JOSÉ SARAMAGO
ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA
Editorial Caminho
O
homem
José Saramago nasceu na Azinhaga,
Golegã, em 16 de Novembro de 1922, e faleceu em 18 de Junho de 2010 na ilha de
Lanzarote, Canárias. Filho de gente modesta, fez estudos secundários, que não
prosseguiu por dificuldades económicas. O seu primeiro emprego foi o de
serralheiro mecânico. Foi membro do Partido Comunista Português,
director-adjunto do Diário de Notícias.
Ganhou em 1995, o Prémio Camões, e em 1998, o Prémio Nobel da Literatura. Em
2007 criou a Fundação José Saramago para a defesa da Declaração dos Direitos Humanos e dos problemas do meio
ambiente.
A
obra
É autor de vasta obra literária, 18
romances, de que se destacam: Levantado
do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Ensaio Sobre a Cegueira, As Intermitências da Morte e Caím. Mas deixou ainda livros de poesia,
peças teatrais, Diários e Memórias, literatura de Viagens e literatura Infantil.
Desde 1976, e até ao fim da sua vida, fez da literatura a sua profissão.
O
romance Ensaio Sobre a Cegueira
Sinopse do livro
A obra está escrita em 17 capítulos,
que o autor não numera, mas que nós aqui vamos enumerar para estudo, e por mera
curiosidade. Num mundo de cegos, as pessoas não têm nomes, conhecem-se pelos
seus predicados mais expressivos, é isto que diz o autor. Vamos porém, aqui destacá-los,
para em poucas páginas tentarmos compreender melhor o romance.
Cena do filme Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meirelles
Capítulo
I: Um homem
cegou dentro do carro, à frente de um semáforo, é o Primeiro Cego. Perante o seu desespero, alguém o vai levar a casa. Ao
chegar perto da porta dispensa a ajuda deste bom samaritano, temendo que o viesse
assaltar. Desloca-se então pelo interior da casa, que conhece bem, mas acaba
por deitar ao chão um jarro de flores e cortar-se. A mulher, ao chegar mostra-se
desagradada com o sucedido, e não acreditou, quando ele lhe disse que estava
cego. Ele só via branco, esclareceu. Postos mais dentro da realidade, reconhecem
que ele tem de ir consultar um oftalmologista. A mulher vai buscar o carro onde
ele disse que o tinha deixado, mas já não o encontra, afinal tinha sido roubado
pelo falso bom samaritano. Regressa a casa e chama um táxi para o levar ao
médico. Na sala de espera do consultório dão-lhe prioridade, ainda que
contestada. Tem 38 anos, o médico não dá com a doença, prescreve-lhe exames e
marca-lhe uma nova consulta. Não se esquece de o mandar pagar a consulta à
empregada da recepção. Nessa noite sonhou que estava cego.
Capítulo
II: A ocasião
faz o ladrão. O homem que o ajudara no semáforo, na posse do automóvel, ainda
teve um rebate de consciência, mas acabou por lhe roubar o carro. Saiu da
viatura, e mal tinha dado trinta passos, cegou. É o Ladrão do Automóvel. No consultório, o Médico, acabado de atender o último doente, telefona a um colega a
relatar tão estranho caso. À noite fala do assunto à mulher. Trata-se de um
caso estranho. Tira um livro de uma prateleira para estudar melhor a doença,
quando cegou. Porém, não diz nada à mulher para não alarmar. Perto dali, a Rapariga de Óculos Escuros, com ares de
prostituta, que o médico tratara aquela tarde a uma conjuntivite, seguiu para
um encontro de hotel, e, em pleno acto de serviço com um cliente passa a ver
tudo branco, cegou.
Capítulo
III: O Ladrão do
Automóvel cegou como vimos, e é um polícia que o leva a casa. A Rapariga de
Óculos Escuros também foi levada a casa por um polícia grosseiro, depois de um
episódio caricato. Em sua casa o Médico continua na cama, está cego. A mulher
levanta-se, não suspeita de nada, até que ele lhe confessa realmente o seu
estado e liga para os serviços hospitalares e burocráticos a dar conta do sucedido.
