EÇA DE QUEIROZ I




 
EÇA DE QUEIROZ
ROMANCE
A Cidade e as Serras
EDITORA LIVROS DO BRASIL


O HOMEM
José Maria Eça de Queiroz nasceu a 25 de Novembro de 1845, na cidade da Póvoa do Varzim. O pai, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, era uma pessoa importante, formado em Direito, foi magistrado e Par do Reino, Juiz da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, defendera Camilo Castelo Branco naquele célebre processo de Ana Plácido. Com 20 anos apaixonou-se por Carolina Augusta Pereira de Eça, dois anos mais nova. A relação não foi aceite pela família desta, mas os dois continuaram a encontrar-se e ela teve uma gravidez inesperada, tendo que a esconder e fugir de casa para que o filho nascesse longe e se evitasse o escândalo social. Isto era comum nesta época. Nascido antes do casamento, foi registado apenas com o nome do pai, portanto, filho de mãe incógnita, e entregue à madrinha, que foi a viver com ele para Vila do Conde. Aos quatro anos os pais casaram, mas não o foram buscar, ainda para fugir às bocas do mundo, e o menino foi entregue aos cuidados dos avós paternos, em Aradas, perto de Aveiro. E quando em 1895, já com dez anos, regressou ao Porto e ao convívio dos pais e dos irmãos, teve dificuldades de se integrar, não se sentia filho daquela família, que na prática o rejeitara, os laços íntimos de familiaridade paternal e maternal, bem como filial, não tiveram a devida gestação: ele sentia-se ali como um filho adoptivo. Foi talvez por isso internado no Colégio da Lapa no Porto, e aos dezasseis anos, em 1861, segue para Coimbra para frequentar o curso de Direito, onde fez amizade com Antero de Quental. Em 1866 conclui o curso, fez carreira de advogado e jornalista, chegando a ser director do semanário O Distrito de Évora. Desde este período e até aos fins da vida foi sempre colaborador de vários jornais e revistas. Entre 1869 e 1870 dez uma viagem ao Oriente, assistindo à abertura do Canal do Suez. Entre 1871 e 172 esteve por Lisboa, colaborou nas Farpas, esteve na organização e participou nas Conferências do Casino. Nesse mesmo ano entrou para a administração pública, sendo nomeado administrador do concelho de Leiria. Concorre à carreira diplomática, ficando em primeiro ligar do concurso. Em 1873 é cônsul de Portugal em Havana, e de 1874 a 1875 em Newcastle, Inglaterra, onde escreve O Crime do Padre Amaro, entre outras obras; de 1875 a 1887 em Bristol, naquele mesmo país, onde escreve obras importantes como O Primo Basílio, A Tragédia da Rua das Flores, O Mandarim, A Relíquia. Mais tarde, em 1888, iria exercer as mesmas funções em Paris, escrevendo aqui as suas últimas obras, de que se destaca Os Maias, A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras, este publicado postumamente. Foi só com 40 anos que casou com Emília de Castro, de quem teve três filhos e uma filha. Faleceu na sua casa, perto de Paris, em 16 de Agosto de 1900, de grave doença, ainda hoje mal diagnosticada, tinha apenas 55 anos.  

A OBRA
A obra de Eça de Queiroz é vasta e muito importante, e maior seria se não morresse tão cedo. É constituída sobretudo por romances, contos, cartas, crónicas. No romance a sua obra costuma definir-se por três fases: a primeira, a Fase Inicial, em que escreve obras de teor romântico, fantástico ou policial, ainda à procura de se afirmar, como as que podemos ver na Prosas Bárbaras ou O Mistério da Estrada de Sinta; a segunda, a Fase Realista, em que escreve ao gosto desta escola, que ajudou a implantar em Portugal, como O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias, O Mandarim, A Relíquia; e uma terceira fase, a Fase da Maturidade, mais moderado nas suas convicções, mais voltada para a Natureza, como A Correspondência de Fradique Mendes, A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras. Convém ver o encadeamento da publicação das suas principais obras, algumas saídas postumamente:
- O Mistério da Estrada de Sintra (1870)
- O Crime do Padre Amaro (1875)
- O Primo Basílio (1878)
- O Mandarim (1880)
- A Relíquia (1887)
- Os Maias (1888)
- Uma Companha Alegre (1890-91)
- Correspondência de Fradique Mendes (1900)
- A Ilustre Casa de Ramires (1900)
Mas muitos dos seus livros seriam editados postumamente. A Cidade e as Serras que terá sido escrita até 1900, foi publicado em 1901, as Prosas Bárbaras, escritas na década de 60 nos jornais, em 1903, A Capital em 1925, e as suas cartas e muitas outras publicações, que poderão consultar em estudos mais especializados. A Tragédia da Rua das Flores, escrito de 1877 a 1878, por tratar de um incesto e poder ferir as susceptibilidades da família só foi publicada em 1980.





O ROMANCE ESCOLHIDO: A Cidade e as Serras
Razões para uma escolha
Há romances de Eça de Queiroz que nos marcaram, O Crime do Padre Amaro, e a sua denúncia ao poder exercido pelos padres e pela igreja, questionando a noção de pecado e o exagero da crença, O Primo Basílio, talvez o romance com a intriga mais intrincada e forte do autor, com o adultério praticado por Luísa e as suas consequências funestas no futuro (o tema incesto, que tem a ver com o próprio nascimento do autor, e o adultério, já tinham sido tratados em A Tragédia da Ruas das Flores, como dissemos, e sempre mereceram a sua predilecção). Segue-se Os Maias, outro livro muito importante, há também uma relação incestuoso entre irmãos, Carlos e Maria Eduarda, com uma crítica feroz a uma aristocracia falida e à vida social da época. A Relíquia foi outro livro que pela ironia como trata a sociedade, a crítica que faz à beatice, sempre nos atraíram bastante. Contudo, acabamos por optar por A Cidade e as Serras, escrito já no fim da vida, com o autor mais maduro, já reconciliado consigo mesmo, escrevendo ao sabor da pena, naturalmente sem grandes pretensões literárias, mas ainda assim belo e interessante.

PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES
- Jacinto Galeão, nascido francês, mas portuguesinho de gema, de fartos bigodes, assertivo, inicialmente voltado para os requintes da civilização, e que por fim vai optar por uma vida mais tranquila no seio da Natureza. Tem uma natureza altruísta, é amante da ciência e da erudição.
- Zé Fernandes, o narrador amigo de escola de Jacinto, que o vai acompanhando durante toda a sua vida com um olhar compreensivo e afectuoso, a quem analisa com o requinte de psicólogo. Não o critica para não perturbar nele o impulso natural de exercer a sua plena individualidade.
- Madame Colombe, uma prostituta parisiense com quem Zé Fernandes mantém uma relação ardente, que ainda o vai fazer sofrer quando ela de repente desaparece, deixando-o a curar uma paixão assolapada.
- Madame D´Oriol, uma senhora casada, amante de Jacinto, que traduz um pouco a moral e o nível libertino das relações da sociedade parisiense da época.
- Joaninha, a prima de Zé Fernandes, um jovem de cabelos louros e pele nívea com quem Jacinto vai casar e lhe dá dois filhos. Com dois pequenos rebentos a criar não é atraída por ir passar a Paris uns meses. Parece ser de natureza cordial e conservadora.
- Tia Vicência, tia de Zé Fernandes, é uma senhora simples e bondosa, que se esmera na cozinha. 
- Grilo, o criado negro de Jacinto, que o serve com muita lealdade, respondendo com inteligências às perguntas que lhe fazem sobre o patrão.

SINOPSE DA OBRA

I Capítulo
Zé Fernandes, o narrador deste romance, é um português em Paris à procura de concluir os seus estudos por ter sido expulso da universidade em Portugal. Começa por apresentar o seu amigo Jacinto, descendente de D. Galeão, um miguelista ferrenho, que depois da queda de D. Miguel o segue no seu exílio, indo viver para Paris, levando consigo a sua mulher, D. Angelina Fafes e o seu filho Cintinho. Este era muito doente, ainda sobrevivera a um achaque «com a ajuda de uma promessa que a sua mãe fizera ao Senhor dos Passos de Alcântara», mas já casado, tuberculoso, certa vez cuspiu sangue e “passou como uma sombra”, morreu. Felizmente que três meses e três dias depois nascia um novo Jacinto.
Paris estava a ser atingida por uma vaga de progresso, era o centro cultural do mundo, a ciência e a tecnologia produziam aqui os seus frutos, o luxo na sua casa, o 202, estava tomado desse esplendor. Daí que Zé Fernandes considerasse Jacinto o «Príncipe da Grã-Ventura». Este, estava enfeitiçado com a ideia da vida na cidade, onde se podia ter acesso aos benefícios da Civilização, com os seus fiacres, mercados, bancos, canos para gases e canos para fezes, mil e um instrumentos facilitadores da existência. Para ele a vida no campo era rude, monótona, dada aos espíritos primitivos. A Natureza era impassível, no meio dela cerca-nos a solidão, «toda a intelectualidade esteriliza, só resta a bestialidade».
As suas convicções tinham sido racionalizadas, repensadas, levando-o mesmo à concepção de uma filosofia: «o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado», que resumida ou equacionada pela seguinte fórmula: «Suma ciência X Suma potência = Suma felicidade». «A religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror». Zé Fernandes descrê da filosofia do seu amigo, mas nem por sombras o queria desgostar. Porém em Fevereiro de 1880, seu tio, Afonso Fernandes, já velho, chamou-o a Portugal, a Guidães, e ele regressa. Sete anos mais tarde, em Setembro o seu tio morria, e na matança do porco casou a sua afilhada Joaninha. Voltou então a Paris.

II Capítulo
Em Fevereiro Jacinto regressa a Paris, ao número 202 dos Campos Elísios, e vai encontrar a casa como sete anos antes, se exceptuarmos algumas inovações técnicas, como um elevador eléctrico, um calorífero, o telégrafo e «uma legião de instrumentozinhos de níquel», «de utilidades duvidosas». Os compartimentos mantêm ou melhoraram o seu antigo luxo, com as suas estantes de ébano, luzes inspiradas no céu, damasco nas paredes, biombos de laca verde, aparelhos e apliques de uma mecânica sumptuosa, vivendo uma vida cheia de subtilezas, que ele parece enaltecer, ironicamente, mas que no seu íntimo detesta. Repare-se que a casa, embora luxuosa é um número, o 202, desumanizada e impessoal.
Conversam sobre temas pretensiosamente modernistas, com a economia política de Adam Smith, a filosofia de Hobbes, sem deixar de evocar o clássico Platão. Rodeia-se de Histórias Universais, e de brochados ainda cheirando a fresco sobre as ciências mais recentes como a Orografia, a Paleontologia, a Cristalografia, a História Religiosa, a Exegese Religiosa, ciências e estudos que parecem estar ali divinizados, mas de cuja utilidade e rigor não o parecem seduzir, e para as quais olha com um ar sarcástico. Depois convida-o para jantar e fala do coronel Dorchas e da maravilha que é a Metafísica Positiva, (que Augusto Comte andava a desenvolver), bem como um mestre em Ciências Sentimentais, um pintor mítico, que tinha chegado à interpelação de coisas estúpidas e ridículas como «a simbolia rapsódica do cerco de Tróia».
Zé Fernandes ainda que recuse inicialmente jantar, acaba por aceitar o convite, defrontando-se com mesas com talheres de «seis garfos de feitios astuciosas», cuja utilidade parece duvidar. Vinho em infusas de cristal, baldes de prata. Na sala, um aparador «sob o luxo redundante, quase assustador de águas». Pois havia águas, oxigenadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas com sais, algumas rodeadas de autênticos tratados terapêutico impressos nos rótulos. Bem, mas dispondo de tanta água, Jacinto ainda não tinha encontrado nenhuma que lhe apagasse a sede, e ia comer como todo aquele aparato, mas nem sequer tinha apetite. Parecia alquebrado, cansado, com um olhar desconsolado. As maravilhas da Civilização não estavam a sortir o efeito desejado, quando Zé Fernandes afirmava Jacinto como “Príncipe da Grã-Ventura”, no fundo, estava a satirizar o amigo.

