CLARICE LISPECTOR

 

 




CLARICE LISPECTOR
A Hora da Estrela
RELÓGIO D’ ÁGUA EDITORES (2002) (93 páginas)

 

A MULHER

     Clarice Lispector (Chaya Pinkhasivna Lispector) nasceu na Ucrânia, em Chaya Pinkhasivna,em 10 de dezembro de 1920. É oriunda de uma família judia. Com a disputa da Ucrânia pela Polónia e pela Rússia, as perseguições resultantes da Revolução de Outubro, e a onda de antissemitismo que se gerou, a família decidiu emigrar para o Brasil em 1922, levando-a juntamente com as suas duas irmãs. Os pais foram inicialmente viver para Maceió, deslocando-se mais tarde para o Recife, onde a mãe lhe faleceu aos oito anos. Naquela cidade frequentou o Ginásio Pernambucano. Já por essa altura lia muito, mesmo escritores estrangeiros difíceis. Em 13 de janeiro de 1935, aos 14 anos, o pai leva a família para o Rio de Janeiro. Ali prosseguiu os seus estudos, matriculando-se mais tarde em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Porém, desde cedo manifestou vocação para as letras. Os meios literários atraíam-na. Falava sete línguas, era poliglota, não demorou que fosse solicitada para fazer traduções, enveredando depois pelo jornalismo como redatora e repórter na Agência Nacional (de informação), e a seguir pela literatura, onde se viria a destacar como romancista e contista.

Em 12 de janeiro de 1943, a fim de oficialmente se movimentar melhor, e porque a ligavam à Ucrânia poucos laços, avançou para o seu processo de naturalização brasileira. Concluiu o curso de Direito com Maury Gurgel Valente, com quem veio a casar. Este seguiu a carreira diplomática, torna-se diplomata, o que vai ter muita influência na vida itinerante da autora. Assim, pouco depois ela é obrigada a ir viver com o marido para a cidade de Belém do Pará, para onde ele foi destacado como cônsul. Ali aproveita para ler autores importantes e continua a escrever. Ele vai subindo de categoria ou recebendo novas funções, e é transferido de lugar, e ela segue com ele, viajando pelo mundo. Passa por países como a Libéria, a Guiné Portuguesa, Portugal, Marrocos, Argélia, Itália, Suíça e Estados Unidos da América. Por onde passou foi fazendo amigos e amigas, sobretudo entre os literatos, alguns em Lisboa.  

Em 1959 divorcia-se do marido. Já estava saturada de andar atrás dele, e depois, um dos seus filhos, o Pedro, que quando menino era muito inteligente, com o tempo começou a sofrer de esquizofrenia. Isto pesou também na sua decisão. Daquele facto ela se culpava, por não lhe poder ter dado a devida atenção. Volta então para o Rio de Janeiro. Ingressa no jornal, O Correio da Manhã, como colunista do Correio Feminino. Escreve crónicas para o Jornal do Brasil, intensifica a sua criação literária. É uma mulher culta, voltada para a escrita, muito solicitada para entrevistas e reuniões no âmbito da cultura. Em 1975 vai a Bogotá ao Congresso Mundial da Bruxaria, onde escreve o conto sobre o Ovo e a Galinha, que foi ali muito comentado. Tem uma vida frenética, que já lhe vinha de quando era jornalista e tinha muitos contactos. Bebia, sabe-se lá –, para esquecer. Fumava bastante, e em 14 de setembro de 1966 provoca um incêndio na casa onde morava, por ter deixado um cigarro aceso. Queimou-se gravemente, chegando a correr riscos de vida. Mas continuou a fumar, nem na última entrevista que deu deixou de puxar por um cigarro.

