JOSÉ SARAMAGO


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 JOSÉ SARAMAGO
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Editorial Caminho


O homem
            José Saramago nasceu na Azinhaga, Golegã, em 16 de Novembro de 1922, e faleceu em 18 de Junho de 2010 na ilha de Lanzarote, Canárias. Filho de gente modesta, fez estudos secundários, que não prosseguiu por dificuldades económicas. O seu primeiro emprego foi o de serralheiro mecânico. Foi membro do Partido Comunista Português, director-adjunto do Diário de Notícias. Ganhou em 1995, o Prémio Camões, e em 1998, o Prémio Nobel da Literatura. Em 2007 criou a Fundação José Saramago para a defesa da Declaração dos Direitos Humanos e dos problemas do meio ambiente. 

A obra
            É autor de vasta obra literária, 18 romances, de que se destacam: Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Ensaio Sobre a Cegueira, As Intermitências da Morte e Caím. Mas deixou ainda livros de poesia, peças teatrais, Diários e Memórias, literatura de Viagens e literatura Infantil. Desde 1976, e até ao fim da sua vida, fez da literatura a sua profissão.

O romance Ensaio Sobre a Cegueira
            Sinopse do livro
            A obra está escrita em 17 capítulos, que o autor não numera, mas que nós aqui vamos enumerar para estudo, e por mera curiosidade. Num mundo de cegos, as pessoas não têm nomes, conhecem-se pelos seus predicados mais expressivos, é isto que diz o autor. Vamos porém, aqui destacá-los, para  em poucas páginas tentarmos compreender melhor o romance.


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Cena do filme Ensaio sobre a Cegueira de Fernando Meirelles

Capítulo I: Um homem cegou dentro do carro, à frente de um semáforo, é o Primeiro Cego. Perante o seu desespero, alguém o vai levar a casa. Ao chegar perto da porta dispensa a ajuda deste bom samaritano, temendo que o viesse assaltar. Desloca-se então pelo interior da casa, que conhece bem, mas acaba por deitar ao chão um jarro de flores e cortar-se. A mulher, ao chegar mostra-se desagradada com o sucedido, e não acreditou, quando ele lhe disse que estava cego. Ele só via branco, esclareceu. Postos mais dentro da realidade, reconhecem que ele tem de ir consultar um oftalmologista. A mulher vai buscar o carro onde ele disse que o tinha deixado, mas já não o encontra, afinal tinha sido roubado pelo falso bom samaritano. Regressa a casa e chama um táxi para o levar ao médico. Na sala de espera do consultório dão-lhe prioridade, ainda que contestada. Tem 38 anos, o médico não dá com a doença, prescreve-lhe exames e marca-lhe uma nova consulta. Não se esquece de o mandar pagar a consulta à empregada da recepção. Nessa noite sonhou que estava cego.

Capítulo II: A ocasião faz o ladrão. O homem que o ajudara no semáforo, na posse do automóvel, ainda teve um rebate de consciência, mas acabou por lhe roubar o carro. Saiu da viatura, e mal tinha dado trinta passos, cegou. É o Ladrão do Automóvel. No consultório, o Médico, acabado de atender o último doente, telefona a um colega a relatar tão estranho caso. À noite fala do assunto à mulher. Trata-se de um caso estranho. Tira um livro de uma prateleira para estudar melhor a doença, quando cegou. Porém, não diz nada à mulher para não alarmar. Perto dali, a Rapariga de Óculos Escuros, com ares de prostituta, que o médico tratara aquela tarde a uma conjuntivite, seguiu para um encontro de hotel, e, em pleno acto de serviço com um cliente passa a ver tudo branco, cegou.

Capítulo III: O Ladrão do Automóvel cegou como vimos, e é um polícia que o leva a casa. A Rapariga de Óculos Escuros também foi levada a casa por um polícia grosseiro, depois de um episódio caricato. Em sua casa o Médico continua na cama, está cego. A mulher levanta-se, não suspeita de nada, até que ele lhe confessa realmente o seu estado e liga para os serviços hospitalares e burocráticos a dar conta do sucedido. Trata-se de um caso de saúde pública. O Médico vai ser internado, chamam uma ambulância, o condutor desta diz que só o pode levar a ele, que está cego, mas ela confessa que acabou mesmo de cegar, como pretexto para também ser levada e o acompanhar.