III Capítulo
Zé Fernandes, agora a viver no 202, aproveita para descrever a vida quotidiana do seu amigo, cheio de horror aos micróbios, banhado, barbeado e friccionado, com os seus sofisticados utensílios de cristal, de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola. Grilo, o criado, vai-lhes dando uma ajuda. Jacinto tem uma vida social preenchida, é presidente, sócio, director ou simples membro das mais variadas instituições, que culminavam no pomposo nome da Companhia dos Telefones de Constantinopla. E o inesperado numa mansão tão luxuosa e moderna acontece, rebentou um tubo de água que inunda a casa de água quente, tendo de ser chamada a polícia e os bombeiros. Um incidente banal é noticiado nos jornais como o acontecimento do dia, o que dá a ideia sarcástica da futilidade da imprensa daquela época. A casa é objecto da curiosidade das pessoas, Madame d`Oriol, toda de preto, vem mesmo ali ver as ruínas, comprazendo-se da desgraça alheia. Também a vida sexual de Jacinto é investigada, parece não estar a ser bem conseguida, estranha mesmo certas amizades. Encontra porém indicadores de uma relação mais intensa com o elemento feminino, Diana de Lorge, afinal uma cocotte. Zé Fernandes está cada vez mais chateado com a vida que leva em Paris, que lhe parece um “enorme e grosseiro bazar, “uma seca”. Por fim decidem reencontrar-se com um ambiente natural e simples, e ir no domingo seguinte ao Jardim das Plantas ver uma girafa.

IV Capítulo
Envolto naquele súbito progresso, imerso em livros e mecanismos estranhos. Jacinto anuncia uma festa no (número) 202, em que vai ser convidado o grão-duque, e logo por azar a tecnologia falha: faltou a energia eléctrica, tendo de ser chamado um engenheiro para a restabelecer. Estão presentes entre outros, Madame d`Oriol, o duque de Trèves, a Madame de Trèves, o historiador Danjon, um psicólogo que vai falar de um livro, mas que comete um erro de apreciação e é desautorizado pelo conde Mariazac. A casa está cheia de utensílios da última moda, tem um microfone, um grafofone, um teatrofone, um numerador de páginas, um colador de estampilhas, objectos de uma complexidade e estranheza, que nem todos compreendem, e que a alguns enfada, até ao próprio Jacinto. Finalmente chegou o grão-duque Casimiro, atrasado mas ainda a tempo do peixe, anunciada pela marcha de Rakoczy. Mas a tecnologia ainda voltaria a falhar: avariou o elevador, enclausurando peixe raro vindo da Dalmácia, que ia agora mesmo ser servido. Isto interessou ao grão-duque, que o queria pescar no fosso, demonstrando a sua perícia, mas sem resultado, teve que se contentar com o cordeiro. Mesmo assim ainda se divertem, considerando porém, que «Paris estava a perder as suas superioridades». Zé Fernandes ia-se rindo de tudo aquilo, e comentou sarcasticamente que a si não coube sequer um fone. Há uma conversa sobre esmeraldas, ao que o banqueiro Efraim diz que «há esmeraldas sempre que haja accionistas», a atestar o poder do dinheiro, e comentários sobre nádegas, denotando mau gosto e o machismo de alguns presentes. Passada a festa, três dias depois Jacinto recebe uma carta de Portugal informando que grossas chuvas criaram uma enxurrada que fez ruir a pequena igreja da quinta, onde jaziam os seus avós desde os tempos de el-rei D- Manuel. Jacinto ficou preocupado e telegrafou ao Silvério para que “desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas e reedificasse a igreja”.

V Capítulo
Apesar dos desastres desencorajantes «com as torneiras que se dessoldavam, os elevadores que emperravam, o vapor que encolhia, a electricidade que se sumia», Jacinto, que também teria ali obras derivadas das anteriores inundações, ainda introduziu mais melhoramentos. Todos os dias descarregavam ali máquinas e mais máquinas. Por aqueles corredores da casa mal se passava, obstruídos por andaimes e baldes. Depois vieram livros e mais livros. Imagine-se que havia lá «um pavoroso Dicionário da Indústria com trinta e sete volumes». No meio de tantos códices, brochados e fólios quase partia um rótula do joelho, quando tropeçou num calhamaço, e adormecendo sonhou com um mundo aterrador feito de livros. Zé Fernandes para se livrar do 202 resolve dar uma volta pelos boulevares de Paris, onde encontra Madame Colombe, uma amante com quem tem um aventura louca de sete dias. Nela ele apagava a sua «alegria nas cinzas da sua tristeza». Desfez-se mesmo de alguns dos seus bens em proveito dela. Mas um dia chega ao seu quarto, na Rua do Helder, e ela tinha desaparecido. Lá teve que sofrer aquele desgosto de amor. Embebedara-se, o que fez para vomitar aquela paixão! Aquilo talvez lhe passasse quando de manhã tomou um banho e se perfumou «com todos os aromas do 202». Já recuperado repara que Jacinto anda definhado, murcho e corcunda e interroga o criado Grilo sobre tal questão, ao que ele responde que ele sofria do mal da fartura. Zé Fernandes ainda o quis convidar a sair até Fontainebleau, até Montmorensy, mas não o convenceu: «Para o campo? O quê? Para o Campo?» – respondeu. Ali quis ficar no seu gabinete verde, na sua biblioteca de ébano, «onde acumulara Civilização em máximas proporções». Rodeado de «todos os aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos» ia-se desencantando do «embaraço de viver».   