Tentou a poesia e enviou alguns dos seus poemas a Manuel Bandeira, que lhe fez uma crítica negativa. Ela achou a sua análise desmotivadora e queimou os poemas. Ele mais tarde se arrependeu do que disse, pedindo-lhe para que voltasse a escrever, pois ela tinha interpretado mal as suas palavras. Clarice Lispector leu muito, recebeu influências de várias literaturas, de escritores como Franz Kafka, Virgínia Woolf, Herman Hesse, James Joyce, Dostoiévski, Jean Paul Sartre, Katherine Mansfield. Fez inúmeras traduções para Português. Ajudou a introduzir a corrente literária Fluxo de Consciência na Literatura Brasileira, tornando-se uma das figuras mais influentes e importantes do século XX nesta área. Infelizmente foi acometida de uma doença grave, um tumor nos ovários, falecendo em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Nasceu ucraniana, foi brasileira de coração, mas morreu judia, não renegou as suas origens. Era um espírito irrequieto, muito lúcida, grande humanista, cultivando com mestri a Língua Portuguesa.

 

A OBRA

Clarice Lispector é autora de vasta obra, desde os romances aos contos, à literatura infantil, às crónicas e correspondência que deixou. Ganhou vários prémios literários, como o de Graça Aranha e Carmem Dolores, e atribuíram-lhe a Ordem do Mérito Cultural. Deus origem a filmes. Citam-se aqui por ordem cronológica apenas os seus romances e contos. Muito mais se podia dizer sobre esta autora, mas não está no âmbito destas páginas. Felizmente que temos dela excelentes biografias, teses de doutoramento, e a própria Wikipédia tem sobre a mesma um artigo exaustivo e bem documentado.

 Romances:

Perto do Coração Selvagem (1943)
O Lustre (1946)
A Cidade Sitiada (1949)
A Maçã no Escuro (1961)
A Paixão segundo G.H. (1964)
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969)
Água Viva (1973)
A Hora da Estrela (1977)
Um Sopro de Vida (1978) (póstumo)

 Contos:

Alguns contos (1952)
Laços de Família (1960)
A Legião Estrangeira (1964)
Felicidade Clandestina (1971)
Imitação da Rosa (1973)
Onde Estivestes de Noite (1974)
A Via Crucis do Corpo (1974)
O Ovo e a Galinha (1977)
A Bela e a Fera (1979)

 


O LIVRO, A Hora da Estrela




a.      PERSONAGENS PRINCIPAIS DO LIVRO

 – Rodrigo S. M.: É o narrador da história, que às vezes se assume como personagem. Representa a própria escritora. Fisicamente não aparece descrito. É um homem sensível, cheio de humanidade. Inicializa o livro, fazendo extensos comentários sobre a vida e o ato de escrever, que envolve muitas dificuldades. Já sabemos que personifica Clarice Lispector, que o utiliza como forma de disfarçar o caráter autobiográfico do livro. Durante o mesmo vai fazendo algumas intervenções importantes, tornando-se a personagem chave do romance.

 Macabéa: É uma moça vinda do Estado de Alagoas, a principal personagem do romance. Órfã de pais, foi criada por uma tia que a maltratava. Tem 19 anos e é empurrada pela miséria para o Rio de Janeiro, onde consegue o emprego de datilógrafa. Nunca recebeu um presente. Será uma versão nordestina da própria autora, representando a diáspora do seu povo, e talvez o da autora. É uma jovem bastante simples, ainda virgem, não muito bonita, sem ambições. Não reconhece a própria infelicidade, que aceita como coisa natural E nem acredita na morte.

 Olímpico de Jesus Moreira Chaves: Trata-se do primeiro namorado de Macabéa. Também nordestino, mas muito mais sabido e ambicioso. É metalúrgico, na sua ideia, não um simples operário, e acha que ainda hão de falar de si na cidade. Não sente qualquer escrúpulo em a abandonar na primeira oportunidade que lhe apareça. E é o que faz, quando encontra Glória, mais esperta e bonita. É o tal «cabra safado» do Nordeste.

 Glória: É a melhor amiga de Macabéa, trabalha consigo na firma. Filha de um açougueiro e bastante gorda, ao ver a magreza de Macabéa indaga-lhe qual o regime que está a fazer, ignorando que ela passa fome. Usa água de colónia. Por ser mais atraente do que a amiga e cuidar da sua beleza, facilmente lhe consegue roubar o namorado, desculpando-se de que foi uma cartomante que o anteviu, e ela é médium, nunca erra.

