DINO BUZZATI







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DINO BUZZATI
O Deserto dos Tártaros
Tradução de Nuno Camarneiro
Marcador Editora da Editorial Presença (2014)



O HOMEM
            Dino Buzzati Traverso nasceu em 16 de outubro de 1916, perto de Belluno, uma pequena cidade nos Alpes, um pouco acima de Veneza, terra dos papas Gregório XVI e João Paulo I. Foi um jornalista, ensaísta, editor e crítico de arte italiano. Desde cedo manifestou o seu interesse pela escrita, pelo desenho, pelo piano e violino. Era um sonhador, gostava de vaguear pelas montanhas. A sua mãe era veterinária e o pai professor universitário, tem bem a quem sair. Em 1924 matriculou-se na faculdade de direito, onde o pai ensinava, e estava a terminar o curso, quando entrou como jornalista para o Corriere della Sera de Milão, ao qual ficou ligado até à morte. Durante a Segunda Guerra Mundial serviu como jornalista da marinha italiana em África. Considerava-se mais jornalista que escritor. Morreu em 28 de janeiro de 1972, aos 55 anos, vítima de doença de câncer.


A OBRA
            A obra de Buzzati é multifacetada e original. Ele considerava-se sobretudo jornalista, era assim que queria ser reconhecido. De facto, deve quase tudo ao jornalismo. Mas para além de jornalista era romancista, poeta, crítico literário, escrevia contos, livros para crianças, peças para a rádio. A sua obra literária está cravejada de ideias existencialistas. Além disso, ele coloria a realidade com uma sombra inebriante de fantasia a que chamaram Realismo Mágico, que veio a influenciar muitos escritores. Destacam-se aqui algumas obras que pode ler em Português:
Barnabo das Montanhas (1933)
O Segredo do Bosque Velho (1935)
O Deserto dos Tártaros (1940)
A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília (1945)
O Grande Retrato (1958).


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O ROMANCE O Deserto dos Tártaros

            PRINCIPAIS PERSONAGENS
            Giovanni Drogo: tenente nomeado para a Fortaleza Bastiani, onde vai tentar fazer carreira depois de ter concluído o curso da academia militar. É um tanto tíbio, demasiado apegado às rotinas, pelas quais se deixa capturar, com tendência para imaginar coisas, mas que procura ser justo e cumpridor, com ambições e coragem para enfrentar o destino. Sai de lá com o posto de major.
Capitão Ortiz, depois major e tenente-coronel: pessoa inicialmente distante e lacónica, muito agarrado aos regulamentos, que depois se abre mais a Drogo sobre os mistérios do forte, e a quem aconselha a ir dali embora enquanto pode.
            Major Matti: homem gorducho e bonomioso, muito ligado à fortaleza.
Tenente Francisco Grotta: amigo de Drogo
            Tenente Carlos Morel: amigo de Drogo
            Tenente Max Magorio: amigo de quem Drogo se vai despedir quando ele vai embora
            Tenente Maderna: amigo de Drogo
           Tenente Pietro Angustina: jovem de fartos bigodes, paciente e determinado, que acabou por morrer no cimo de um monte.
Tenente Simeoni: amigo de Drogo, comandante do forte já na última fase no posto de tenente-coronel. Pessoa humana, mas responsável, que tem de dar a ordem amarga ao seu amigo, gravemente doente, para se ir embora. 
 Coronel Filimore: o comandante do forte, pessoa autoritária e distante, a quem ninguém quer incomodar, com as suas manias.
  Sargento Prosdocimo: pessoa muito formal, legalista, já tomado por aquela vida sem sentido.
            1º Sargento Tronk: pessoa paciente e minuciosa, destemida, especialista em regulamentos militares, que se atreve a dar opiniões sobre o serviço, quando as coisas lhe parecem erradas. Tem várias conversas com Drogo.
            Francisco Rovina: médico do regimento, pessoa compreensiva, que tratava do corpo e da mente dos seus pacientes.
Francisco Vescovi: amigo de infância de Drogo, irmão de Maria.