Trata-se de um caso de saúde pública. O Médico vai ser internado, chamam uma
ambulância, o condutor desta diz que só o pode levar a ele, que está cego, mas
ela confessa que acabou mesmo de cegar, como pretexto para também ser levada e
o acompanhar.
Capítulo
IV: A gravidade
do assunto leva-o à superintendência do ministério. A doença passa a
designar-se por Etiologia do mal-branco.
Decidem-se pôr as pessoas de quarentena, entre um quartel, uma feira
industrial, um hipermercado em processo de falência e um manicómio, decidem-se
por este último. O Médico e a Mulher do Médico entram, embora esta
não esteja ainda cega. Mas outros cegos tinham acabado de entrar, o Primeiro Cego, o Ladrão do Automóvel, um Menino
Estrábico, e a Rapariga de Óculos
Escuros. O governo, que se diz consciente das suas responsabilidades, toma
logo uma série de medidas draconianas, evidenciando muita acção, mas pouca
competência. São apenas seis, existem várias camaratas disponíveis, dão-se ao
conhecimento e começam a organizar-se.
Capítulo
V: A Mulher do
Médico ao despertar hesita em abrir os olhos, não vá estar cega. Faz
considerações sobre o abandono a que estão votados. Chegam mais cinco cegos. O Polícia, o Motorista de Táxi, o Ajudante
de Farmácia, a Criada de Hotel e
a Empregada de Escritório. É dito aos
altifalantes que foi posta comida e produtos de higiene à entrada, entre a ala
dos cegos e a ala dos contaminados. A Mulher do Médico pede antibióticos para um
Ladrão de Automóveis que está ferido, e é ameaçada pelo soldado. Chegam depois
mais três expulsos da ala dos contaminados: a Empregado do Consultório, o Homem
que Estivera com a Rapariga do Óculos Escuros, e o Polícia Grosseiro que a trouxera a casa. Subitamente chega mais um
rebanho de cegos. São agora 40. As condições de saúde e higiene começam a piorar,
porém, embora o governo continue, hipocritamente, a mostrar-se responsável, e a
afirmar que está a fazer o seu melhor. O Ladrão de Automóveis, que tinha sido
ferido na perna quando apalpou a Rapariga de óculos Escuros, sente-se pior e
vai a arrastar-se até junto dos guardas para que o mandem para o hospital,
porém, um soldado nervoso disparou uma rajada contra ele, matando-o. Vieram 10
cegos saber o que se passava, e 4 aproximaram-se para ir buscar o corpo.
Capítulo
VI: É preciso
enterrar o morto, mas não há com quê. Vão pedir uma enxada ou uma pá à entrada
mas são parados pela sentinela. A Mulher do Médico invoca o perigo da doença se
alastrar, e só então o sargento vai tentar resolver a coisa. Já são 50 na ala.
Pelos altifalantes é mandado vir alguém buscar a enxada, o que a Mulher do
Médico faz, providenciando para que o Ladrão de Automóveis seja enterrado. Mas
chega-se ao meio dia e não trazem a comida. Os cegos desesperam à entrada do
átrio. Quando a comida chega, finalmente, temerosos, os soldados combinaram não
levar as caixas da comida à entrada das portas que davam para as duas alas,
deixando-as logo ali à saída, à entrada do átrio. Os cegos precipitam-se e os
soldados disparam os carregadores contra eles, matando uns tantos. O sargento
acha que o melhor seria deixarem morrer os cegos à fome. Da ala dos contaminados
aparecem alguns contagiados a querer roubar aos cegos. São nove os mortos, a
Mulher do Médico reconhece o Homem que Saiu do Hotel com a Rapariga dos Óculos
Escuros, o Motorista de táxi e os dois polícias. Decide-se que cada camarata
enterrará os seus mortos. E, no meio daquela tragédia, há um cego e uma cega
que têm uma relação sexual ruidosa que incomoda os que a pressentem.
