GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Cem Anos de Solidão
EDITORA DOM QUIXOTE
Tradução de Margarida Santiago
com 318 páginas
O
HOMEM
Gabriel García Márquez nasceu em 6
de Março de 1927 na cidade de Aracataca, na Colômbia. Teve origem numa família
modesta, no seio onze filhos, sendo durante alguns anos criado pelos seus avôs
maternos. A avó Iguarán, pela sua forte personalidade, e o avô, Márquez Mejía, veterano
da Guerra dos Mil Dias, tiveram
grande influência na sua obra, bem patente no presente livro. Estudou direito e
ciências sociais em Bogotá, mas não chegou a concluir os estudos para seguir o
jornalismo. Foi correspondente internacional na Europa e nos Estados Unidos. Os
seus livros reflectiam a problemática política e social dos povos da América
Latina, tinham uma visão revolucionária da vida. Foi agraciado com diversos
prémios, condecorações e honrarias, recebendo o Prémio Nobel da literatura em 1982. Nos
últimos anos da sua vida teve um tumor linfático que superou, e problemas de
demência, vindo a falecer no México, vítima de uma pneumonia, tinha 87 anos de
idade.
A
OBRA
Gabriel García Márquez tem uma obra
diversificada de ensaio, ficção, contos e dois volumes de crónicas, sendo de
destacar: O Enterro do Diabo (1955), A Última Viagem de um Navio Fantasma
(1968), Cem Anos de Solidão (1967), Crónica de uma Morte Anunciada (1981), Amor nos Tempos de Cólera (1984, O General em Seu Labirinto. Era um autor
visionário, activista de causas sociais e políticas, com grande originalidade,
cujos livros vieram uma enorme repercussão na literatura mundial. Contudo, considerá-lo
o maior escritor castelhano a seguir a Miguel Cervantes, como alguns críticos o
fizeram recentemente, parece-nos exagerado. Ele ganhou um prémio Nobel, mas nem
isso é muito significativo, uma vez que alguns dos maiores escritores dos
tempos modernos não foram premiados com ele, e nem por isso deixaram de ser
menos importantes, como Franz Kafka, James Joyce, Marcel Proust, Máximo Gorki, Robert Musil,
e tantos outros, e já sabemos, pelo critério da sua escolha, que eles são
atribuídos mais por razões de ordem política que literária, embora esta última
aqui não esteja ausente. E nem ele quereria tal epíteto, já que era assaz
generoso e tolerante, e uma vez teve a grandeza de dizer: Um homem só tem o direito de olhar o outro de cima para baixo, quando o
está a ajudar a levantar-se.
Gabo, nome por que também era
conhecido, tem influências de Pablo Neruda, sobretudo quanto à maneira de
encarar o mundo, indo pelo diapasão deste poeta quando diz: Os poetas fazem a guerra à guerra, ou A verdade é que não há verdade; de Franz
Kafka, pelo gosto pelo fantástico, pelo surreal; de William Faulkner, como ele próprio
confessou, recorrendo à “corrente de consciência”; de Jorge Luís Borges, com o
seu estilo desordenado, o caldo de culturas a que percorre, o apego aos livros
e às bibliotecas; Jaymes Joyce, com uma narração aparentemente caótica,
recursos à imaginação, à fantasia; de Jaime Cortázar, através da sua componente
de “Realismo Mágico”, corrente que nem sequer foi introduzida na literatura por
este autor, mas pelo venezuelano Arturo Uslar Pietri. Talvez para lhe fazer
justiça há uma personagem no romance que se chama Pietro Crespi.
ROMANCE
Cem Anos de Solidão
1. Sinopse
O romance desenrola-se em Macondo,
uma cidade que vai ser fundada por José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, e
conta a história desta família ao longo de sete gerações. A obra consta de
vinte capítulos, embora o autor não os enumere. Dentro de um estilo em que a
realidade vem mesclada de fantasia, tudo começa quando as coisas ainda não
tinham nome, seguida da chegada dos ciganos com os seus tapetes voadores, e se
desenvolve com a saga dos Arcádios e Aurelianos, que incluí os levantamentos
liberais e as peripécias hediondas próprias da guerra, até à chegada do
comboio, do telefone, do cinema, até à vinda de uma companhia bananeira, terminando
com a extinção da família Buendia. Este livro é mais para ler do que para
resumir.