Capítulo IV: A gravidade do assunto leva-o à superintendência do ministério. A doença passa a designar-se por Etiologia do mal-branco. Decidem-se pôr as pessoas de quarentena, entre um quartel, uma feira industrial, um hipermercado em processo de falência e um manicómio, decidem-se por este último. O Médico e a Mulher do Médico entram, embora esta não esteja ainda cega. Mas outros cegos tinham acabado de entrar, o Primeiro Cego, o Ladrão do Automóvel, um Menino Estrábico, e a Rapariga de Óculos Escuros. O governo, que se diz consciente das suas responsabilidades, toma logo uma série de medidas draconianas, evidenciando muita acção, mas pouca competência. São apenas seis, existem várias camaratas disponíveis, dão-se ao conhecimento e começam a organizar-se.

Capítulo V: A Mulher do Médico ao despertar hesita em abrir os olhos, não vá estar cega. Faz considerações sobre o abandono a que estão votados. Chegam mais cinco cegos. O Polícia, o Motorista de Táxi, o Ajudante de Farmácia, a Criada de Hotel e a Empregada de Escritório. É dito aos altifalantes que foi posta comida e produtos de higiene à entrada, entre a ala dos cegos e a ala dos contaminados. A Mulher do Médico pede antibióticos para um Ladrão de Automóveis que está ferido, e é ameaçada pelo soldado. Chegam depois mais três expulsos da ala dos contaminados: a Empregado do Consultório, o Homem que Estivera com a Rapariga do Óculos Escuros, e o Polícia Grosseiro que a trouxera a casa. Subitamente chega mais um rebanho de cegos. São agora 40. As condições de saúde e higiene começam a piorar, porém, embora o governo continue, hipocritamente, a mostrar-se responsável, e a afirmar que está a fazer o seu melhor. O Ladrão de Automóveis, que tinha sido ferido na perna quando apalpou a Rapariga de óculos Escuros, sente-se pior e vai a arrastar-se até junto dos guardas para que o mandem para o hospital, porém, um soldado nervoso disparou uma rajada contra ele, matando-o. Vieram 10 cegos saber o que se passava, e 4 aproximaram-se para ir buscar o corpo.

Capítulo VI: É preciso enterrar o morto, mas não há com quê. Vão pedir uma enxada ou uma pá à entrada mas são parados pela sentinela. A Mulher do Médico invoca o perigo da doença se alastrar, e só então o sargento vai tentar resolver a coisa. Já são 50 na ala. Pelos altifalantes é mandado vir alguém buscar a enxada, o que a Mulher do Médico faz, providenciando para que o Ladrão de Automóveis seja enterrado. Mas chega-se ao meio dia e não trazem a comida. Os cegos desesperam à entrada do átrio. Quando a comida chega, finalmente, temerosos, os soldados combinaram não levar as caixas da comida à entrada das portas que davam para as duas alas, deixando-as logo ali à saída, à entrada do átrio. Os cegos precipitam-se e os soldados disparam os carregadores contra eles, matando uns tantos. O sargento acha que o melhor seria deixarem morrer os cegos à fome. Da ala dos contaminados aparecem alguns contagiados a querer roubar aos cegos. São nove os mortos, a Mulher do Médico reconhece o Homem que Saiu do Hotel com a Rapariga dos Óculos Escuros, o Motorista de táxi e os dois polícias. Decide-se que cada camarata enterrará os seus mortos. E, no meio daquela tragédia, há um cego e uma cega que têm uma relação sexual ruidosa que incomoda os que a pressentem.

Capítulo VII: Outra manhã terrível, após três dias de isolamento. A comida não é trazida e a camarata ao lado não enterrou os seus mortos, que tresandam. Por fim avisam aos altifalantes que a comida chegou, e os cegos precipitam-se atabalhoadamente para lá. O sargento avisa para não se aproximarem demasiado que levam um tiro, obrigando-os a hesitar. Sabia-se que para o comandante do regimento o problema dos cegos só se resolveria com a sua liquidação total. Conseguiram a custo trazer as caixas e há confraternização geral, porém, há alguém que se aproveita para levar umas tantas caixas, surgem protestos. Chegam as caixas dos contagiados, há quem proponha um roubo, que o Médico condena. Acabam por comer o que resta, escandalizados. A situação agrava-se quando o exército traz mais quatro camionetas de cegos. São agora uns 200. Ouvem-se tiros na rua. Na ala dos cegos estão 60 ou 70, fora um dúzia que mataram, nesta, há três camaratas, com a capacidade para 120 pessoas, mas têm de caber lá todos ou vão para a ala dos contagiados, não interessa. Os condutores dos autocarros acabam por ser internados. O coronel que tinha proposto a morte dos cegos, cegou, e suicidou-se. A leva de cegos vai entrar, recomenda-se as habituais regras de segurança e higiene, mas aquilo é só um pró-forma, o manicómio não tem condições nenhumas. Os cegos não cabem na ala dos cegos e tentar forçar a ala dos contaminados, que a defendem a soco e a pontapé, mas de repente começam a cegar, ficam todos cegos. No meio desta confusão aparece um velho a perguntar se por ali há alguma cama para ele.  