VI Capítulo
Jacinto todas as tardes visitava a Madame d`Oriol, sempre com um desagradável ciúme dela ir jantar com outra pessoa que não ele. Num domingo aceitou o convite de Zé Fernandes, embora a contragosto, para visitar a Basílica do Sacré Coeur que estava a ser construída. Mas aquela, ainda «abafada com tapumes e andaimes», não os pareceu atrair. Isto serviu para Zé Fernandes chasquear sobre o falso fausto da cidade de Paris, e sobre a inutilidade do 202, com os seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua mecânica, os seus trinta mil livros, vendo a justiça que ali imperava, com os seus milhares sem-abrigo, com crianças a viver debaixo das pontes. E, qual Karl Marx, põe-se a desancar naquela sociedade: «A tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá nesta amarga desarmonia social se o Capital der ao Trabalho uma migalha ratinhada». Encontram-se com Maurício Mayolle, colega das Metafísicas, e admiram-se por não se verem há três anos, como se aquela cidade fosse um deserto. Este discorre sobre o Cartesianismo, do Hartmanismo, do Nietzschismo, e não sei que mais sistemas estapafúrdios, fala-lhe da sua viagem à Índia, onde pôde beber das suas religiões e filosofias esotéricas, e quando se afastou, Zé Fernandes opinou que aquela erudição bem exprimida reduzia-se a nada, era uma seca. E o seu Príncipe, já aborrecido, resolveu jantar ali perto, mandando gelar duas garrafas de St. Marceaux, depois de umas escolhas esquisitas. Bocejava, mas a paisagem distraiu-o, manifestando a intenção de construir nos cimos de Montmartre uma casa com o miradouro no alto para «descansar de tarde e dominar a cidade».

VII Capítulo
Jacinto, acompanhado por Zé Fernandes, andava agora obcecado por Madame d`Oriol, uma senhora casada na casa dos trinta, conservado e mundana, cuja maior preocupação era adornar-se, praticando uma falsa caridade, dando expressão à consciência social da burguesia. Numa tarde deparam-se com o marido à entrada. Este está escandalizado, diz que se estavam a separar, porque ela andava com um lacaio. Ainda se fosse na província, tudo bem. «E lá até com os animais». Agora em Paris, onde vivia, não podia consentir que tivesse amantes fora da sua roda (em que se incluía o seu Príncipe). Estava uma fera. Isto dá uma ideia clara da lassidão dos costumes da cidade naquela época.
Já farto de tudo aquilo, Zé Fernandes resolve fazer uma viagem pela Europa. Trinta e quatro jornadas fez ele à pressa, catorze vezes subiu derreado atrás de criados escadas de hotéis, oito vezes travou bulhas entre os cocheiros que disputavam a viagem, visitou vinte e nove catedrais, trilhou em catorze museus, foi a Veneza, onde chovia desalmadamente, enfim, chegou estafado, talvez com saudades da sua santa terrinha. Depois de tomar um retemperado banho foi ter com o seu amigo Jacinto, encontrou-o envelhecido e triste, e ele próprio confessou andar por ali como um morto. Pela primeira vez reconheceu que estava a ficar farto de cidade.  
Veio encontrar Jacinto de ar taciturno e cansado, quando tinha ao dispor todos facilitadores da Civilização para ser feliz. Jacinto argumentava que o mal devia estar nele. Via-o aproveitar-se da modernices, a empenhar-se em festas e reuniões, a adoçar a sua consciência burguesa com acções humanitária, fundando um hospício para velhinhos e outro para crianças, e nada resultava. Neste capítulo Zé Fernandes ainda lhe voltou a falar da pobreza da cidade, completamente abandonada, ao contrário da pobreza da sua terra, mitigada pelas relações de vizinhança. Tudo o que fazia era trespassado de nulidade, tudo era vaidade. Entregou-se então ao culto do Pessimismo, com a leitura do Ecclesiastes e de Schopenhauer, e tudo o entediava.   
Festejam-se os trinta e quatro anos de Jacinto, ele recebe uma carrada de presentes, e nenhum o atrai, à excepção de um que é uma mesa que podia ter várias alturas. As flores que recebera bem podiam ser destinadas ao seu enterro. Aquilo era uma seca, uma chatice, aqui teve saudades do seu Portugal pequenino, embora nem estivesse a par das obras na sua quinta. Como a pedir ajuda perante o seu tédio, Jacinto dá uma volta pelos seus aparelhos facilitadores da vida: o telégrafo, o telefone, o fonógrafo, o radiómetro, enfim, muitas, mas deles não obteve qualquer auxílio, a não ser do monumental relógio que tinha na sala, que anunciou a meia-noite. Resolveu ir então à procura de um livro, eles eram agora setenta mil, mas não encontrou nenhum que lhe agradasse, ficando-se por um Diário de Notícias amarrotado, que levou para o quarto para adormecer de algum esquecimento.

VIII Capítulo
Por fim Jacinto decidiu-se partir para Tormes. Recebera a notícia que a pequena igreja tinha sido reconstruída, e queria assistir a trasladação dos restos mortais dos seus antepassados. Zé Fernandes ficou satisfeito, mas estava incrédulo com esta reviravolta. O seu Príncipe estava já a discriminar as coisas que queria levar. Com antecedência mandou uma remessa com mobílias e confortos pelo comboio. Depois pôs a reunir o resto, claro que ia incluir muitos livros, de que se destacava a História Natural com cinco tomos, de Plínio, de Geologia a Astronomia, tendo ainda umas cunhas de Metafísica, e, claro, grande parte dos seus aparelhos. Ainda fizeram uma última viagem por Paris, cheia de vida, para se encontrarem com os seus amigos: era muito grave «deixar a Europa».
Partiram finalmente levando como criados Grilo e Anatole e vinte e três malas. Jacinto apesar de dispor de uma cabina ainda protestou do serviço. Passaram França, cita Chartres e Biarritz, depois Espanha, onde algumas malas desapareceram. Aquilo era uma chatice, ele nem uma camisa tinha. Finalmente entram em Portugal, que cheirava bem. As paisagens do Rio Douro eram belíssimas. Não demoraram a chegar à Régua, duas horas depois chegariam ao seu destino, a Tormes. Mas o impensável aconteceu: não estava ali Melchior à sua espera com os cavalos para os transportar, nem desembarcaram com eles Grilo e Anatole com as bagagens. Onde estariam? Aquilo era o caos! Arranjaram de um conhecido uma égua e um jumento para os levar à quinta, mas chegados lá, recebeu-os o humilde Melchior, as obras da casa estavam atrasadas e seguiam a um ritmo muito lento, só contavam com ele em Setembro para as vindimas.
«E agora, Zé Fernandes?» – perguntou Jacinto desnorteado. Ele ainda tinha que ir para Guiães. Desceram e andaram por ali à volta. Daqui a pouco tiveram uma sede enorme, que Jacinto satisfez numa bica campestre ali perdida. Foram comer e Melchior mandou uma moça de seios fartos servi-los, trazendo-lhes um caldinho e uma infusa de vinho. Só depois veio uma travessa com galinha e um arroz de favas. A fome era tal que até gostaram. Jacinto está tão desiludido que pensa em ir a Lisboa falar com o seu administrador, o Sezimbra, mas nem roupa decente tinha – queixou-se. Zé Fernandes prometeu-lhe enviar alguma de Guiães. A casa não dispunha de camas, e vão dormir os dois em duas enxergas. Quando se vão deitar, Jacinto, que estava habituado a adormecer depois de passar os olhos por um livro, desgraçadamente não tinha ali nenhum, e Zé Fernandes resolveu o problema rasgando uma página do Jornal do Commercio que trouxera de Paris. E ali tentaram os dois adormecer à luz de velas de sebo, com Jacinto a pedir que lhe marcasse para Lisboa uma estadia no Hotel Bragança