Capítulo
VII: Outra manhã
terrível, após três dias de isolamento. A comida não é trazida e a camarata ao
lado não enterrou os seus mortos, que tresandam. Por fim avisam aos
altifalantes que a comida chegou, e os cegos precipitam-se atabalhoadamente
para lá. O sargento avisa para não se aproximarem demasiado que levam um tiro,
obrigando-os a hesitar. Sabia-se que para o comandante do regimento o problema
dos cegos só se resolveria com a sua liquidação total. Conseguiram a custo
trazer as caixas e há confraternização geral, porém, há alguém que se aproveita
para levar umas tantas caixas, surgem protestos. Chegam as caixas dos contagiados,
há quem proponha um roubo, que o Médico condena. Acabam por comer o que resta,
escandalizados. A situação agrava-se quando o exército traz mais quatro
camionetas de cegos. São agora uns 200. Ouvem-se tiros na rua. Na ala dos cegos
estão 60 ou 70, fora um dúzia que mataram, nesta, há três camaratas, com a
capacidade para 120 pessoas, mas têm de caber lá todos ou vão para a ala dos
contagiados, não interessa. Os condutores dos autocarros acabam por ser
internados. O coronel que tinha proposto a morte dos cegos, cegou, e
suicidou-se. A leva de cegos vai entrar, recomenda-se as habituais regras de
segurança e higiene, mas aquilo é só um pró-forma, o manicómio não tem
condições nenhumas. Os cegos não cabem na ala dos cegos e tentar forçar a ala
dos contaminados, que a defendem a soco e a pontapé, mas de repente começam a
cegar, ficam todos cegos. No meio desta confusão aparece um velho a perguntar
se por ali há alguma cama para ele.
Capítulo
VIII: A chegada
de tantos cegos parecia trazer duas espécies de vantagens, as psicológicas, por
ao estar cheio o edifício se estabilizariam as relações, e de ordem prática,
porque agora, com um número tão elevado de internado as autoridades talvez passassem
a levar a coisa mais a sério. Estão agora ali 250 seres humanos. Apanharam um
rádio das pessoas que tinha acabado de entrar, e através conseguem obter
notícias do que se passava lá fora. A Mulher do Médico pôde mesmo acertar o
relógio, cuja corda se esquecera de dar. O Velho
da Venda Preta recém-chegado, conta como está tudo lá fora, refere as metáforas
da informação, a hipocrisia do governo, que diz estar consciente das
suas responsabilidade, mas pouco faz para melhorar as coisas. Pensaram em ordenar
que cada família tomasse conta dos seus cegos, mas depois decidiram-se por
interná-los. Estão a utilizar fábricas abandonadas, templos já sem uso,
pavilhões desportivos, armazéns vazios. Relata que os transportes, depois de
caos que se instalou, e da queda de um avião, por fim paralisaram. Soube-se que
estava para breve a formação de um governo de salvação nacional.
Capítulo
IX: Estão agora
ocupados todos os catres do edifico, 240, fora os cegos que dormem no chão. As
camaratas, são seis, três em cada ala, estão transformadas em charcos fétidos,
tal a podridão, a falta de higiene que ali grassa. E pior do que isto seria
talvez o grau de desumanidade que entretanto se gerara. Surge então um grupo da
ala que fora dos contaminados, com um cego portador de uma pistola, a impor-se
aos demais, e se apossa das caixas de comida. A partir de agora a comida tem de
ser paga. A fome a isso obriga, os cegos vão resolver como pagar a comida, cada
camarata nomeará dois responsáveis para recolher valores: dinheiro, jóias,
anéis, relógios, brincos. O Médico é
nomeado chefe da ala para negociar a comida. O Cego da Pistola, e o Cego
Escriturário, que era cego antes desta epidemia e lidava melhor com a
cegueira, vão receber o pagamento.