Capítulo VIII: A chegada de tantos cegos parecia trazer duas espécies de vantagens, as psicológicas, por ao estar cheio o edifício se estabilizariam as relações, e de ordem prática, porque agora, com um número tão elevado de internado as autoridades talvez passassem a levar a coisa mais a sério. Estão agora ali 250 seres humanos. Apanharam um rádio das pessoas que tinha acabado de entrar, e através conseguem obter notícias do que se passava lá fora. A Mulher do Médico pôde mesmo acertar o relógio, cuja corda se esquecera de dar. O Velho da Venda Preta recém-chegado, conta como está tudo lá fora, refere as metáforas da informação, a hipocrisia do governo, que diz estar consciente das suas responsabilidade, mas pouco faz para melhorar as coisas. Pensaram em ordenar que cada família tomasse conta dos seus cegos, mas depois decidiram-se por interná-los. Estão a utilizar fábricas abandonadas, templos já sem uso, pavilhões desportivos, armazéns vazios. Relata que os transportes, depois de caos que se instalou, e da queda de um avião, por fim paralisaram. Soube-se que estava para breve a formação de um governo de salvação nacional.

Capítulo IX: Estão agora ocupados todos os catres do edifico, 240, fora os cegos que dormem no chão. As camaratas, são seis, três em cada ala, estão transformadas em charcos fétidos, tal a podridão, a falta de higiene que ali grassa. E pior do que isto seria talvez o grau de desumanidade que entretanto se gerara. Surge então um grupo da ala que fora dos contaminados, com um cego portador de uma pistola, a impor-se aos demais, e se apossa das caixas de comida. A partir de agora a comida tem de ser paga. A fome a isso obriga, os cegos vão resolver como pagar a comida, cada camarata nomeará dois responsáveis para recolher valores: dinheiro, jóias, anéis, relógios, brincos. O Médico é nomeado chefe da ala para negociar a comida. O Cego da Pistola, e o Cego Escriturário, que era cego antes desta epidemia e lidava melhor com a cegueira, vão receber o pagamento.

Capítulo X: É preciso reunir meios com que pagar a comida, mas eles estão-se a exaurir. O Cego da Venda Preta considera que o rádio não terá valor comercial, quere-o para ouvir notícias, deseja saber o que se passa cá fora, embora tendo de descontar obviamente as falsidades e vaticínios oficiais. Mas, por fim, também elas se calam, deve ter chegado também lá o mal-branco. A situação que se vive no manicómio é de verdadeira calamidade, muita fome, grande violência, falta de higiene. A Mulher do Médico dá-se conta que pouco lhe vale ter visão, às vezes seria melhor ser cega para não ver à sua volta tanta miséria, tanta injustiça, tanta podridão. Movida pela curiosidade faz uma visita sorrateira à ala esquerda e direita como para reconhecer a adversidade que os outros ali enfrentam. Aquilo é uma imundice pegada, a degradação humana levada ao extremo.

Capítulo XI: Aumenta o caos e mantém-se a insurreição da camarata dos malvados. Estão ali à volta de 300 pessoas, entre cegos bons, cegos maus e cegos malvados. É necessário fazer qualquer coisa para que se coma. Foram recolhidas pelas camaratas valores com que se pagasse a comida, processo complicado, cheio de manhas e perfídias. Lá conseguiram negociar. E quando os bens se esgotaram, os cegos malvados exigiram que lhes trouxessem as mulheres. Homens e mulheres reagiram a tal medida tão sórdida, sabendo-se então, no meio da discussão, que havia relações infiéis entre alguns casais, de que se conta a do Médico com a Rapariga de Óculos Escuros. Estavam há três dias sem comer, ficou decidido que a primeira camarata era a primeira a escalar mulheres, sete, que iriam ter muito trabalho ao irem servir os 20 malvados. Lá seguem as mulheres, entre elas a Mulher do Médico, que é como as demais, sujeita aos caprichos depravados dos malvados. Regressam à camarata e lavam-se, morre uma, a que não conseguia dormir. Por fim o Médico e o Velho da Venda Preta chegam com a comida.