 Madame Carlota: É a cartomante que prediz o futuro de Macabéa. Ela própria teve um passado miserável, que conseguiu superar pela sua esperteza. Para Macabéa, ela acertou em tudo o que disse: Não só sobre o seu passado, como até sobre o presente. Por estranho capricho das cartas, a cartomante lia-lhe nelas um triste destino, e que sabia ela para a fazer assim infeliz? Há uma explosão e resolve vaticinar-lhe um fim auspicioso, deixando-a sair dali radiante.

  

b.      RESUMO

     Clarice Lispector escolheu Rodrigo S. M. para narrador do seu livro, porventura para lhe esbater um pouco o seu carácter autobiográfico, embora no livro invoque outras razões. Ele só escreve porque não tem mais que fazer, está farto de literatura, mas lá vai escrevendo enquanto não chega a morte. Anda à procura de uma história, e antes disso filosofa sobre a vida, até se decidir pela nordestina Macabéa, que se torna a personagem principal. Todavia, pelas reflexões que vai fazendo ao longo do livro, acaba por se assumir narrador-personagem, tornando-se a peça chave para descodificar o romance. Ele jura que o livro é feito sem palavra e abstêm-se de sexo e futebol.

 Procurando traduzir as preocupações de Clarice, sente-se na obrigação de contar a história de Macabéa, uma deserdada da vida, pertencente a um povo que ainda não acordou para dar o grito da revolta. Como se disse, foi criada por uma tia que a maltratava, e era órfã de pai e mãe. Natural de Alagoas, foi criada no meio das maiores carências, tão frequentes que as acabou por achar normais. Tendo passado tanta fome era natural que fosse magricela, além disso sente-se feia, desengraçada e ignorante. A vida infeliz que teve fez com que se tornasse tímida e solitária, de poucas palavras, pois pouco teria a dizer sobre o mundo. 

     Como é natural a muitos nordestinos sem eira nem beira, vem parar ao Rio de Janeiro, onde consegue um emprego de datilógrafa. Sente-se desajustada. Tem apenas 19 anos, mas já está entregue a si própria, nunca foi a um restaurante, e acha até, depreciativamente, que estes estabelecimentos são procurados por mulheres desfrutadas. Só come em bares de pé cachorro quente e Coca-Cola. Quase chega a ser despedida bruscamente por seu Raimundo, por errar demais na dactilografia, além de borrar o papel. Ele ameaçou-a de ficar apenas com Glória a trabalhar, mas por fim lá reconsiderou, deixando-a permanecer na firma.

     Na mítica cidade do Rio de Janeiro, Macabéa vai residir numa modesta pensão, compartilhando o quarto com mais três moças. O que ganhava não dava para mais. Todas elas são empregadas de balcão nas «Lojas Americanas», e chamadas de “as Três-Marias”: Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José. O pouco que aprendeu foi com a tia, mas continuava uma ignorante, incompetente para a vida, sem jeito para se ajeitar, tanto que o autor nem sabe por onde começar a sua história. Tinha, contudo, as suas ilusões, cultivava a tristeza e a solidão, e era doida por soldado, deixando-se seduzir pelo ar marcial das suas fardas. 

     Sem mais divertimentos, um de seus maiores prazeres era ouvir de madrugada um rádio emprestado por Maria da Penha, que ela ligava baixinho para não acordar as outras colegas, sintonizando a Rádio Relógio. Esta emissora era então muito popular no Rio de Janeiro, por estar de minuto a minuto a dar as horas, intervalando esse período com respostas à pergunta «Você sabia?» A sua cultura mais profunda resumia-se a estas respostas, por vezes disparatadas, que ela nem sempre sabia interpretar, mas que escutava como verdades infalíveis. Uma palavra que ouviu e a fascinou, foi «efemérides» Que sentido misterioso devia haver à sua volta?!