Capítulo
X: É preciso
reunir meios com que pagar a comida, mas eles estão-se a exaurir. O Cego da
Venda Preta considera que o rádio não terá valor comercial, quere-o para ouvir
notícias, deseja saber o que se passa cá fora, embora tendo de descontar
obviamente as falsidades e vaticínios oficiais. Mas, por fim, também elas se
calam, deve ter chegado também lá o mal-branco. A situação que se vive no
manicómio é de verdadeira calamidade, muita fome, grande violência, falta de
higiene. A Mulher do Médico dá-se conta que pouco lhe vale ter visão, às vezes
seria melhor ser cega para não ver à sua volta tanta miséria, tanta injustiça,
tanta podridão. Movida pela curiosidade faz uma visita sorrateira à ala
esquerda e direita como para reconhecer a adversidade que os outros ali
enfrentam. Aquilo é uma imundice pegada, a degradação humana levada ao extremo.
Capítulo
XI: Aumenta o
caos e mantém-se a insurreição da camarata dos malvados. Estão ali à volta de
300 pessoas, entre cegos bons, cegos maus e cegos malvados. É necessário fazer
qualquer coisa para que se coma. Foram recolhidas pelas camaratas valores com
que se pagasse a comida, processo complicado, cheio de manhas e perfídias. Lá
conseguiram negociar. E quando os bens se esgotaram, os cegos malvados exigiram
que lhes trouxessem as mulheres. Homens e mulheres reagiram a tal medida tão
sórdida, sabendo-se então, no meio da discussão, que havia relações infiéis
entre alguns casais, de que se conta a do Médico com a Rapariga de Óculos
Escuros. Estavam há três dias sem comer, ficou decidido que a primeira camarata
era a primeira a escalar mulheres, sete, que iriam ter muito trabalho ao irem servir
os 20 malvados. Lá seguem as mulheres, entre elas a Mulher do Médico, que é
como as demais, sujeita aos caprichos depravados dos malvados. Regressam à
camarata e lavam-se, morre uma, a que não conseguia dormir. Por fim o Médico e
o Velho da Venda Preta chegam com a comida.
Capítulo
XII: No quarto
dia os malvados vêm reclamar as mulheres da segunda camarata. São 15 e seguem
com eles passivamente, seguidas pela Mulher do Médico. Ali chegadas inicia-se a
orgia, o chefe dos malvados está ao fim da camarata junto da comida, na posse
de uma das suas vítimas. A Mulher do Médico aproxima-se dele, e quando o vê
menos prevenido, mata-o com umas tesouras. Há luta e os bons apoderam-se da
comida. Os cegos estão em guerra, sempre
estiveram em guerra. Contudo, nem assim as coisas melhoram, os abastecimentos
pararam. O sargento diz que a culpa não é do exército, há dois dias que não
recebem comida. Os malvados ainda possuem algumas caixas, mas têm-nas bem
guardadas. Nos altifalantes do manicómio ouvem-se as mesmas palavras de
aconselhamento, conforto e propaganda, que já não têm nada a ver com a
realidade, não passam de uma fita gravada posta a reproduzir um discurso já
feito e desactualizado. A comida não vinha, e os cegos resolvem ir assaltar a
caserna dos malvados, porém, eles estão barricados com quatro camas sobrepostas
à entrada da camarata. Tentam forçar a entrada, mas são disparados três tiros,
sendo atingidos dois cegos. O Assalto gora-se, e uma mulher, a Mulher do Isqueiro, põe fogo àquela ala,
que se alastra a todo o edifício. Com o incêndio a alastrar a Mulher do Médico vai
pedir aos soldados para que os deixem sair. Vai com cuidado, não vá receber um
tiro, porém, o impensável aconteceu, não encontra ninguém na portaria, devem
ter ficado todos cegos ou loucos, as portas do manicómio estão abertas.