Capítulo XII: No quarto dia os malvados vêm reclamar as mulheres da segunda camarata. São 15 e seguem com eles passivamente, seguidas pela Mulher do Médico. Ali chegadas inicia-se a orgia, o chefe dos malvados está ao fim da camarata junto da comida, na posse de uma das suas vítimas. A Mulher do Médico aproxima-se dele, e quando o vê menos prevenido, mata-o com umas tesouras. Há luta e os bons apoderam-se da comida. Os cegos estão em guerra, sempre estiveram em guerra. Contudo, nem assim as coisas melhoram, os abastecimentos pararam. O sargento diz que a culpa não é do exército, há dois dias que não recebem comida. Os malvados ainda possuem algumas caixas, mas têm-nas bem guardadas. Nos altifalantes do manicómio ouvem-se as mesmas palavras de aconselhamento, conforto e propaganda, que já não têm nada a ver com a realidade, não passam de uma fita gravada posta a reproduzir um discurso já feito e desactualizado. A comida não vinha, e os cegos resolvem ir assaltar a caserna dos malvados, porém, eles estão barricados com quatro camas sobrepostas à entrada da camarata. Tentam forçar a entrada, mas são disparados três tiros, sendo atingidos dois cegos. O Assalto gora-se, e uma mulher, a Mulher do Isqueiro, põe fogo àquela ala, que se alastra a todo o edifício. Com o incêndio a alastrar a Mulher do Médico vai pedir aos soldados para que os deixem sair. Vai com cuidado, não vá receber um tiro, porém, o impensável aconteceu, não encontra ninguém na portaria, devem ter ficado todos cegos ou loucos, as portas do manicómio estão abertas.

Capítulo XIII: Os cegos começam a sair daquele labirinto racional para a cidade, mas não sabem para onde ir. Continuam juntos, como um rebanho de que não se queiram desmembrar, deixando cá atrás o manicómio a arder. A cidade está deserta, paralisada pela cegueira, e porventura o país. Os cegos andam repartidos por grupos, de casa em casa, de loja em loja, tentando sobreviver, mas foram todas saqueadas. Por fim param, a Mulher do Médico vai tentar sozinha procurar algo que comer, o ver pode-lhe servir de alguma ajuda. Depois de muito palmilhar consegue descobrir alguma comida na cave de um armazém, que anteriores cegos não detectaram. Reúne alguma e regressa junto dos seus. Pelo caminho perde-se, quase sem forças, no meio de tanta desgraça põe-se a chorar. Aparece então um cão que lhe lambe a cara, é o cão das lágrimas, que depois acompanhará o grupo. Passa por algumas aflições até os encontrar. Estão amedrontados, ainda não sabem como regressar a suas casas. A cidade está irreconhecível, jazem em decomposição cadáveres pelas ruas. Enquanto ficam por ali e comem, contam as suas aventuras, as suas amarguras.

Capítulo XIV: Saem todos à procura de comida, mas dão antes com um armazém de roupa. Vestem-se e calçam-se. A cidade tem um aspecto fantasmagórico, foi saqueada. Procuram à rua da Rapariga de Óculos Escuros, sobem a casa dela, mas a porta está fechada. Só encontram uma vizinha já velha, a viver no andar de baixo. Escapou ao internamento por se ter escondido na casa da Rapariga de Óculos Escuros. Foi-lhe perguntado por comida, mas ela fez-se escusa, disse que esta se tinha esgotado, e sobrevivia à custa das couves das hortas, da carne de coelho e galinha, que comia crua. Deu informações sobre a casa mas exigiu logo comida como paga. Ali nada se dava de graça. Foi o cão da lágrimas que a fez fechar-se em casa. O grupo resolve pernoitar na casa da Rapariga de Óculos Escuros. São sete, além desta, a Mulher do Médico, o Médico, o Rapazito Estrábico, o Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego e o Velho da Venda Preta. As retretes estão entupidas, vêm ao quintal fazer as suas necessidades. Vão continuar juntos. Não há água nem luz na cidade, deve estar tudo cego. Não haveria sequer governo. Saem, passam por um banco cujo conselho directivo não se realizou. Estão a chegar a casa do Médico, ele ainda possui as chaves.