2. Personagens
mais importantes
Porque as personagens se confundem,
para que o leitor não se sinta perdido ao ler o livro convém que seja desde já
alertado para as principais. Vai encontrar algumas exteriores à família Buendía
como Melquíades, um cigano escrevedor de pergaminhos que prevêem o futuro,
Pilar Ternera, que tem um filho de cada irmão gémeo e mais tarde funda um
bordel. Mais importante é, porém, ter uma ideia das sete gerações que a compõem:
A primeira geração é composta por José
Arcádio Buendia, o patriarca da família, aventureiro audaz, e a sua esposa
Úrsula Iguarán, mulher determinada que vai assistir a toda a saga da sua prole,
durando mais de 115 anos.
A segunda geração é constituída por
um novo José Arcádio Buendía, que tem um filho de Pilar Ternera, fugindo a
seguir com os ciganos; o Coronel Aureliano Buendía, o homem das mil aventuras,
que tem 17 filhos e fez 32 levantamentos liberais; Amaranta, que morre sem ter
casado, depois de um namoro truculento; Rebeca, adoptada pela família.
À terceira geração pertencem: Arcádio,
filho de José Arcádio Buendía e PilarTernera; Aureliano José, filho do Coronel
Aureliano Buendía e Pilar Ternera; e os 17 filhos avulsos do Coronel Aureliano
Buendía, que foram morrendo um a um.
A quarta geração é formada pelos
três filhos do casamento de Santa Sofia de la Piedade com Arcádio, e que são:
Remedios, a Bela, a mulher mais bonita que existiu no mundo; e os gémeos José
Arcádio Segundo e Aureliano Segundo, que a sua avó pensa que nasceram trocados,
porque o Arcádio tem as características dos Aurelianos e Aureliano as dos
Arcádios.
A quinta geração vem do casamento de
Fernanda del Carpio com Aureliano Segundo, e inclui: Amaranta Úrsula, que casa
com o seu sobrinho sem saber; José Arcádio, que foi estudar para padre; e
Renata Remedios (Meme), que mandaram para o convento sem saber que estava
grávida.
A sexta geração, é representada por
Aureliano Babilónia, filho bastardo da relação entre Renata Remedios (Meme) e
Maurício Babilónia, que, dada a situação de bastardo foi confinado a viver
muito em casa.
A sétima geração e última é
representada por Aureliano, filho de Amaranta Úrsula e Aureliano Babilónia, seu
sobrinho. Um caso de consanguinidade. Nasceu com rabo de porco e veio a ser
devorado por formigas, cumprindo as profecias de Melquíades.
3. O
“Realismo Mágico” e o autor
O “Realismo Mágico” é uma corrente
literária surgida no século XX e originária na América Latina, como contraponto
ao “Realismo Fantástico” surgido na Europa. Teve como seu introdutor Arturo
Uslar Pietri, e vários cultores, para além de Gabriel García Márquez, o peruano
Manuel Scorza, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luís Borges, os brasileiros
Murilo Rubião e José J. Veiga, o cubano Alejo Carpentier, o guatemalteco Miguel Angel
Astúrias, o mexicano Carlos Fuentes. e
estendeu-se a muito outros autores, transbordando a América Latina. É também
conhecida pelo “Realismo Maravilhoso”. É própria desta região, e o resultado da
coexistência da inovação tecnológica subitamente surgida com a superstição prevalecente
no seio das populações, em que se procura dar verosimilhança ao insólito, ao
improvável, ao fantástico, tomando-os por reais, como que por magia. Neste
livro podemo-lo identificar nalguns apontamentos mais representativos como:
- Conteúdos atravessados de
componentes insólitas, mágicas ou fantásticas: Como a peste da insónia e
esquecimento que afecta a população, o cigano morto que regressa à vida; aqui
ainda se acredita na história de tapetes voadores trazidos pelos ciganos, ver
gelo ainda constituía uma novidade com laivos de milagre: José Arcádio Buendia recebera com alegria o filho extraviado e
iniciou-o na busca da pedra filosofal que, por fim, empreendera (página 30).
No meio do romance uma mulher sobe aos céus, leia-se: Certa manhã, quando andavam a rodar as rosas Fernando deu um grito de susto e quis tirar Meme do lugar onde se encontrava um jardim, e que era o mesmo onde Remedios, a Bela,
subiu ao Céu (página 221). Repare-se neste exagero: A atmosfera era tão húmida que os peixes podiam ter entrada pelas
portas e saído pelas janelas (página 242).
