HERMANN HESSE








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HERMANN HESSE
O Lobo das Estepes
Tradução de Sara Seruya
Edições Afrontamento (1982)

O HOMEM
            Hermann Karl Hesse nasceu em 2 de Julho de 1877 em Calw, cidadezinha próxima de Estugarda, na Alemanha. Nascido no seio de uma família protestante com passado missionário na Índia, desde menino manifestou possuir uma inteligência inquieta e uma personalidade forte e orgulhosa, difícil de moldar, rebelde. Em 1891 os pais enviam-no para um seminário protestante. Parecia que estava a aceitar a carreira que os pais lhe escolheram, mas um anos depois foge do seminário, sendo encontrado num campo, abandonado a si mesmo. O tratamento severo com que era tratado, com laivos de violência, hoje seria proibido. Entra em depressão e surge nele uma primeira tentativa de suicídio. É internado em instituições psiquiátricas, recupera, e em 1893 conclui a sua escolaridade. Com estes desaires ainda toma contacto com um discípulo de Carl Jung. Do avô materno veio-lhe a tendência para a leitura e da mãe o amor à música. Puseram-no a trabalhar numa livraria, mas ele desistiu ao fim de três dias. Mandaram-no então para mecânico de relógios de torre, mas ele, concluído um estágio, voltou aos livros. Começou a escrever. Quando chegou a altura foi dispensado do serviço militar por ter uma deficiência visual, embora também já lhe tivessem diagnosticadas perturbações mentais. Em 1898 obteve o apoio do editor Eugen Diederichs. Em 1901 parte para a Índia, onde se aprofunda na cultura hindu. A mãe morreu em 1902, e ele teve de ser manter afastado para não piorar a sua depressão. Em 1904, com a impressão do seu romance Peter Camenzind passou a ser conhecido na Alemanha. Com algum prestígio e autonomia económica, em 1904 casou com Maria Bernoulli (da família dos matemáticos). Mas as suas relações com ela são difíceis, a crise familiar em que mergulhou estende-se à produção literária. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial ofereceu-se para dar a sua colaboração ao seu país, não queria parecer um inútil, e foi trabalhar em Berna num campo de prisioneiros alemães. Acabada a guerra e retornado à vida civil veio encontrar a sua esposa gravemente doente, que piorou, ao ponto de ter de ser internada. O seu casamento colapsou. Estavam então a viver em Berna, com a disputa que se seguiu a sua casa foi vendida e os seus três filhos entregues a instituições ou ido para casa de parentes: terrível. Retirou-se então para Montagnola, perto de Lucarno, na Suíça, onde alugou um quarto e começou a pintar. Em 1923 adquiriu a cidadania suíça, e em 1924 casou com a cantora Ruth Wenger, muito mais jovem. Esta relação não iria perdurar. Divorcia-se e casa-se com Ninon Dolbin em 1931, que o acompanhou até à morte. Continuou a escrever intensamente. Veio a Segunda Guerra Mundial, e ainda andou envolvido no apoio a escritores alemães refugiados como Thomas Mann e Bertholt Brecht. Ele era contra esta guerra, contra a qual nos tinha prevenido, e era contra os anti-semitas, não fosse a sua terceira esposa judia. Em 1946 foi distinguido com o com o Prémio Nobel da Literatura. Continuou a escrever, mantendo uma intensa troca de correspondência com os seus amigos, que chegou a atingir a média diária de 150 páginas. Em 9 de Agosto e 1962, aos 85 anos, morria em Montagnola, onde foi sepultado.

A OBRA,
            A obra de Hermann Hesse é vasta, e constituída por mais quarenta originais, distribuídos pela poesia, ensaio, romance, por autobiografias, contos, muitas cartas e até pintura, incidindo sobretudo em temas como o ser humano na sua idiossincrasia, na sua pluralidade e alienação, bem como a crítica ao militarismo e ao revanchismo, e sobre a filosofia hindu. Citemos as mais importantes:
            - 1898 Canções Românticas (a primeira produção publicada)
            - 1903 Peter Camenzind (romance que o tornou conhecido)
            - 1917 Demian (romance)
            - 1922 Sidarta (romance)
            - 1927 O Lobo das Estepes (romance)
            - 1930 Narciso e Goldmund (romance)
            - 1943 O Jogo da Cartas de Vidro (romance).

O ROMANCE O Lobo das Estepes

            PRINCIPAIS PERSONAGENS
            Harry Haller, chamado o Lobo das Estepes, é um indivíduo de quarenta e sete anos, misantropo e melancólico, anti-burguês e contra as guerras, com ideias suicidas, que tenta encontrar um sentido para a vida.
            Hermínia, é uma mulher muito bela e inteligente, que vivia do que ganhava em bares, que, ao ver Harry meio perdido e deprimido o quis recuperar, fazendo-o obedecer às suas ordens. Profetizou que ele depois a iria matar.
            Pablo, é um saxofonista de boa aparência que sabia tocar todos os instrumentos, apaixonado de Hermínia. Tinha um curioso Teatro Mágico, onde as pessoas aprendiam a encarar a vida menos a sério.
            Maria, é uma linda e jovem mulher para quem Hermínia empurrou Harry, pensando que ele encontrasse nela a tranquilidade que precisava.
            Goethe, um dos imortais, que “reconheceu e sentiu com agudeza e dubiez, o desespero da vida humana; o esplendor do momento e o seu miserável definhamento” (pág. 101), que o podia portanto compreender.
            Mozart, outro dos imortais, autor de A Flauta Mágica, que, sendo um génio, passou com ligeireza pelas contrariedades e misérias da sua curta vida, encarando a existência com optimismo, rindo-se daquilo que não conhecia.  