Capítulo XV: Ao entrarem na casa do Médico vão à procura de roupa, que ali existe para todos, embora comida não abundasse. Chove torrencialmente e vêm cá fora tomar banho na água da chuva. Acomodam-se na casa, que lhes dá algum conforto, roupa, alguma água, mas os géneros alimentícios estão a escassear. A Mulher do Médico, o Primeiro Cego e a Mulher do Primeiro Cego saem à procura de comida, e aproveitam para ir a casa do Primeiro Cego, porém, vão dar com ela ocupada por um Escritor, que escreve com esferográfica. Também a ele lhe ocuparam a casa. Está tudo a saque. Percebe o que escreve através do tacto. Estava a escrever um livro, e matéria não lhe faltaria. Regressam a casa do Médico com comida para três dias, comentando episódios daquela viagem.

Capítulo XVI: O Médico vai com a mulher ao consultório, leva consigo a Rapariga de Óculos Escuros e o Velho da Venda Preta. Quer saber o que se passa, ver como estão ali as coisas, que examina com algum pormenor. O mundo está cheio de cegos vivos. O pior cego é aquele que não quer ver, conclui. Seguem depois para casa da Rapariga de Óculos Escuros e encontram numa praça cegos que escutam os discursos de outros cegos. Mesmo cegos, os homens estão cheios de ideias, porventura estúpidas. Ao chegarem ao prédio dela dão com uma mulher morta à porta e obrigam-se a enterrá-la no quintal. Há que ter ainda alguma humanidade. Regressam a casa do Médico, e à noite, a Rapariga dos óculos Escuros e o Velho da Venda Preta fazem algumas considerações sobre a vida.

Capítulo XVII: A Mulher do Médico verifica que a comida está a escassear e resolve sair com o marido aos armazéns subterrâneos do hipermercado que descobrira no primeiro dia em que saíra. Pelo caminho encontram um grupo de cegos a ouvir grandes discursos sobre organização, sobre o mercado, a bolsa, o fisco, os juros: a economia e a política a predominar. Chegam ao local e dão com o hipermercado a tresandar de putrefacção. Alguns cegos terão chegado antes, e, ao usarem a escada para descer deixaram-na cair, não dando com o buraco para sair, morrendo lá todos. Era um cheiro terrível! Passam por uma igreja, e as imagens os santos e do próprio Cristo estão de olhos vendados, quem fez este sacrilégio achou que eles não deveriam ou mereciam ver aquela miséria, ou talvez estivessem mesmo cegos. Já em casa, algo estranho, ocorreu, o Primeiro Cego disse que estava cego, ou seja, via tudo escuro. A sala não estaria iluminada, ele estava curado do mal-branco, passara a ver. Já via, e agora o que fazer? A recuperação da cegueira continuou, seguiu-se, a da Rapariga dos Óculos Escuros e a do Médico. Estavam a recuperar todos a visão, depois da miséria por que passaram, o Médico conclui: Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que, vendo, não vêem. A vida continuava, a cidade ainda ali estava.

            Breve comentário
            O Ensaio Sobre a Cegueira é considerado mundialmente um dos melhores romances de José Saramago, embora em Portugal haja outros porventura mais valorizados, por tratarem de assuntos nacionais, de que os leitores já conhecem alguma coisa. Este livro, que será essencialmente ideológico, tem apesar de tudo muita acção, até já inspirou um filme. Uma tal admiração mundial, dever-se-á, para além da originalidade do tema e do modo quase insuperável como está escrito, ao seu carácter universal: a sua história poderia ocorrer em qualquer país, interessa a todos, pode ser compreendida por toda a gente do planeta.
            O autor escreve aqui com uma grande simplicidade de meios, empregando termos comezinhos, por vezes recorre mesmo ao calão, mas não se furta a usar terminologia erudita, quando necessário. Serve-se de uma linguagem coloquial, misturando o discurso directo com o discurso indirecto. Não usa travessão, os dois pontos, o ponto e vírgula, e poupa nos pontos finais, mas isto não impede que a obra se leia como correnteza, e neste aspecto é inovador: conseguiu-nos liberdade para desprezarmos algumas regras de pontuação, que mentalidades rígidas consideravam nunca poderem ser infringidas. E é curioso, que com as suas cautelas a narrativa fica frequentemente mais fluida, contínua, às vezes torrencial.
            Outras características que o valorizam são a unidade de construção, a sua coerência interna, e o suspense que alimenta toda aquela história, uma tensão permanente que se mantém do princípio ao fim do romance. Logo que o começamos a ler temos necessidade de saber o que vem a seguir, queremos compreender a questão, saber como acaba aquela coisa. A humanidade aqui retratada é violenta, por vezes cruel, embora haja dentro dela pessoas generosas e altruístas, predomina o egoísmo e a indiferença. Realmente, temos de concordar, ou pelo menos questionar, o homem continua cego para muito do que mais importa.