- Tempo distorcido, cíclico, o
presente é por vezes confundido com o passado: O desenvolvimento
tecnológico é demasiado concentrado no seu aparecimento histórico. Tanto falou da família que as crianças
aprenderam a organizar-lhe visitas imaginárias com seres não só falecidos já há
muito, mas que tinham existido noutras épocas (página 252). Só então Úrsula compreendeu que ele se
encontrava num mundo de trevas mais impenetrável que o do seu avô, tão
intransponível e solitário como o do bisavô (página 258). Veja-se também: Não havia nenhum mistério no coração de um
Buendía que fosse impenetrável para ela (Pilar Ternera), porque um século de naipes e de experiências tinham-lhe ensinado que
a história da família era uma engrenagem
de repetições irreparáveis, uma roda giratória que teria seguido à volta às
voltas até à eternidade, não fosse o desgaste progressivo e irremediável do
eixo (página 303).
- O sobrenatural e a superstição
a contaminar o quotidiano. Os filhos do coronel Aurealiano Buendia foram
convencidos a ir à missa pela sua avó, na hora da comunhão, que aceitaram sem
fé, o padre fez-lhes na testa a cruz de cinza, que não mais saiu, mesmo lavadas
com água e sabão, pedra-pomes e lixívia. Em
contrapartida Amaranta e os demais que foram à missa tiraram-na sem dificuldade
(página 170). Este foi um sinal
que os levou a ser depois exterminados um a um. Voltou a acreditar na superstição juvenil que a pobreza era a condição
do amor (página 268). As donas de
casa esgotavam-se de tanto varrerem pássaros mortos, principalmente à hora da
sesta, e os homens deitavam-nos no rio às carradas… O centenário padre António Isabel afirmou no púlpito que a morte dos
pássaros obedecia à má influência do Judeu Errante, que ele próprio vira na
noite anterior. Descreveu-o como um híbrido de bode cruzado com fêmea herege,
uma besta infernal, cujo hálito calcinava o ar e cuja visita determinaria a
concepção de monstros pelas recém-casadas (página 263).
- Casos inexequíveis ou
improváveis são narrados como verdadeiros, e as personagens encaram-nos como
dentro da normalidade: José Arcádio
dá a volta ao mundo sessenta e cinco vezes (página 195). Meme era selvagem, saia ao pai. O primeiro sinal
desta herança calamitosa revelou-se nas terceiras férias, quando chegou a casa
com quatro freiras e sessenta e quatro companheiras de classe, as quais
convidou para passarem uma semana de férias em família (página 202). Arranjaram
64 bacios, mas onde arranjariam alojamento e mobiliário para 68 pessoas? Falando
de Maurício Babilónia, que era constantemente atraído por borboletas amarelas: …
e havia tantas borboletas que nem se
podia respirar (página 224). Houve um dilúvio … choveu quatro anos, onze meses e dois dias (página 242). Amaranta
Úrsula, no intuito de resgatar a comunidade nas
Ilhas Afortunadas seleccionou os melhores vinte e cinco canários para repovoar
o céu de Macondo. Mas eles foram libertados aos pares e fugiram da aldeia (páginas
290-1).
- As personagens e a acção são
por vezes deformadas, parecendo épicas, tornando a realidade hiperbólica: O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta
e dois levantamentos e perdeu-os todos. Teve dezassete filhos varões de
dezassete mulheres diferentes, que foram exterminados um a um, numa única
noite, antes de o mais velho fazer trinta e cinco anos. Escapou catorze vezes a
atentados, a setenta e três emboscadas e a um pelotão de fuzilamento (página
86). Tentou reconstruir na imaginação o
arrasado esplendor da antiga cidade da companhia bananeira, cuja piscina seca
estava cheia de até aos bordos de sapatos de homem e de mulher apodrecidos, e
em cujas casas desfeitas pela cizânia encontrou um esqueleto de um pastor
alemão ainda preso a uma argola com uma corrente de aço… que os três mil mortos
tinham sido deitados ao mar, que a companhia bananeira se fora embora e Macondo
estava finalmente em paz (páginas 294-5).