IX Capítulo
Zé Fernandes regressa a Guiães e envia um telegrama para o Hotel Bragança em Lisboa à espera que o seu Príncipe recuperasse Grilo e a Civilização, mas não obtém resposta. Uns dias mais tarde, saindo, verificou através de um sobrinho de Melchior, que ele não tinha chegado a sair de Tormes e foi visitá-lo. Mas Jacinto está tão ocupado com as obras na casa, com o cultivo da terra e aquele ambiente natural da quinta que nem ligou às suas malas, que foram parar por engano a outra Tormes, em Espanha. Está admirado com a mudança que encontrou no seu Príncipe, ele agora está muito mais voltado para a Natureza e suas criações, desdenha do pessimismo de Schopenhauer. Ele ainda lê a imprensa, mas passou a interessar-se mais por Virgílio e as Bucólicas, Homero e a Odisseia, Miguel Cervantes e D. Quixote de la Mancha, que em Paris nunca tivera paciência para ler. Ele chega com uma nova filosofia: “A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças que se relevam, e que atingem a sua expressão suprema, que é a Forma” (página 166).    
Ocorre depois a cerimónia da trasladação dos ossos, que Jacinto aprecia pelo seu simbolismo. Mas uma surpresa estava reservada para si, afinal viera a Tormes por causa dos ossos do avô Galeão, e eles não estavam ali enterrados, jaziam por aí por esse Portugal. Era sete ossadas e meia, os restos mortais que encontraram nos chãos da igreja, já que uma era de uma criança. Os trabalhadores puseram cada caveira com parte proporcional dos ossos, de modo a contestar cada uma, pois não sabiam a quem pertenciam, quando houvesse Juízo Final os defuntos que os voltassem a reunir correctamente. Muitas pessoas do lugar assistiram, o abade, de cabelos brancos, procedeu às cerimónias, fazendo conduzir o esquife para a capelinha, e ali chegado, depois de uma rezas em Latim, tomando levemente o hissope aspergiu água benta para o ataúde, numa última purificação. Esta cerimónia, pela sua simplicidade campestre pareceu a Jacinto ser uma delícia, descobriu nela mesmo um certo encanto. 
Jacinto agora está mais disposto a desfrutar da Natureza, interessado em saber quais as árvores que mais depressa cresciam. Ele sonhava com uma Tormes coberta de árvores, mas ali tudo era lento, um eucalipto fazia-se em seis anos, mas um carvalho demorava trinta. Ele entrara agora numa nova fase, a do Optimismo, era tanta a sua energia que queria plantar mais árvores, fazer currais para gado que ia criar, ir buscar água para a quinta, construir uma queijaria, fazer uma lavoura moderna. Zé Fernandes aprovava estas ideias de aqui ser um paraíso, mas Melchior e Silvério que trabalhava aquela terra há muito, argumentaram que também havia o nevoeiro a subir as encostas, o vento e as chuvas fustigantes, não estavam assim tão entusiasmados com a bondade das serras, nem com tanta inovação. Como tinha mudado Jacinto! Ele “era agora uma alma que se simplificava – e qualquer pequeno gozo lhe bastava, desde que nele entrasse paz e doçura”.  

X Capítulo
Na véspera de Zé Fernandes regressar a Guiães, Jacinto fez com ele e com Silvério uma visita às suas terras. O Inverno estava a chegar, isto ia pôr à prova a resistência do seu Príncipe ao mau tempo, mas ele já parecia encarar bem a coisa, mandara mesmo abrir uma mala de Paris com agasalhos. Pelo caminho param num alpendre para se abrigarem da chuva. É conversando ali com Silvério que ficam a saber que o Esgueira tem a mulher está doente, e embora haja ali médico e botica, eles mal têm dinheiro para comer, quanto mais para ir ao médico e comprar remédios. E também há fome, o que muito admira o seu Príncipe. Ele próprio decide ali mesmo que dentro da sua quinta essa situação era inadmissível, e começou por visitar o caseiro da Esgueira. Ao entrar na casa chovia lá dentro, a situação era de miséria, aparece um rapaz a pedir por lá. Dão-lhe um tostão. Não quer mais miséria desta na sua quinta, e antes de mais manda chamar o Dr. Avelino para que a examine e se mande comprar remédios. Aparece aqui Jacinto a fazer assistência social, o seu lado altruísta manifestou-se, não a caridadezinha de Paris. Começou então a pensar em acudir a toda aquela miséria, queria estudar as rendas, melhorar o que pudesse melhorar, mas o problema era colossal, tinha de pensar primeiro. Silvério está tão habituado àquela miséria que a considera natural, e como descrê daquela filantropia, que lhe parece inacreditável. Mas Jacinto está firme na sua convicção. Era grande a chaga social na sua quinta, mas felizmente podia valer-lhe. 