     A sua vida era miserável, mas não se queixava, e nem sequer acreditava na morte. Assoava o nariz à combinação, julgava não ter propriamente nenhum encanto, até o autor julgava que só ele a amava. Contudo, era mulher, e apesar da sua baixa autoestima não era desprovida de beleza, e acaba por arranjar um namorado. Para Macabéa, um belo rapaz, nordestino, mas mais finório e ambicioso do que ela. Trata-se de Olímpico de Jesus Moreira Chaves, um homem que sabe das coisas. Foi ele que lhe ensinou que a cara é mais importante que o corpo, porque através dela se vê o que as pessoas estão sentindo. Além disso não é um simples operário, é metalúrgico, faz questão de frisar.

 Mas esta relação não vai perdurar. As conversas que tinha com o namorado eram pouco interessantes. Ela nascera raquítica, tinha pouco encanto, e ao fim de algum tempo ele troca-a pela colega, Glória, uma moça que tinha no seu sangue um bom vinho português, o seu caminhar era bamboleado, e apesar de branca tinha em si a força da mulatice. Ajeitava-se, usava até água-de-colónia. Era gorda, e no sertão gordura é formusura, como Macabéa ouvira dizer a um moço. Era, pois, naturalmente mais bela e esperta do que ela e rouba-lhe o namorado. Olímpico e Jesus não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de «cabra safado». A amiga desculpa-se por o ter roubado, dizendo que fora a antevidência de uma cartomante, e um médium nunca se engana

     Macabéa vê a vida andar para trás e vai também ela consultar uma cartomante, chamada Madame Carlota. Pediu dinheiro emprestado, que talvez não conseguisse pagar, e foi à cidade de Olaria. A cartomante era uma antiga prostituta, que soube sair a tempo da vida que levava. Começou primeiro por lhe contar a sua própria história, e por fim passou para a de Macabéa. Admirou-se da triste vida que tivera no passado, e as cartas também não lhe auguram um bom futuro. Reconsidera, e não se acha no direito de fazer assim uma pessoa infeliz? De repente há uma explosão, e o rosto da vidente se ilumina e disse antever, enfim, que ela vai recuperar o seu namorado, o seu patrão não a vai despedir, que lhe vai entrar dinheiro pela porta dentro. Mais, que vai casar um gringo rico de cabelos loiros e olhos azuis. Macabéa estremece de feliz, ela, que nunca tivera coragem de ter esperança.

 A cartomante fez-lhe vaticínios auspiciosos, e até feitiços, que pediu para ela só lhe pagar quando acontecessem, tais os seus escúpulos, mas Macabéa estava meia bêbada e quis pagar tudo logo. Saiu dali comovida. Era demasiada felicidade para ela suportar num só dia. Atravessou a rua, ainda inebriada com as palavras que acabava de ouvir, algo distraída, quando é atropelada por um Mercedes Benz amarelo. Bateu com a cabeça numa pedra e ficou inerte no chão da rua. O autor, compadecido, procura então aqui tentar salvar-lhe a vida, mas o destino dela já estava traçado. É naquele momento que ocorre a sua "hora da estrela", a cena do filme em que todo o mundo a enxerga na tela e ela se sente uma estrela de cinema. Ironia do destino e moral da história: Macabéa só alcança a sua verdadeira grandeza ao morrer, escapando aquela vida miserável, pois na morte somos todos iguais.


Estátua de Clarice Lispector na Praia do Leme, Rio de Janeiro
 Junto dela o seu fiel cão, Ulisses. (no Brasil preferem chamar-lhe cachorro)

 