- Componente sensorial muito
forte para se compreender a realidade, são mais descritivos na observação das
coisas. Os autores latino-americanos, tendo visto o psicologismo
europeu ter atingido níveis a partir dos quais os romances seriam autênticos
tratados de psicologia, querem voltar-se mais para as coisas que os rodeiam, descrevendo
o que viam, fazendo apelo aos sentidos. Leia-se logo no início do livro: Muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde
remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de
vinte casas de barro e cana, construída nas margens de um rio de águas
transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e
enormes como ovos pré-históricos (página 7). As casas de madeira e caniço dos fundadores tinham sido substituídas
por construções de tijolo com persianas d madeira e pavimentos cimentados, que tornavam
o calor mais suportável às duas da tarde (página 153).
Muita sexualidade desviante, onírica, e
algum erotismo: Mas nem será de
estranhar, dado o meio ser pequeno e ser propício à consanguinidade. José Arcádio casa com a irmã, Rebeca,
ainda que adoptada; Pilar Ternera tem um filho de cada irmão gémeo, José
Arcádio e Aureliano; Amaranta Úrsula casa com Aureliano Babilónia seu sobrinho.
Leiam-se outras passagens: Úrsula continuava virgem, um ano depois de casada, porque o marido era impotente. José Arcádio Buendía foi o último a saber, (página 22). No fim, quando
(Remedios, a Bela) vestiu o balandrau, o
homem não pôde suportar a confirmação de que, com efeito, não vestia mais nada
por baixo, como toda a gente suspeitava, e sentiu-se para sempre marcado com o
ferro em brasa daquele segredo. Tentou espreitá-la na casa de banho, caiu,
rachou o crânio e morreu. O seu perfume inebriou-o até ele se perder, e ela continuava a torturar os homens para além da
morte, até ao pó dos seus ossos (página 182). Fernanda del Carpio casa-se
com Aureliano Segundo, todavia, ele continua a viver com a amante: Fernanda acreditava, de facto, que o marido
estava à esperava que clareasse para voltar para casa da concubina (página
244).
4. Algumas
reflexões sobre o romance
Este livro tem laivos de ser a Bíblia de um qualquer povo da América Latina,
é uma longa narrativa incidindo sobre as suas crenças e superstições, sobre as
guerras que travaram, sobre uma família e sobre uma cidade, na sua luta permanente
pela sobrevivência. O autor fala de cem anos, mas podiam ser cem milhões: um
rio imenso e caudaloso de vidas que vai desaguar aparentemente ao Nada. Há
mesmo quem sobre a cidade escreva pergaminhos, qual Antigo Testamento que se
materialize. O Adão será o José Arcádio Buendia, e a Eva, a Úrsula Iguarán,
Jerusalém a cidade de Macondo, que ele funda, quando as coisas ainda não tinham
nome, portanto, no princípio do mundo. Também empreendem uma caminhada de vinte
e seis meses pela floresta, meio perdidos, um pouco como o êxodo dos judeus do
Egipto. Toda a história é narrada numa atmosfera mágica de milagres, de crenças
e superstições. Também aqui existem sábios e profetas como Mélquíades que
prevêem a extinção da família; videntes como Pilar Ternera que prevêem o futuro.
A cidade esteve quase sempre ameaçada pela extinção e muito tempo em guerras
intestinas, O coronel Aureliano Buendia era pela liberdade do seu povo,
envolvendo-se em dezenas de revoltas, qual Moisés lutando pela liberdade do seu
povo. Também houve um dilúvio de dimensões bíblicas, quando a cidade esteve
sujeita a 4 anos, 11 meses e 2 dias de chuva, sob a acção inclemente de furações,
de tempestades calamitosas; e também houve uma virgem, Remédios, a Bela, a
mulher mais bela que existiu no mundo, que por maravilhoso poder um dia
ascendeu aos céus.
Mas nem tudo é agradável neste
livro, pelo menos enquanto não nos damos conta do que estamos a ler. As
histórias estão desfasadas umas nas outras, no espaço e no tempo, nem sempre
acreditamos nos que estamos a ler, pondo-nos a imaginar para onde o autor nos
estará a conduzir. Porém, a narrativa é tão dinâmica que nos deixamos levar
pela corrente de consciência que a transporta, pondo-nos a ler
vertiginosamente, como à procura de desaguar num mar onde tudo se esclareça.