XI Capítulo
Zé Fernandes visitava agora habitualmente Tormes, onde via o seu Príncipe celebrar o rejuvenescimento, a caridade, os pitéus, as quimeras agrícolas. Até a tia Vicência mostrava curiosidade em conhecer o homem, e havia de o ter em Guiães para os anos do sobrinho. Falou-se de mulheres casadouras mas não havia muitas, a Melo Rebelo, que era engraçada, a prima Joaninha, uma perfeição que a Zé Fernandes, criado que fora com ela, não lhe dizia nada. Mas o seu Príncipe andava agora voltado para a assistência social, estava a pensar em fazer uma escola, criar uma biblioteca, elevar a botica a farmácia, e até pensara em trazer projecções de lanterna mágica. Queria que se ensinasse àquele gente História Santa, História Romana e até História de Portugal. As conquistas da Civilização estavam outra vez a atraí-lo, mas para acudir a necessidades básicas. Ao tomar tantas iniciativas no interesse da terra, e pelo modo humano como vias as coisas, em Tormes a sua fama de homem generoso espalhava-se. Com as suas benfeitorias na terra não demorou a que visse nele um futuro político.

XII Capítulo
Chegou por fim Setembro e o aniversário de Zé Fernandes foi festejado em Guiães. Para desgosto deste não veio a prima Joaninha, por o seu pai estar doente. Jacinto chegou numa égua com um chapéu de palha, todo aperaltado: «É tudo das malas de Paris» – disse. Trouxe-lhe de presente uma caldeirinha de água benta em prata, nada de especial, o seu interesse residia em ter pertencido à princesa de Lamballe. «O almoço foi muito alegre, muito íntimo muito conversado». Zé Fernandes foi-lhe mostrar a casa a que ele teceu elogios pelas suas portas feudais. Levou-o a seguir ao sítio onde existiu um castro romano, e a ver a biblioteca que foi de seu tio. A tia Vicência estava encantada com ele, pois supusera-o arrogante, escarpado e difícil, e ele até lhe pedira «para se lembrar dele nas suas orações», como se ela tivesse grande poder junto da Providência divina. O seu Príncipe foi-se sentar por fim num canapé, onde acabou por adormecer. Entretanto chegava o tio Teotónio, felizmente sem a filha.  

XIII Capítulo
Na festa de anos, à noite, Jacinto apareceu com um traje elegante, uma rosa branca no jaquetão preto, gravata de seda branca, tufando e presa por uma pérola preta. Estavam muitos convidados, D. Teotónio, Ricardo Veloso, Dr. Alípio, Melo Rebelo, os manos Albergarias e muitas mulheres. Comeu-se e bebeu-se bem, Eça é especialista nestas descrições culinárias. Ainda recordaram o peixe raríssimo, vindo da Dalmácia, que ficou encalhado no elevador do 202, quando chamaram lá a casa o grão-duque Casimiro, irmão do imperador. Daqui a pouco estavam a falar de política, contava-se que Jacinto fosse miguelista, até havia o boato de D. Miguel estar por lá aboletado, e ele, até para aumentar a tensão não o desmentiu logo. Como já estavam a falar de forcas e a recordar atrocidades miguelistas, Zé Fernandes propôs que se jogassem duas mesas de voltarete, que foi aceite. No fim da festa o seu Príncipe louvou aquela ceia animada e desfez as apreensões da tia Vicência, confessando-lhe que era socialista, amigo dos pobres. Ela ficou mais sossegada dizendo que os seus familiares eram liberais.  

XIV Capítulo
No dia seguinte, Zé Fernandes e Jacinto montam a cavalo e vão dar um passeio até à Flor da Malva, a quinta do tio Adrião. Pelo caminho encontram o tio João Torrado, o profeta da Serra, que ao identificar Jacinto e enalteceu como o «pai dos pobres», insinuando mesmo que ele seria um D. Sebastião reencarnado, que ali vinha fazer justiça. Este mostrou-se admirado por ainda haver por aqui pessoas com crenças messiânicas. Chegados a casa do tio Adrião não encontram minguem, ainda tiveram que esperar, admirando a quinta. Há aqui belas descrições bucólicas: «hortas… com os seu debruados de alfazema, e madressilvas enroscados nos pilares de pedra, que faziam ruazinhas frescas toldadas de parra densa…». Mas pouco depois aparecia a prima Joaninha «com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabelos…».

XV Capítulo
O romance dá um salto de cinco anos para falar de um Jacinto que tinha casado com a prima Joaninha e já tinha dois filhos, um casal, cuidando da sua quinta com o sentido de responsabilidade que lhe dava o já ter uma descendência. Um ano depois chegara a última remessa de caixotes transportados por carros requisitados a toda a freguesia. Com aquela tralha, Zé Fernandes ainda pensou que o seu Príncipe ia perder-se na Civilização, já que ele tinha abandonado o inicial fanatismo da Simplicidade, mas Joaninha se encarregou de os fazer despachar para os sótãos da casa. Apesar de tudo ele não prescindiu de alguns benefícios da Civilização e mandou instalar o telefone em sua casa, bem como nas de pessoas com quem estava mais relacionado. Mas não havia a temer que regredisse, o seu Príncipe «estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele o da Grã-Ventura», até o seu fiel criado negro, Grilo, lendo o Fígaro dizia que o seu patrão estava firme nas suas novas convicções.