            RESUMO DO LIVRO
Giovanni Drogo, recém-promovido a tenente é destacado para servir por dois anos na Fortaleza Bastiani, um bastião no Deserto, dito dos Tártaros. Despede-se da mãe. O seu amigo Vescovi ensina-lhe uma parte do caminho. Mas à frente, já sozinho, pergunta a um carreteiro onde fica a fortaleza, mas ele não conhece por ali fortaleza nenhuma. Claro que ele ainda está muito longe dela.
O vale tinha estreitado a ideia da fortaleza. Na madrugada seguinte seguiu a marcha e viu do outro lado do desfiladeiro alguém, a quem fez sinal. Este pareceu não lhe ligar, e só mais perto viu que se tratava do capitão Ortiz. Só então se cumprimentaram formalmente. Era uma pessoa distante e lacónica. Também ia para a fortaleza e segue com ele. Quando lá chegou, a fortaleza parece-lhe um edifício ridículo, até o cavalo dele relinchou a rir-se dela. O rosto do Drogo iluminou-se de repente ao deparar-se com o Deserto dos Tártaros, que era uma espécie de ausência do mundo.
Assim que chegou à fortaleza, Drogo apresentou-se ao major Matti, oficial-adjunto do comando, gorducho e bonomioso. Considera que foi para ali nomeado por engano e quer pedir a sua transferência. O major Matti acha forçado fazer já um pedido para sair dali. Ele podia esperar uns quatro meses, quando os militares fossem todos observados por um médico, para este fazer um relatório com o que facilitaria as coisas. Pedir agora um relatório médico desgostaria o coronel. Drogo acaba por aceitar a sugestão. Mostra curiosidade ir ver o Norte, mas logo é dissuadido, aquilo não tinha nada que ver, era uma coisa estúpida. Encontra-se a seguir com os seus camaradas: os tenentes Grotta e Morel. 
            Foi até bem recebido na messe de oficiais, até lhe abriram uma garrafa em sua honra, mas era tudo muito formal, desprovido de afetividade. Foi para a cama e da sua janela, em forma de triângulo, viu um céu de estrelas desterradas no infinito. Havia um barulho incomodativo ao lado. Não conseguia dormir. Chamou uma sentinela mais próxima, esta disse que era da cisterna, que não havia nada a fazer, já o capitão Gonzalazo se queixara do mesmo. Lá adormeceu a custo.
            Duas noites depois, Drogo vai assistir à formatura dos sete corpos da guarda. Ele ia pertencer a 2ª companhia, comandada pelo capitão Ortiz. Estava ali o 2º comandante, tenente-coronel Nicolosi. Estão ali também o 1ª sargento Tronk, especialista em regulamentos, e o 1º sargento Gregório. O 1º sargento Tronk critica educadamente o sistemas de santos e senhas ali utilizado, preconizando que as forças deviam partir mais cedo, já que as senhas só tinham validade durante 24 horas, e chegando mais tarde, já não eram válidas, levando ao problema de se criar uma terceira senha, que era motivo para confusões. Os soldados mesmo conhecendo-se só devem permitir a entrada depois de respondida a senha. Era um preciosismo.
            Drogo vai para o quarto escrever para a mãe, mas não sabe bem o que lhe há de dizer, lembrou-se daquela fortaleza estúpida e nem lhe quis falar dela. Bem, não lhe pode contar toda a verdade. Lá lhe arranjou uma redação estúpida. Há uma toada inacreditável de sons vinda do deserto, triste, monótona, enfadonha. Destaca-se de tempos a tempos o chamamento das sentinelas, dando os seus gritos de alerta. Não há ali nada para contar, nada para dizer, nem uma árvore, nem uma erva do chão, e desde os tempos imemoriais.
            Recebe uma capa extraordinária, que achou tão boa que era um desperdício usá-la ali, e foi ao alfaiate do regimento pedir para lhe fazer uma mais modesta. O alfaiate, um sargento de nome Prosdocimo, disse que ela era boa, mas não regulamentar, e, sendo chamado ao sargento de armazém, pediu para esperar por ele uns momentos. Enquanto isso, ele ficou ali a falar com os seus três ajudantes. Eles mostraram-se apavorados com os tártaros que vagueavam pelo Norte, e estavam sempre à espera do pior. O tenente Drogo vê que o pessoal está ali todo contaminado por aquela solidão do deserto, mas ele ainda não.
            Drogo confraterniza com os tenentes, Carlos Morel, Pietro Angustina, Francisco Grotta. Estão a festejar a partida de Max Lagorio. Era um momento por que muitos ansiavam. Há uma conversa mais amigável entre Angustina e Lagorio. Este está ali com dois cavalos e o seu impedido, prontos para partir. Quando se afastam nem olham para trás, como se dali não houvesse nada de bom para recordar.