Depois, os nomes das personagens como que nos parecem querer confundir, aquilo
são tudo Arcádios e Aurelianos, embora os primeiros sejam mais extrovertidos e
dinâmicos e os segundos mais voltados para si mesmos e para os livros, para o
estudo, são todos muito iguais. Para o autor o mundo será mesmo assim,
circular, cada vida é um ciclo, a história uma repetição de eventos: a água
revoluteia entre o mar e a terra, a Terra anda à volta do Sol, o Sol à volta da
Via láctea. Nasce-se, vive-se e morre-se dentro de um processo repetitivo e
circular. Contudo, não se pode negar que de início há dificuldade em nos
situarmos na narrativa. A realidade e o próprio tempo ao serem distorcidos, e a
vida efabulada das personagens, como que nos obrigam a um esforço suplementar para
sabermos onde estará a verdade, o que é que o autor nos quererá dizer, facto porém,
que sendo desagradável numa primeira leitura, será enriquecedor numa
apreciação final. Os irmãos gémeos Aureliano Segundo e José Arcádio Segundo,
esses são mesmo dos que nos dão cabo da paciência, e até dos seus coevos, que à
força de os confundir em vida, os confundem na morte. A avó Úrsula pensa que
eles nasceram trocados, porque um trazia a idiossincrasia do outro, e na morte,
quando lhes fazem o enterro trocam-nos nos caixões, um vai parar à sepultura do
outro, como para fazer justiça à avó, ou então para que esta confusão em vida
se estenda à eternidade.
O livro toma, pois, a forma de uma
história imaginária, em que a realidade de mais comezinha se torna aqui e ali
efabulada, fantástica, perdida num tempo distorcido, com o passado a perverter
o futuro e a deturpar o presente. Os diferentes tipos de realidade política,
económica, social, religiosa, tomam formas exageradas para se cobrirem de
maravilhoso e nos apelarem à imaginação. Convém o leitor estar precavido que
vai ler um romance da escola do “Realismo Mágico” para que tente compreender o
mundo para além da monotonia do seu dia-a-dia. O livro, numa primeira abordagem
parece querer aproveitar a ingenuidade do leitor para voltar às histórias da
carochinha, mas pretende dizer muito mais, as personagens, às vezes mesmo
tolas, errantes no meio das suas ilusões e devaneios, pelos quais se batem até
à morte, em vez de saborearem a vida na sua simplicidade e singeleza, parecem
alertar-nos para esta anomalia. A vida em vez de ser desfrutada é devorada
violentamente, e tudo para nada, como um novelo que uma vez desenovelado não
passa de um fio apenas, sem mais curvas ou envolvimentos, sem dar a ninguém a
noção daquilo que realmente fora, tal como aquela família Buendia, que depois de
mais de uma centena de anos de luta árdua pela sobrevivência vai perdendo
energias em lutas nefandas e aspirações vazias de sentido, numa solidão
acompanhada de ninguém até à sua extinção. Todo aquele deserto de vidas não foi
mais que cem anos de solidão. E isto que se aplica a esta cidade de Macondo
poder-se-á generalizar à espécie humana.
Não há muito a dizer sobre a linguagem,
que é directa, escorreita, sem grandes artificialismos, o que distingue este
livro é sobretudo o seu aspecto formal, que é inovador. No meio da monotonia em
que estava a cair a literatura e o realismo nos inícios do século XX, este
romance como que parte à descoberta de novos horizontes para a narrativa, levando-nos
para um novo encantamento. Com mais esta obra, Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez ia apurar o "Realismo Mágico", erguendo-a a um pedestal que o ia impor à literatura universal. As sociedades do Novo Mundo, sem epopeias em que se
baseie a sua história, sem grande mitologia, querem cobrir-se do mistério que
está subjacente ao Mundo Antigo. O autor, fazendo uma amálgama dos seus elementos
físicos, psicológicos e sociais no seu sentido mais amplo, dilui-os de
fantasia, de sobrenatural, de algo mágico. Com isto pretenderá chocar o leitor latino-americano,
despertando-o para uma realidade mais complexa e encantatória do que aquela de
que vem sendo feita a sua História. A realidade pode ter muito mais de imaginação
do que de lógica. As suas personagens, providas de qualidades com tanto de
celeste como de humano, são supersticiosos, cheias de preconceitos, movidas
pelo sonho são capazes do melhor e do pior, evidenciando-se perante nós como o
resultado dos seus genes, com uma estrutura moldada na infância, como o produto
da sociedade em que vivem. A sua ingenuidade mesclada de inocência inspira-nos
piedade, convida-nos à tolerância. Temos de as analisar com profundidade para
as olharmos com condescendência. A América Latina ufana-se e revê-se muito
neste romance, uma obra extremamente original que atraiu para aquela vasta
região os olhos do mundo, de facto, fantástica.
5/2/2016
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