c.       COMENTÁRIO

O livro, na Dedicatória do Autor (p. 9/10) começa por revelar da escritora a sua enorme sensibilidade para a música clássica erudita, fazendo uma dedicatória a Robert Schumann e sua esposa, Clara, como que à procura daquela nostalgia infinitamente doce que os inspirava. Apetece aqui ouvir logo de Schumann o Träumerei, "Kinderszenen" nº. 7, ou a Sinfonia nº 3. E fala de Bach, da sua voz neutra, da tempestuosidade de Beethoven, de Chopin, que lhe amolece os ossos. Não se esquece da Morte e Transfiguração de Richard Strauss, pois atravessava um período sombrio da sua vida, nem de Debussy, Prokofiev, Karl Orff, Schönberg, os dodecafónicos, e até um tal Marlos Nobre, para no seu rol não faltar um grande compositor brasileiro. Ele vai contar esta história num estado de emergência e calamidade pública. No fundo é o Alter-ego de Clarice a falar, que sabe que os seus dias estão a chegar ao fim e está a explodir em «eu», isto é, com o seu Ego bem carregado. Ela sente o peso dessa responsabilidade e desabafa: Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé… e encara a morte com naturalidade. Ela acredita que o melhor está para vir, remetendo-se para: Acreditar chorando. E termina, quase feliz: É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos. O leitor deve de estar preparado para ler um romance diferente, que explora o inconsciente das personagens, com mais de uma leitura, sem um enredo impactante, que só depois da ida à cartomante se aclara e intensifica. Também esses livros que aparentam ter por trás de si um grande segredo a fixar-nos, às vezes só têm isso mesmo, e depois de revelado são para esquecer, e este é para meditar, repensar. Clarice apresenta-se aqui como por detrás do pretenso escritor Rodrigo S.M., mas sabemos que é ela que pensa e escreve. Apesar de se propor escrever um livro simples, a sua elaboração envolve alguma complexidade. Na verdade, por detrás do que está escrito há uma longa história por explicar:

 Resumidamente, ele contém uma parte filosófica, que tem a ver com a volatilidade da vida, da morte ser às vezes uma forma de superação. De forma subtil ela diz crer em algo Superior, pois no fim da dedicatória escreve que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela, e que não se pode dar uma prova do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar, refere-se à existência de Deus (p. 10). Tem uma curioso cosmologia: Uma molécula disse sim à outra e nasceu a vida, e o espírito da dúvida metódica: Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever (p. 13). Ela está doente, cada dia é um dia roubado à morte (p. 19). Macabéa era natural e inocente, encarava a vida tal como ela era, pois não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara como era «assim» (p. 55/56). A sabedoria dela reduzia-se ao que ouvia na Rádio Relógio, uma emissora de rádio então muito popular no Rio de Janeiro pelas curiosidades que ia dando nos intervalos dos minutos, de que ela às vezes não percebia nada, como «mimetismo» (p. 60), ou expressava ditos tão sábios e esquisitos como este: a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias (p. 61). Glória tinha uma curiosa forma de pensar quanto à verdade: de um modo geral mentia: tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais decente. Achava que boa educação é saber mentir (p. 75). A sua crença em Deus é apesar de tudo um tanto nebulosa, o autor se funde aqui completamente com Clarice e escreve: Meu fôlego me leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei: não preciso ter piedade de Deus. Ou preciso? (p. 90). E diz mais algumas frases em tom poético: Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa… Morrendo ela virou ar… Qual é o peso da luz? (p. 93).

 Há na sua estrutura um elemento de cariz social, alertando para as dificuldades económicas em que vive o povo nordestino, sob o império da fome e da doença, ele diz: O que eu escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação escrever sobre esta moça entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito (p. 15). Ela faz análise social. A personagem principal mal tem corpo para vender, ninguém a quer (p.16). Apesar de datilógrafa, vive na miséria. Dos seus poucos luxos é comer cachorro quente com Coca-Cola: Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir (p. 35). A autora usa um pseudónimo masculino, ela está atenta aos preconceitos do seu tempo, porque escritora mulher pode lacrimejar piegas (p.16). Não é sem razão que cita Humilhados e Ofendidos de Dostoiévski, que define a classe social de Macabéa (p. 44). As personagens são pouco instruídas, e naturalmente supersticiosas, a matreira da Glória disse a Macabéa para se justificar ter-lhe roubado Olímpico: Eu digo que ele é meu porque a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra (p. 75). Quando Macabéa teve um acidente e morreu, o autor esclareceu: Batera com a cabeça na calçada e fica caída, a cara mansamente voltada para a sargeta. E da sua cabeça um sangue inesperadamente vermelho e rico (brotou). O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia talvez vai reivindicar o direito ao grito (p. 86), isto é, adquirir a capacidade de se indignar e apelar à revolta. Não se pense que ela diz demais, o mundo e o Brasil, têm muito que progredir quanto à justiça social.