            A fortaleza parecia-lhe agora muito maior do que tinha imaginado à primeira vista. Ao outro dia foi falar com o médico ao seu gabinete. Chamava-se Francisco Rovina  e recebeu-o amavelmente. Ele parecia já estar a par do caso dele para lhe passar um atestado. Falaram daquela doença metafórica que todos ali tinham. Ir-se dali embora já, era um sinal de fraqueza. Drogo começou a pensar na cidade, dos rostos cansados das pessoas, da agitação das ruas, e pediu para ele deitar o papel fora.
            Lentamente, Drogo começa a sentir-se ligado à fortaleza, à placidez das muralhas, às amizades que ali criara, à rotinas, que como o tinha aprisionado naquele tempo insípido. Havia um certo encanto no esplendor do meio dia, na nobreza da noite, as folgas, nos jogos, nas conversas rotineiras que travavam. Naquele ermo havia uma tranquilidade que quase o fazia feliz, vivia-se uma paz absurda, como se se andasse fugido do tempo.
            Entretanto, passaram-se 22 meses, para Drogo, que estivera ali quase parado, parecera pouco tempo, e, contudo, eram quase dois anos, dava para nascerem crianças e começarem a falar. O tempo desgastava a fortaleza, desgastava-lhe as pedras, esbatia-lhe as pinturas, mas parecia não passar por si. Uma noite sonhou ver ali fantasmas, que imaginou infestar ali os montes, e tentou encontrar-se com o tenente Angustina para falar do assunto, mas este atendeu-o com ar de enfado e descrença.
            Finalmente o tenente Drogo vai comandar o Reduto Novo, a três quartos de hora de caminho da fortaleza, ainda a pensar no sonho que tivera, e de Angustina. Lá no fortim veem uma pedra negra a esvoaçar ao longe, não sabem o que é. O tenente Drogo não se decide a ir lá ver o que era, e Tronk também não o encorajou a mandar ninguém. Ficou naquela hesitação. Alguém sugeriu que era um cavalo. O soldado Giuseppe Lazzarini saiu à noite do fortim e foi buscar o cavalo. Ainda demorou, e quando chega não tem a senha para entrar. A sentinela, o soldado Moreno, que até era seu amigo, pergunta-lhe a senha e ele não a sabe, insiste e ele responde: «Sou eu, o Lazzarini, não me conheces?». Ele aproximou-se mais, ele era ali a sentinela, e disparou. Foram ver e estava morto. Eles só viam os regulamentos.
            Com a morte do soldado, aquela noite despertou do seu torpor, fazendo sobressair a ameaça dos tártaros. Vem ali o major Matti tratar do caso. Dá ordem ao tenente Metana para ir buscar o morto, mas ele está lívido com o acontecimento, e vai lá o sargento Tronk. Levam uma padiola para trazer o Lazzarini, jazente uns metros adiante. Foi Giovanni Martelli que o matou, mais conhecido por Moreno. Para o major, Lazzarini cumpriu o seu dever, até merecia ser louvado. Na pequena tarimba do morto estão as suas coisas, que o coronel vai mandar para casa. Ele vai ser enterrado com a farda de gala e a sua espingarda ali no forte.
            No Reduto Novo está agora o tenente Maderna a comandar, trajando de negro. São avistadas no Norte forças inimigas. Bem, no meio daquela pasmaceira, era bom demais para ser verdade, devia ser uma alucinação. Mas as forças estavam mesmo lá, e isto inquieta o tenente-coronel Nicolosi e o comandante, coronel Filimore. Pouco depois chega o tenente Fernandez dos dragões com uma mensagem do chefe do estado-maior. Afinal é o Estado do Norte que está ali com uma equipa de militares para se redefinir um torço da fronteira. Que desilusão! O comandante aproveitou para falar da falta de pontualidade dos oficiais às formaturas.
            Vai sair uma delegação militar para se juntar aos do Norte e se redefinirem as fronteiras. Seguem o capitão Monti, o tenente Angustina e um sargento. Têm de chegar primeiro do que o inimigo a um monte, que ainda fica longe. O capitão Monti acha que o tenente Angustina não vai com as botas mais indicadas para aquele itinerário, diz para ele ficar para trás, mas ele contraria-o e segue com ele. Chegam lá acima e os do Norte já lá estão a jogar às cartas. O cume está ali perto, mas ainda é difícil de alcançar. Vem a noite, está frio, o tenente Angustina força a subida e consegue chegar ao cume, é o primeiro. Os outros ficam cá em baixo, uns ao lado dos outros, resguardados com os seus sobretudos. A noite custa a passar, e de manhã quando chegam lá acima o tenente está morto.