Capítulo
XIII: Os cegos
começam a sair daquele labirinto racional para a cidade, mas não sabem para
onde ir. Continuam juntos, como um rebanho de que não se queiram desmembrar,
deixando cá atrás o manicómio a arder. A cidade está deserta, paralisada pela
cegueira, e porventura o país. Os cegos andam repartidos por grupos, de casa em
casa, de loja em loja, tentando sobreviver, mas foram todas saqueadas. Por fim
param, a Mulher do Médico vai tentar sozinha procurar algo que comer, o ver
pode-lhe servir de alguma ajuda. Depois de muito palmilhar consegue descobrir
alguma comida na cave de um armazém, que anteriores cegos não detectaram. Reúne
alguma e regressa junto dos seus. Pelo caminho perde-se, quase sem forças, no
meio de tanta desgraça põe-se a chorar. Aparece então um cão que lhe lambe a
cara, é o cão das lágrimas, que
depois acompanhará o grupo. Passa por algumas aflições até os encontrar. Estão
amedrontados, ainda não sabem como regressar a suas casas. A cidade está
irreconhecível, jazem em decomposição cadáveres pelas ruas. Enquanto ficam por
ali e comem, contam as suas aventuras, as suas amarguras.
Capítulo
XIV: Saem todos à
procura de comida, mas dão antes com um armazém de roupa. Vestem-se e
calçam-se. A cidade tem um aspecto fantasmagórico, foi saqueada. Procuram à rua
da Rapariga de Óculos Escuros, sobem a casa dela, mas a porta está fechada. Só
encontram uma vizinha já velha, a viver no andar de baixo. Escapou ao
internamento por se ter escondido na casa da Rapariga de Óculos Escuros. Foi-lhe
perguntado por comida, mas ela fez-se escusa, disse que esta se tinha esgotado,
e sobrevivia à custa das couves das hortas, da carne de coelho e galinha, que
comia crua. Deu informações sobre a casa mas exigiu logo comida como paga. Ali
nada se dava de graça. Foi o cão da lágrimas que a fez fechar-se em casa. O
grupo resolve pernoitar na casa da Rapariga de Óculos Escuros. São sete, além
desta, a Mulher do Médico, o Médico, o Rapazito Estrábico, o Primeiro Cego, a Mulher
do Primeiro Cego e o Velho da Venda Preta. As retretes estão entupidas, vêm ao
quintal fazer as suas necessidades. Vão continuar juntos. Não há água nem luz
na cidade, deve estar tudo cego. Não haveria sequer governo. Saem, passam por
um banco cujo conselho directivo não se realizou. Estão a chegar a casa do
Médico, ele ainda possui as chaves.
Capítulo
XV: Ao entrarem
na casa do Médico vão à procura de roupa, que ali existe para todos, embora
comida não abundasse. Chove torrencialmente e vêm cá fora tomar banho na água
da chuva. Acomodam-se na casa, que lhes dá algum conforto, roupa, alguma água,
mas os géneros alimentícios estão a escassear. A Mulher do Médico, o Primeiro
Cego e a Mulher do Primeiro Cego saem à procura de comida, e aproveitam para ir
a casa do Primeiro Cego, porém, vão dar com ela ocupada por um Escritor, que escreve com
esferográfica. Também a ele lhe ocuparam a casa. Está tudo a saque. Percebe o
que escreve através do tacto. Estava a escrever um livro, e matéria não lhe
faltaria. Regressam a casa do Médico com comida para três dias, comentando
episódios daquela viagem.
Capítulo
XVI: O Médico
vai com a mulher ao consultório, leva consigo a Rapariga de Óculos Escuros e o
Velho da Venda Preta. Quer saber o que se passa, ver como estão ali as coisas,
que examina com algum pormenor. O mundo está cheio de cegos vivos. O pior cego é aquele que não quer ver,
conclui. Seguem depois para casa da Rapariga de Óculos Escuros e encontram numa
praça cegos que escutam os discursos de outros cegos. Mesmo cegos, os homens
estão cheios de ideias, porventura estúpidas. Ao chegarem ao prédio dela dão
com uma mulher morta à porta e obrigam-se a enterrá-la no quintal. Há que ter
ainda alguma humanidade. Regressam a casa do Médico, e à noite, a Rapariga dos
óculos Escuros e o Velho da Venda Preta fazem algumas considerações sobre a
vida.