XVI Capítulo
Nos anos seguintes Jacinto ainda falou de um regresso ao 202 durante dois ou três meses, mas, invocando as mais variadas razões, normalmente ligadas aos filhos, Joaninha lá foi conseguindo aguentá-lo por Tormes. Zé Fernandes começou a sentir-se enferrujado, e depois de uma égua que lhe morrera partiu para Paris. Durante a viagem e já lá na cidade encontrou os velhos amigos e amigas, com os antigos hábitos, muito polimento e superficialidade, mais pó de arroz nas mulheres, os jornais com as mesmas notícias espampanantes, crimes e tumultos, muita propaganda erótica, mesmo pelas ruas, comida de que ninguém gostava, foi invadido por uma «estranha sensação de monotonia, de saciedade, como cercado já de gentes muito vistas, com histórias muito sabidas, que murmuravam coisas muito ditas, através de sorrisos muito estafados». Àquela cidade movia-a o «lucro e o gozo».
Depois de se ter instalado no Grand-Hotel foi visitar o 202, o porteiro recebe-o bem, perguntou por ele e pelos filhos, mas a casa,  desde a antecâmara, tinha os móveis, quadros, tapeçarias e móveis cobertos com lonas. Verificou ainda que todos aqueles instrumentozinhos de mecânica sumptuosa, que já foram modernos, dentro em pouco estariam obsoletos e seriam deitados para o lixo da história. A cidade era medonha, «em cada face avistada à portinhola de um fiacre, suspeitava de um bandido trabalhando; todas as mulheres lhe pareciam caiadas como sepulcros». E depois a multidão com sua pressa esperta e vã, a afectação das atitudes, as imensas plumas das chapeletas, as expressões postiças e arranjadas, a pompa dos peitos alteados», enfim, tudo aquilo lhe parecia pueril, ao ponto dele próprio aspirar logo ali pelos ares da serra. Chegou a Tormes e quando Jacinto lhe perguntou por Paris ele disse que aquilo estava medonho. Trazia prendas para os filhos, Teresa e Jacintinho. Quando um maço de papelada lhe caíra no chão, comprada na estação de Orléans com historietas sujas e mulheres nuas, Jacinto convidou-o a deitar aquilo fora, e foi o que fez, mandando aquele montão para o lixo. A cidade com as suas falsas delícias enfastiara-o, e ali, «A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira». No caminho para casa Jacintinho empunhava na sua dianteira uma bandeira branca, que disse ser do castelo, e o casal, juntamente com Zé Fernandes, seguiram-no felizes, e «Deus contente por eles», subindo para o tão falado Castelo da Grã-Ventura.

A ANÁLISE DO ROMANCE

O Enredo
O romance assenta numa única personagem, a de Jacinto, Zé Fernandes gira à volta dela como uma lua sobre a Terra, para o refazer a cada momento, será um alter-ego de Eça de Queiroz, mas não o representará na sua exacta forma, o livro não é autobiográfico. As demais personagens são como que adornos menores à sua volta, embora necessários, que servem as teses que o autor quer testar, e possibilitam que a personagem principal se revele na sua plenitude. Não há, portanto, uma relação tensa continuada entre as personagens, a socialização faz-se mais pela colaboração e entendimento que pelo confronto. E o enredo nem sequer é muito complexo e intrincado. Não é através dele que o romance se nos impõe, mas pela maneira em como está escrito, pelas ideias que expressa.

O Espaço e o Tempo
O espaço e tempo são aqui muito bem definidos, logo no início de cada um dos seus capítulos os mesmos são narrados com mais ou menos precisão, com factos ou espaços que lhe dão corpo. «Era de novo Fevereiro», «No 202», «Nessa fecunda semana», «Todas as tardes», «Julho findara», assim começa o autor alguns capítulos. Estamos perante um espaço histórico, um tempo cronológico. A história decorre no fim do século XIX, entre 1866, quando os dois amigos se encontram em Paris, e 1899, quando a Basílica do Sacré Coeur já estava erguida, embora tivesse ainda tapumes e andaimes, e proliferam ideias do pleno desenvolvimento da revolução industrial, as ideias positivas de Comte, que considera as ideias positivas ligadas ao saber e à experiência o modelo a seguir em detrimento das ideias metafísicas e teológicas, consideradas primitivas. O enredo está bem situado na cidade de Paris e depois em Tormes e Guidães, perto da Régua.

A Oposição entre a Cidade e o Campo (aqui Serras)
A tese do livro é de que a vida no campo, pela sua simplicidade e beleza é mais salutar e natural que a da cidade. Existe pois, uma nítida oposição entre os valores da vida vividos na cidade e no campo. No início do livro Jacinto está atraído pelos benefícios da dita Civilização, está enfeitiçado pela cultura dominante e pelos instrumentos postos à disposição do homem para lhe facilitar a vida. Para ele a Natureza é impassível, no meio dela cerca-nos a solidão, «toda a intelectualidade esteriliza, só resta a bestialidade». Mas com o tempo vai-se enfastiando da cidade, que aposta sobretudo no «lucro e no gozo», é egoísta e hedonista, cheia de violência, de hipocrisia de perversão. Vem ao campo e fica enfeitiçado pela beleza sem artifícios encontrada na Natureza, pela índole benévola e simples das pessoas, pelo sabor apurado das comidas, pelo ar puro e o azul dos céus, pela água pura sem quaisquer tratamentos. Mas cedo repara que ali também não é o Paraíso, há miséria, carências, uma natureza nem sempre amigável que se tem de enfrentar. É preciso chegar a um certo equilíbrio. Este conceito do bucolismo já tinha sido tratado pelos gregos e latinos, que exaltavam a vida no campo, a simplicidade e ingenuidade dos costumes, a tranquilidade e a riqueza do contacto com a natureza. O grego Teócrito deixou alguns poemas bucólicos, de que chegaram até nós, alguns idílios e epigramas, e de Virgílio as Éclogas. Mas então como hoje muitos homens tentavam regressar aos valores da natureza. É de recordar que já na época de Eça de Queiroz, Mouzinho da Silveira e Alexandre Herculano, cansados da cidade e da vida mundana, regressaram ao campo e dedicaram os seus últimos anos de vida à agricultura, corroborando esta ideia.  

As Conquistas da Modernidade
A aproximar-se do século XX esta Europa modernizava-se, a revolução industrial com a introdução do motor a vapor, o motor a explosão, os avanços no estudo da electricidade, possibilitou as mais extravagantes invenções. Com a chegada do telégrafo e do telefone o mundo tornou-se mais pequeno, pois os grandes acontecimentos eram quase universais. Mas nem com todos esses instrumentozinhos postos ao serviço da Civilização, facilitadores da vida, conseguiram levar Jacinto ao reino da Grã-Ventura. Ele multiplicava-se em iniciativas em Paris, mas mesmo assim definhava, entediava-se, estava cada vez mais corcunda. O progresso técnico criara falsas necessidades, fora demasiado rápido, fomentara grandes desigualdades sociais, desumanizara as pessoas.
Jacinto volta por fim a Portugal, apeia-se num meio rural, onde a Civilização ainda mal tinha chegado, e na primeira noite nem sequer vai dispor de uma cama agradável onde se deitar. Tormes é uma terra linda, tranquila, o ar é saudável, as águas cristalinas, mas quanto as condições de vida são difíceis, há que melhorá-las. O bucolismo da paisagem não basta para que sejamos felizes, é preciso conseguir o equilíbrio entre as conquistas da modernidade e o meio ambiente para que, antes que nos escravizem sejam postas ao nosso serviço, e assim nos reconciliemos com a Natureza e connosco próprios, fiquemos mais próximos de sermos felizes.