            Não se dá muita ênfase a esta morte. Fez-se o sepultamento do tenente Angustina na fortaleza. Ele ficou cá fora enterrado debaixo de um coberto com uma cruz de pedra a assinalá-lo. Jaz ao lado do soldado Lazzarini, com uma cruz mais pequena. O major Ortiz em conversa com Drogo acha que Angustina soube morrer no sítio certo e na hora oportuna, afinal no cimo de um monte a afirmar a soberania do seu país. Aconselha Drogo, que já está ali há quatro anos, a ir-se embora, antes que fique ali prisioneiro para sempre. Mas ele, voltado para o Norte, pareceu não valorizar os seus conselhos.
            À volta da Fortaleza Bastiani a neve derrete-se, fica a lama e tudo continua na mesma, desde as camaratas dos soldados ao gabinete do comandante com os seus móveis de nogueira maciça. É tudo velho e melancólico como sempre. Giovanni Drogo já tinha tempo de comissão, e resolve então regressar à cidade. Adeus major Ortiz, essa fortaleza é um cárcere. Sim, ia regressar à cidade enquanto era tempo. Esporeia o seu cavalo e nem olha para trás, não sente qualquer nostalgia pela fortaleza. Uma nuvem fugia sobrevoa o local.
            Giovanni Drogo regressa finalmente a casa e é recebido com alegria pela mãe. Vai para o quarto e ele está na mesma, nem nos livros lhe tocaram, embora o quarto já lhe parece de outro. Começa a sair para se reencontrar com os amigos e amigas, mas sente-se um estranho na sua própria terra. Os próprios familiares, incluindo a mãe, já não olham para ele da mesma maneira. Ele sente-se ali um estranho, e os próprios lugares que em tempos frequentou parecem rejeitá-lo.
            Drogo faz uma visita a Maria, à irmã do seu amigo Vescovi. Eles ainda gostavam um do outro, falam cordialmente, mas separa-os um distanciamento incómodo, como se já estivessem descomprometidos. Ela disse que tinha de fazer um passeio à Holanda com uns seus familiares, e ele sentiu-se aliviado. Drogo disse que estava ali de licença por dois meses, e ainda não sabia para onde iria a seguir. Ela ainda o sentiu mais longe, mais despegado dela. Despediram-se com exagerada cordialidade, guardando para si os seus pensamentos secretos.
            Quatro anos de fortaleza davam para ele pedir a transferência. A mãe tentou influências para o transferirem para ali perto. A Drogo é dito para ir falar com um general do estado-maior, e até parecia que fora ele que o tinha ali chamado. O general fala-lhe da morte de Angustina, que desagradou imenso ao rei. Manda que lhe tragam o seu processo para o analisar. Dá-lhe uma vista de olhos e fala-lhe daquele soldado do seu pelotão morto por engano por uma sentinela. Aquilo não abonava muito em seu favor. Talvez não pudesse satisfazer a sua pretensão.
            Drogo está de volta à Fortaleza Bastiani, mas já não tem por ela o mesmo interesse que tinha antigamente. Na fortaleza quase todos tinham pedido a transferência, embora não lhe tivesse dito nada. Ele tem com o major Ortiz uma conversa mais séria, em que falam sobre a fortaleza, que era uma construção a desarticular-se em ruínas. Ele mentira quando dissera que vieram para ali todos a pedido. Aquela era uma fortaleza que tinha vindo a perder importância. Aconselhou-o a ir dali embora enquanto era tempo.
            Uma companhia acabou o seu tempo na fortaleza, e o tenente-coronel Nicolosi passa-lhe revista, O tenente Simeoni está de chegada e traz para ali uma luneta, com a qual se pode ver melhor ao longe. Começa a pesquisa frenética de ver os tártaros ao Norte, onde estão a construir uma estrada, que chegara ali dentro de seis meses. Mas isto não perturba o estado-maior, que manda reduzir até os efetivos da fortaleza. Drogo começa a pensar na sua carreira, e o mesmo fazem o major Ortiz e o tenente Maderna. O major Ortiz pensava sair dali com o posto de coronel. No Norte tudo se esvaziava por aquela altura do ano. 
            O inverno desce sobre a Fortaleza Bastiani. Instala-se por ali um marasmo terrível, o tempo fica obtuso. Surgem por ali falsos alarmes, o que afeta o moral do pessoal, ficam todos macambúzios. Para evitar desassossegar o pessoal foram proibidas as lunetas na fortaleza. Drogo e Simeoni conferenciam sobre o motivo daquela proibição e da pertinência do Norte atacar, e acabaram por se indisporem um contra o outro. Drogo insinuou a certa altura que Simeoni tinha medo dos tártaros, e ele levou a mal.