 Inclui uma parte voltada para a teoria literária, em que refere a sua dificuldade em escrever as palavas certas. O autor contenta-se em meditar, em fazer uma introspeção: Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever (p. 10). Sabe que às vezes a ficção se confunde com a realidade e não se quer deixar cair na tentação de usar palavras suculentas (p. 17). Contudo, não se coíbe de construir expressões em que destas se evole um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases (p.17). À frente diz: Apaixonei-me subitamente por factos sem literatura – factos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de factos não há como fugir (p. 18). E reafirma: Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta (p. 19). Ele está preocupado com o uso que vai dar às palavras, que são preciosas: A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo (p. 22). Aparenta dificuldade em chegar ao que pretende dizer: tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere (Fluxo da Consciência) (p. 24). A autora, falando através do Rodrigo S. M. diz-se desencantada com a escrita: Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho que fazer no mundo enquanto espero a morte (p. 76). Evidencia dificuldade em falar da realidade crua e nua, por isso quando Macabéa morre ele diz: Acho que não chegou a hora de estrela de cinema morrer… Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando ao vento no infinito… A vida é um soco no estômago (p. 90).

 Há ainda a salientar a sua componente psicológica. É surpreendente a forma como ela se revê na dedicatória que lhe faz o autor: todos esses profetas do presente e a que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de neste instante eu explodir em eu (agigantar-se-lhe o Ego). Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé… (p. 10); e também ao pincelar uma personagem ingénua e volátil como é Macabéa, que vive só porque existe, esvaziada de ambições. Esta apatia resultará da vida difícil que teve, conduzindo a que se tornasse tímida, a ponto de quase se fechar sobre si mesma e aceitar a miséria como algo natural. O próprio autor, como Alter-ego de Clarice Lispector é um solitário: Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens (p. 23). Ele sofria a vida, mergulhando numa obstinada crise existencial, daí que escreva: Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco da sua vida para esta não acabar (p. 36). De ressaltar o rigor e a ternura compreensiva como analisa a cartomante Carlota, quando ela se refere ao seu «homem». Eu tinha um homem de que gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não se queria gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar (p. 80). Descreve aqui exemplarmente uma forma de masoquismo, isto é, a capacidade de tirar prazer da própria dor e humilhação. 

 O romance, segundo os estudiosos pertence à terceira fase da autora: a modernista, é pequeno e despretensioso, tem 93 páginas, em muitos casos não daria sequer para lhe ser atribuído um prémio literário. Já Fernando Pessoa com A Mensagem foi vítima deste desaire, ao escrevê-lo com apenas 97. Mas uma coisa pequena pode ser preciosa, tal como um pequeno diamante tirado em bruto de um bocado de rocha tosca tem mais valor que uma grande pedra de granito, ainda que bem polida. Apesar do autor se preocupar em escrever de forma simples, que para ele é uma tarefa difícil, acaba por se aprofundar numa cativante complexidade, e aqui e ali lá surge com mais uma metáfora metafísica. Citam-se só duas: Tudo começou com um simDeus é o mundo (p. 13). Procura escrever o que lhe vem à cabeça, entrando em rutura com a realidade, influenciada pela teoria do Fluxo de Consciência (Corrente de Consciência), teoria literária que ajudou a expandir no Brasil. O livro não é totalmente preconcebido, ele se vai organizando aos poucos através da introspeção. A sua narrativa, quando desencalha flui no nosso pensamento como a água cristalina dos rios por entre os seus leitos pedregosos. É de destacar que há uma poesia imensa em todos os seus romances, e este não é exceção, percetível até na maneira abismada como olha o mundo, que às vezes vê com a candura com que o fará uma criança. Este romance é uma pequena joia da literatura brasileira. Clarice Lispector cultivava um subtil ceticismo, a sua lucidez, ela a embebecia de doçura, gostava de música clássica erudita, preferencialmente de Robert Schumann, como eu a compreendo! Leiam este livro. 


  28/10/2021
  Martz Inura

Nenhum comentário:

Postar um comentário