Visões do Mundo, Filosofias da Vida
No Capítulo I, a páginas dezassete, «o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado», máxima que resumia pela seguinte fórmula: «Suma ciência X Suma potência = Suma felicidade». Mas num segunda fase no capítulo IX, a páginas 166, «A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças que se relevam, e que atingem a sua expressão suprema, que é a Forma». E numa terceira fase, nos últimos capítulos do livro, empenhando em se integrar em Tormes e banhar-se de Natureza, abandonando parte dos luxos da Civilização, desistindo de ir a Paris passar uns meses, embora lá tendo casa, ele não o diz, mas subentende-se que faz jus à tese que se pode deduzir do livro: a vida no campo, pela sua simplicidade e beleza é mais salutar e natural do que a da cidade. É lá, que através do equilíbrio da modernidade e do país real que se encontra a felicidade.

A Noção de Deus
O autor, que inicialmente, sobretudo em O Crime do Padre Amaro e em A Relíquia faz uma crítica velada à igreja e aos seus padres, neste livro parece estar mais próximo de Deus e não volta ao assunto. Olha tudo com mais serenidade, com uma maior bonomia, como se estivesse de bem com Deus e com a vida. A sua doença e a proximidade da morte devem ter tido algum peso neste modo de ver as coisas. E neste livro as ideias sobre a divindade também sofrem uma evolução. Repare-se logo no I Capítulo, a páginas 19 «a religião é o desenvolvimento sumptuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror». Portanto ainda se estava no domínio da descrença. Mais à frente quando regressa a Tormes, nas cerimónias da trasladação das ossadas dos seus antepassados, a páginas 174, já chama o padre e acha a cerimónia uma delícia. E no XII capítulo, a páginas 214, pede mesmo à D. Vicência «para se lembrar dele nas suas orações».

Estilo Narrativo
Eça de Queiroz usa neste livro um estilo simples mas elegante, com descrições aqui e ali, sobretudo sobre a natureza, sobre a mulher e sobre o meio social com elevado pendor literário e artístico. É muito descritivo em relação às situações e ao mundo que o cerca, e irónico em relação ao comportamento humano. O texto vem escrito na primeira pessoa, para se tornar mais vivo, mais pessoal, mais rico de pormenores, fazendo-nos ver as coisas mais de perto, mais intimamente. A obra integra-se no Realismo e no Naturalismo, pretende-se descrever o mundo como ele é, com objectividade, não só da interioridade das personagens, como da vida social em que estão integradas, como ainda do meio físico que ocupam. Se não tivesse sido surpreendido pela morte ele teria ido mais longe no seu apuramento. Neste exemplar de 262 páginas, o texto deixou de ser revisto a partir da página 165, no IX capítulo em «E como tudo é animado de uma vida». E na página 255, quase ao fim, em «recolhia com amor aquelas», o texto é interrompido, o manuscrito acaba pouco à frente em «por aqueles caminhos, através da Natureza». Os capítulos a seguir ao IX são muito pequenos em relação aos anteriores, à excepção do último, alguns mal se justificam, como o XII e o XII, que podiam muito bem constituir um só capítulo, e há saltos abruptos na narrativa. O namoro de Joaninha não é explorado, como se o autor tivesse receio de já não conseguir acabar o livro. Estava muito doente, tinha nevralgias, problemas intestinais e sofria de febres, as sua últimas fotos dão a imagem exacta de como estava fraco e envelhecido, apesar de só ter 55 anos. Os seus últimos meses de vida foram sofridos, passados com muitas limitações. E apesar de todo o seu empenho em o rever ainda tiveram de ser os seus amigos e companheiros de letras a concluir a obra.

CONCLUSÃO
A Cidade e as Serras é um romance escrito na fase da maturidade, muito denso e com belas descrições, em que Eça de Queiroz, através das suas personagens, ironizando com as falsas conquistas da Civilização faz a apologia da Natureza. A sua estrutura é simples, por vezes dá a ideia de ser um grande conto. Não está escrito com a máxima elaboração, se ele tivesse tido tempo ainda voltaria a ele para o aperfeiçoar e sublimar. È uma obra em que denuncia-a avidez do lucro e a hipocrisia que preside às relações sociais daquela época. È uma obra que evidencia a necessidade de se fazerem reformas sociais para que se valha aos pobres não só das cidades como Paris, onde crianças a viverem debaixo das pontes, como nos meios rurais, em que Jacinto se depara com uma inesperada miséria, e é ele próprio que revê as rendas dos caseiros e dá melhores condições de trabalho aos que vivem na quinta. A sua opção pelo campo, quando tem um mundo fabuloso à espera dele em Paris pode parecer ingénua, mas deve ter-se em conta que se o livro acaba aqui, a história de Jacinto Galeão continua, ele quer ir a Paris uns quatro meses, e decerto irá, Joaninha com os dois filhos pequenos é que o está a obstar, pois ele «já tinha perdido o inicial fanatismo da Simplicidade». Andava à procura de um certo equilíbrio entre a cidade e o campo, é essa a ideia base. O pensamento bucólico de Zé Fernandes, por vezes exagerado, não pode ser confundido com o pensamento genuíno do autor, nem sequer do livro. Eça ainda que não assuma aqui a posição crítica e áspera de outros romances, não é retrógrado, vimo-lo nas “Conferência do Casino” a puxar Portugal para a frente, ele apenas pretende criticar os exageros do modernismo, os vícios da dita Civilização, a progredir à pressa, sob a soberania de um capitalismo selvagem. É um romance que, a vários títulos, desde o linguístico ao humano, ao social, deve ser considerado exemplar, e que se recomenda vivamente à juventude.


Martz Inura
16/05/2016




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