            A estação mudou. O tempo na fortaleza está agora a correr mais depressa, embora lá dentro não se passe nada. O tenente Drogo, para sair aquela monotonia passa a ir aos altos da fortaleza olhar para o Norte à espera de detetar qualquer movimentação suspeita. A partir de determinada altura começou a avistar-se ao longe uma luzinha, que passou a aumentar de tamanho. Ninguém sabia explicar o que fosse aquilo, e na ideia de alguns passou-lhes pela cabeça que estariam na iminência da guerra.  
            Por fim deu para perceber que estavam a abrir para ali uma estrada, mas isto não atemorizou o estado-maior, que mandou até reduzir os efetivos da fortaleza e fechar o Reduto Novo. O tenente-coronel Nicolosi, Matti, bem como o major Monti passam à reforma. Drogo foi, entretanto, promovido a capitão. Tem quarenta anos. Uma vez sai de cavalo e ao longe dá com alguém a chamar por si, é um novo oficial, o tenente Morel. E isto deixa-o incomodado, parece que está a reviver uma mesma história.
            A Norte a estrada foi concluída e os estrangeiros afastaram-se. Na fortaleza era a mesma rotina de sempre, desde os procedimentos das sentinelas ao rancho, que era sempre o mesmo. O tenente-coronel Ortiz teve de passar à reforma e passou o comando ao novo comandante. É escoltado na partida por um tenente e dois soldados. O capitão Drogo acompanha-o durante algum tempo e falam de como tudo aquilo podia ser diferente se tivesse havido guerra. Talvez ela havendo, se distinguissem e enobrecessem.
            Drogo é agora major. Tem 54 anos, é o 2º comandante da Fortaleza Bastiani, e o Tenente-coronel Simeoni o comandante. Com a perda de importância da fortaleza, esta deixou de ter comando de coronel. Drogo sente-se mal de saúde, mas não quer pedir para ir de licença, pois tem medo de que, ao ir-se embora já não volte. Continua a trabalhar com muito sacrifício. Assina o despacho no quarto. Vem ali o alfaiate Prosdocimo dizer-lhe que estão a fazer preparativos no Norte para os atacar. Ele, embora enfraquecido, chama o impedido Luca e vai ao cimo da fortaleza ver o que se passa. Estão para chegar dois regimentos em reforço. Ele esforça-se um pouco mais para ver e caiu desmaiado.
Um dia e meio depois veio ao seu quarto o tenente-coronel Simeoni comunicar-lhe que está a chegar uma carruagem para o levar embora, ele precisa de ser tratado. Há uma conversa entre os dois, Drogo diz que está bom, que o médico Rovina o dissera, ao que o comandante responde que fora o próprio médico que pedira uma carruagem para o levar. Ele não estava à espera daquele momento, e recusa-se a ir embora, o amigo comandante diz-lhe então que aquilo era uma ordem. Ele tem mesmo que ir, tem três oficiais para ocupar o quarto dele. Na fortaleza estão todos preparados para a guerra e lá fora está uma carruagem à espera dele para o levar dali para fora, ninguém se importa mais com ele. Era como se fosse um leproso.
Por fim o major Giovanni Drogo toma a carruagem. Ele é de facto luxuosa, mas aquele luxo é inútil, parece rir-se da sua miséria. Aparece por ali o tenente Moro e pouco mais gente a despedir-se dele. Lá segue por fim para baixo na carruagem até uma estalagem, onde estava parado um batalhão de mosqueteiros, prontos para seguirem para a guerra. Agora que iria haver, porventura uma grande batalha na fortaleza, mandavam-no para casa. E quem estaria agora ali à sua espera? Já não tinha ali amigos. Ele estava sozinho no mundo. Vistas bem as coisas ninguém o amava.
Está na estalagem naquele fim de tarde, para a maioria dos homens um momento para desfrutar da vida. Sente que uma sombra avança para si, como se a morte estivesse para chegar. Fora expulso da fortaleza, estava sozinho no mundo. Imagina como é triste morrer numa enfermaria ferido, mas como era ainda mais triste morrer numa estalagem sozinho, sem ninguém no mundo. Lembrou-se então de Angustina, morto no cimo de um monte, com uma imagem ainda jovem. Encheu-se então de coragem, a que era necessária para enfrentar a morte ali sozinho. Olhou pela janela e viu nos céus uma pequena porção de estrelas e sorriu.