            Conclusão
            José Saramago, embora não seja o dono do saber, e por vezes possa parecer demasiado convicto das suas verdades, é, como todos nós, fruto de formações fisiológicas, inquinações psicológicas, deformações ideológicas, dá-nos aqui a sua versão do mundo e do homem, uma versão elaborada, que nos leva a reflectir sobre a irracionalidade de muitas das nossas convicções, sobre alguns dos nossos incompreensíveis alheamentos. Parece ter uma péssima ideia do homem e descrer de Deus, e nem por isto nos merece menos interesse: há demasiada violência e demência no mundo, e as crenças têm estado a ser substituídas ao fim de alguns milénios. As religiões, se numa primeira fase podem agregar a sociedade, cimentar a paz, favorecer a solidariedade, são funcionais; numa segunda fase, ou quando em confronto com outras, cristalizam no tempo e criam falsas divisões, dão origem a guerras, são disfuncionais. As mais imponentes e sólidas edificações religiosas, obra das mais antigas crenças, se não estão no mais completo abandono é porque o turismo as sustenta.
            Alguns crentes costumam indignar-se com as suas opções ateístas, mas se ele não acreditava em Deus, uma vez disse: Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, só que infelizmente não o encontro. E foi sincero quando o disse. Não O viu, este é o facto, não o podem culpabilizar por isso, e não foi por O não ter procurado. Não há carência de elementos a corroborar esta afirmação, pois nas suas obras o nome de Deus não foi banido, o fenómeno religioso sempre o atraiu, ele sempre o tentou estudar, embora, de tão desiludido com o mundo, o vá reescrever segundo a sua óptica, enriquecendo-os de justificações quase doutrinárias. Citemos apenas A Segunda Vida de Francisco de Assis, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e Caim.
            Era por natureza pessimista. Viveu a infância com os avós, por os seus pais terem emigrado para Lisboa, no meio de algumas carências, na sua personalidade nota-se uma certa orfandade, uma grande sensibilidade à justiça e à equidade, uma dor, dada a indiferença com que vê o Universo olhar para a Terra. Teve as suas dificuldades, mas soube evoluir, e muito pela sua força de vontade, pelo seu esforço, chegando bem alto. No fim da sua vida instituiu a Fundação José Saramago para a defesa da Declaração dos Direitos Humanos e dos problemas do meio ambiente, querendo dar um contributo para a felicidade do ser humano, apelando para o respeito dos seus direitos e para a preservação da Terra, a sua casa, dando-nos mais uma prova do seu elevado humanismo.
            Bem escreve Vítor Aguiar e Silva numa badana desta edição: A cegueira é a metáfora da desumanização e da indignidade do homem. Com ela, irrompem os demónios e os monstros apocalípticos: a fome, violência… O manicómio e a cidade fantasmática, no seu horror absoluto, são a visão sublime e grotesca da aflição, do sofrimento. È a sua forma de ver o mundo e criticar o homem, que tarda em tomar consciência da verdadeira realidade que o cerca, para se escravizar pelo ilusório, pela alienação. Como ele disse: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Sim, não se trata de um romance a desfiar apenas uma bela história, mas de um livro que se pode ler a diversos níveis, tem outras leituras, no âmbito da sociedade, as componentes: politica, económica, social e religiosa; no âmbito individual a sua componente moral, nós temos de mudar, infelizmente, continuamos a ser um tanto “mauzinhos”, e de vistas curtas.
            O Ensaio Sobre a Cegueira é um romance de pendor existencialista, kafkiano, José Saramago, partindo de uma situação hipotética, mas estruturada, digamos, de um Realismo Metafórico, vai pôr a humanidade à prova, com a tese, melhor expressa no fim do livro: Penso que estamos cegos. Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. Retrata bem a alma humana, o seu egoísmo e sua mesquinhez, a sua cobardia e a sua coragem, ora imbecil ora lúcida, e retrata-a com uma grande evidência, com a clareza capaz de nos fazer reflectir, de nos fazer indignar com o mundo de que temos a responsabilidade de melhorar, trata-se de um romance extraordinário.

10 de Abril de 2015

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