Capítulo
XVII: A Mulher
do Médico verifica que a comida está a escassear e resolve sair com o marido
aos armazéns subterrâneos do hipermercado que descobrira no primeiro dia em que
saíra. Pelo caminho encontram um grupo de cegos a ouvir grandes discursos sobre
organização, sobre o mercado, a bolsa, o fisco, os juros: a economia e a
política a predominar. Chegam ao local e dão com o hipermercado a tresandar de
putrefacção. Alguns cegos terão chegado antes, e, ao usarem a escada para
descer deixaram-na cair, não dando com o buraco para sair, morrendo lá todos. Era
um cheiro terrível! Passam por uma igreja, e as imagens os santos e do próprio
Cristo estão de olhos vendados, quem fez este sacrilégio achou que eles não deveriam
ou mereciam ver aquela miséria, ou talvez estivessem mesmo cegos. Já em casa,
algo estranho, ocorreu, o Primeiro Cego disse que estava cego, ou seja, via
tudo escuro. A sala não estaria iluminada, ele estava curado do mal-branco,
passara a ver. Já via, e agora o que fazer? A recuperação da cegueira continuou,
seguiu-se, a da Rapariga dos Óculos Escuros e a do Médico. Estavam a recuperar
todos a visão, depois da miséria por que passaram, o Médico conclui: Penso que não cegámos, penso que estamos
cegos, cegos que, vendo, não vêem. A vida continuava, a cidade ainda ali
estava.
Breve comentário
O
Ensaio Sobre a Cegueira é considerado mundialmente um dos melhores romances
de José Saramago, embora em Portugal haja outros porventura mais valorizados,
por tratarem de assuntos nacionais, de que os leitores já conhecem alguma
coisa. Este livro, que será essencialmente ideológico, tem apesar de tudo muita
acção, até já inspirou um filme. Uma tal admiração mundial, dever-se-á, para
além da originalidade do tema e do modo quase insuperável como está escrito, ao
seu carácter universal: a sua história poderia ocorrer em qualquer país,
interessa a todos, pode ser compreendida por toda a gente do planeta.
O autor escreve aqui com uma grande
simplicidade de meios, empregando termos comezinhos, por vezes recorre mesmo ao
calão, mas não se furta a usar terminologia erudita, quando necessário. Serve-se
de uma linguagem coloquial, misturando o discurso directo com o discurso
indirecto. Não usa travessão, os dois pontos, o ponto e vírgula, e poupa nos
pontos finais, mas isto não impede que a obra se leia como correnteza, e neste
aspecto é inovador: conseguiu-nos liberdade para desprezarmos algumas regras de
pontuação, que mentalidades rígidas consideravam nunca poderem ser infringidas.
E é curioso, que com as suas cautelas a narrativa fica frequentemente mais
fluida, contínua, às vezes torrencial.
Outras características que o
valorizam são a unidade de construção, a sua coerência interna, e o suspense que alimenta toda aquela
história, uma tensão permanente que se mantém do princípio ao fim do romance. Logo
que o começamos a ler temos necessidade de saber o que vem a seguir, queremos
compreender a questão, saber como acaba aquela coisa. A humanidade aqui
retratada é violenta, por vezes cruel, embora haja dentro dela pessoas generosas
e altruístas, predomina o egoísmo e a indiferença. Realmente, temos de
concordar, ou pelo menos questionar, o homem continua cego para muito do que
mais importa.