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Do filme O Deserto dos Tártaros (1976) de Valerio Zurlini


            UMA APRECIAÇÃO GERAL

            Nós já estudamos dezenas de quartéis, fortalezas e fortes por esse mundo fora, desde o sertão do Brasil, às costas e pradaria de África, onde possuímos dezenas, sobretudo quartéis, que ocupávamos nas nossas comissões de dois anos. E desde Angola a Moçambique, desde a Arábia à Etiópia, da Índia à China, e mesmo em Timor, na Oceânia. De citar a do Príncipe da Beira no Brasil, de Almeida no Norte de Portugal, de Mazagão em Marrocos, de Mascate na Arábia, de Diu na Índia. Em quase todas vimos um pouco do Forte Bastiani, mas só muito raramente aquela necessidade de se querer confrontar com o inimigo. Normalmente os militares apreciavam a paz e estavam ansiosos que as comissões acabassem para regressar às suas terras e voltar para as suas famílias. Dino Buzzati faz aqui uma narrativa pesada, mas com algo de inebriante, fantástica, surreal, nublando a realidade de sonho, daí dizerem que ela se insere no Realismo Mágico.

            Pela biografia do autor percebe-se que este romance foi inspirado pela sua participação na Segunda Guerra Mundial como jornalista, ao serviço da marinha italiana, onde se deve ter deparado com situações deste género na Líbia. Giovanni Drogo vai oferecer-se para uma guerra estúpida, que talvez nunca vá acontecer. E quando se vislumbra alguma ação bélica, era então major e 2º comandante da fortaleza, é-lhe retirado o comando. Como ele, outros de deixaram por ali ficar, obcecados pelo fascínio da guerra, por poderem cobrir-se de glória e ascender na carreira, numa expectativa de dezenas de anos. Como em À Espera de Godot de Samuel Beckett. Ele acaba por levar uma vida de asceta increu, longe de tudo e de todos, acabando por morrer sozinho, sem uma única pessoa por quem pudesse ser amado, em que até as estrelas do céu, tremelicantes, se riram dele.

            Giovanni Drogo inicialmente rejeita aquele deserto desprovido de vida, onde não existe uma única árvore nem nasce uma erva desde tempos imemoriais. Mas lentamente, embora aquela fortaleza lhe pareça inútil, a cair aos bocados, deixa-se aprisionar por ela, não sabendo já como fugir-lhe. No meio daquela solidão avassaladora há uma infinita esperança à espera do Nada. Os monges e as freiras nos conventos, com outras motivações também se sentem atraídos por aquela solidão, aquele horror à cidade, às multidões, cultivando uma paz quase infinita, mas têm o céu como paga. A leitura do livro leva-nos a pensar no sentido enigmático da vida, de como tudo se desvanece, desde o mais grandioso ao mais pequeno feito, mergulhando, ainda que lentamente, no esquecimento. A vida será uma miragem que nos distrai por uns momentos.
           
O Deserto dos Tártaros é um livro em que a realidade se deixa inebriar de um nevoeiro onírico com um ligeiro toque de fantasia, quase uma alegoria que dá para ver como o ser humano se deixa encandear pela ilusão, caindo no absurdo de confundir o sonho com a realidade. Mesmo frustrado, resigna-se perante a desgraça, alimentando-se de esperança, perdido no pouco sentido que a vida tem. Como é que as pessoas com ideias pouco aprofundadas se deixam aprisionar por ficções? É admirável ver como elas andam por ali perdidas no tempo que as conduzirá ao Nada! O livro também exprime a filosofia de que as rotinas adormecem o pensamento, fazendo-o renunciar a tudo por uma simples ideia. Já André Malraux em A Condição Humana nos tinha explicado este conceito. Bem, ainda há monges nos tempos modernos, fugidos ao rebuliço das cidades, à sofreguidão do ser e do ter, inatingíveis pelo tempo! Este romance de Dino Buzzati, com um cheirinho de Franz Kafka, irá influenciar Jean-Paul-Sartre e Albert Camus, e quase toda a literatura fantástica do século XX, que teve um apogeu na América Latina. Um excelente livro.


 23/02/2019 
Martz Inura


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