e até na investigação sociológica, mas na recriação de uma
linguagem com algo de inovador, inocente, ingénua, quase poética. Ela há muito
que existia, mas os romancistas raramente lhe deram voz: O senhor ache e não ache. Tudo é e não é. Uma linguagem mesclada de
várias culturas, que ele vai recolher ao sertão como fosse buscar um diamante,
e depois a inventiva, a lapida de arcaísmos e neologismos, cultivando-a de um
saber silvestre, dotado de uma ciência encantatória. Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. Outro ponto forte do
romance é o ter dado voz ao povo sertanejo de uma dada época, quando ainda se estava a explorar aqueles imensos espaços, mundos do mundo,
reconstruindo a sociedade daquele tempo, e de uma forma que nos permita
perceber um pouco a razões da violência daqueles bandos de jagunços, tornado-os tão selvagens como o eram aquelas terras de Deus. Grande sertão: Veredas
foi considerado num círculo de leitores da Noruega como um dos cem mais importantes livros do mundo, sim, é um dos mais belos romances de sempre.
06/06/2019
Martz Inura
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