Conclusão
José Saramago, embora não seja o
dono do saber, e por vezes possa parecer demasiado convicto das suas verdades, é,
como todos nós, fruto de formações fisiológicas, inquinações psicológicas,
deformações ideológicas, dá-nos aqui a sua versão do mundo e do homem, uma
versão elaborada, que nos leva a reflectir sobre a irracionalidade de muitas
das nossas convicções, sobre alguns dos nossos incompreensíveis alheamentos. Parece
ter uma péssima ideia do homem e descrer de Deus, e nem por isto nos merece
menos interesse: há demasiada violência e demência no mundo, e as crenças têm
estado a ser substituídas ao fim de alguns milénios. As religiões, se numa
primeira fase podem agregar a sociedade, cimentar a paz, favorecer a
solidariedade, são funcionais; numa segunda fase, ou quando em confronto com
outras, cristalizam no tempo e criam falsas divisões, dão origem a guerras, são
disfuncionais. As mais imponentes e sólidas edificações religiosas, obra das
mais antigas crenças, se não estão no mais completo abandono é porque o
turismo as sustenta.
Alguns crentes costumam indignar-se
com as suas opções ateístas, mas se ele não acreditava em Deus, uma vez disse: Não sou um ateu total, todos os dias tento
encontrar um sinal de Deus, só que infelizmente não o encontro. E foi
sincero quando o disse. Não O viu, este é o facto, não o podem culpabilizar por
isso, e não foi por O não ter procurado. Não há carência de elementos a
corroborar esta afirmação, pois nas suas obras o nome de Deus não foi banido, o
fenómeno religioso sempre o atraiu, ele sempre o tentou estudar, embora, de tão
desiludido com o mundo, o vá reescrever segundo a sua óptica, enriquecendo-os
de justificações quase doutrinárias. Citemos apenas A Segunda Vida de Francisco
de Assis, O Evangelho Segundo Jesus
Cristo, e Caim.
Era por natureza pessimista. Viveu a
infância com os avós, por os seus pais terem emigrado para Lisboa, no meio de
algumas carências, na sua personalidade nota-se uma certa orfandade, uma grande
sensibilidade à justiça e à equidade, uma dor, dada a indiferença com que vê o
Universo olhar para a Terra. Teve as suas dificuldades, mas soube evoluir, e
muito pela sua força de vontade, pelo seu esforço, chegando bem alto. No fim da
sua vida instituiu a Fundação José Saramago para a defesa da Declaração dos Direitos Humanos e dos
problemas do meio ambiente, querendo dar um contributo para a felicidade do ser
humano, apelando para o respeito dos seus direitos e para a preservação da
Terra, a sua casa, dando-nos mais uma prova do seu elevado humanismo.
Bem escreve Vítor Aguiar e Silva
numa badana desta edição: A cegueira é a
metáfora da desumanização e da indignidade do homem. Com ela, irrompem os
demónios e os monstros apocalípticos: a fome, violência… O manicómio e a cidade
fantasmática, no seu horror absoluto, são a visão sublime e grotesca da
aflição, do sofrimento. È a sua forma de ver o mundo e criticar o homem,
que tarda em tomar consciência da verdadeira realidade que o cerca, para se
escravizar pelo ilusório, pela alienação. Como ele disse: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Sim, não se trata de um
romance a desfiar apenas uma bela história, mas de um livro que se pode ler a
diversos níveis, tem outras leituras, no âmbito da sociedade, as componentes:
politica, económica, social e religiosa; no âmbito individual a sua componente
moral, nós temos de mudar, infelizmente, continuamos a ser um tanto
“mauzinhos”, e de vistas curtas.
O
Ensaio Sobre a Cegueira é um romance de pendor existencialista, kafkiano, José
Saramago, partindo de uma situação hipotética, mas estruturada, digamos, de um Realismo Metafórico, vai pôr a
humanidade à prova, com a tese, melhor expressa no fim do livro: Penso que estamos cegos. Cegos que vêem,
Cegos que, vendo, não vêem. Retrata bem a alma humana, o seu egoísmo e sua mesquinhez,
a sua cobardia e a sua coragem, ora imbecil ora lúcida, e retrata-a com uma
grande evidência, com a clareza capaz de nos fazer reflectir, de nos fazer
indignar com o mundo de que temos a responsabilidade de melhorar, trata-se de
um romance extraordinário.
10 de Abril de 2015
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