            RESUMO DA OBRA
            Vamos dividir o livro em seis partes, que não correspondem às que o autor adoptou no livro, e de que nos servimos para efeitos de estudo.

            I Parte PREFÁCIO DO EDITOR (Páginas 9/28)
            Do prefácio constam algumas anotações do editor, que conheceu o chamado “Lobo das Estepes”, quando ele esteve alojado em casa da sua tia. Segundo diz, era um homem na casa dos cinquenta, que vestia com dignidade, com a barba bem escanhoada e o cabelo bem aparado. Fazia uma vida muito voltada para si mesmo. Um dia viu-o no quarto com uma bonita mulher, mas desconhecia o seu nível de relação, e outra vez fora dar com ele num concerto, onde se ouvira Handel e Fridemann Bach. Também sabia que bebia e que apreciava os encantos da Natureza, embora tivesse ideias suicidas, evidenciando um certo desencanto pela vida. Chamava-se Haller, e verificou nas suas esquivas pesquisas que tinha no quarto livros de Buda, Goethe, Dostoievski. Era um homem solitário com alguma formação religiosa, que tentava sobreviver num mundo adverso, um lobo das estepes, que como se sabe, é um lobo solitário, que caça à noite e individualmente. Do que viu dele não pôde falar muito mas pôde ajuizar da sua estranheza e originalidade. Enfim, trata-se do primeiro esforço para descrever a personagem que dá nome a este livro, na sua vertente física e psicológica.

            II Parte – INTRODUÇÃO AO ROMANCE (Páginas 28/47)
            Nesta parte o Lobo das Estepes assume-se como narrador na primeira pessoa, em que confessa ser um solitário sem eira nem beira a viver de expedientes, num mundo pequeno-burguês que abomina (integra-se no Manuscrito de Harry Haller Só para loucos). Faz os seus exercícios físicos e mentais que é costume e sai para dar uma volta à cidade, talvez para uma fuga a si mesmo. Está farto da vulgaridade, da mediania, do tédio que lhe assassina a vida. Por momentos perde-se em meditações de Descartes e Pascal. Numa rua da cidade vê uma tabuleta luminosa com as palavras: “Teatro mágico. Entrada não para todos – não para todos”. Vendo melhor “Só para loucos”. Ma sua cabeça esvoaça uma multidão de anjos de Gioto, com ressonâncias de velhos livros de monges. Pouco depois dá com um dancing onde ouve música de jazz, não sem que seja perturbado por música vinda da antiga Roma, claro, acompanhada de Bach e Mozart. Encontra a seguir um vendedor de rua com um cartaz onde se lia “Noite anárquica! Teatro mágico! Entrada não para todos”. Quis ver o levava numa caixa, e deu com o Tratado do Lobos das Estepes. Não para todos, que compulsivamente adquiriu.

            III Parte – TRATADO DO LOBO DAS ESTEPES (Páginas 47/71)
            Vem escrito em itálico, como se não fosse pertença do autor. É a história de um homem conhecido por Lobo das Estepes, que andava insatisfeito consigo próprio e com o mundo, confrangido pela sua dupla natureza de homem e lobo. Se por um lado assumia o seu lado bom, queria ser amado e transmitir ternura, por outro tinha o seu lado mau, “era selvagem, insubmisso, perigoso e forte”. Uma das suas características era de ser um homem nocturno, portanto avesso ao contacto social, um misantropo que se destruía pelo seu excesso de independência. Com quarenta e sete anos achou que só seria admissível para si suicidar-se a partir dos cinquenta (data da publicação deste livro). Queria portanto afastar de si tal acto, embora suicida não seja só aquele que se quer mata, mas aquele que se anula perante a sociedade, que vê a sua libertação na morte. Ora ele fazia uma vida de eremita, longe do ideal burguês. E todavia cultivava as virtudes do espírito, tinha aspirações ao divino, ao contrário do burguês, que tem ambições muito mais terrenas, e limita a liberdade ao direito de voto. Numa sociedade burguesa são os outsides que inovam, os restantes assumem-se como massa amorfa que aqueles deformam. Contudo, apesar de a sociedade ser uniformizadora, o ser humano é individualista, propende para a sua auto-destruição, e como tal se vai reconstruindo de modo diferente, a sua unidade anímica é uma ilusão, mais que duplo ele é múltiplo. Fernando Pessoa exploraria também esta ideia. Enfim, perante uma sociedade tão complexa e um ser humano tão problemático, só o humor podia suprir as exigências da vida. Todas as filosofias e mitologias que andavam à sua volta da explicação do ser humano eram um tanto grosseiras, a dicotomia entre lobo e homem era redutora, mais uma tentativa gorada. O homem burguês não se reconhece a si próprio, “por isso queima hoje por herege e enforca o criminoso a quem amanhã levanta estátuas”.

            IV Parte – EXEGESE DO MANUSCRITO DE HARRY HALLER (Páginas 72/90)
            O tratado do Lobo das Estepes é uma parte muito importante do livro e vai ser objecto de uma exegese por parte do autor. Vinha com um poema, e juntamente com ele constituía dois retratos do autor. Ora bem, esse lobo das estepes tinha de morrer (pág. 73). Com o decorrer do tempo ele tornara-se um marginal, a sua concepção de Estado, religião, pátria e família já não se coadunavam com ele próprio (pág. 74). Às voltas com a sua auto-destruição e auto-formação, que lhe trazia grande sofrimento, ele pensou no suicídio, que era “estúpido, cobarde e miserável” (pág. 75), mas era uma forma de libertação. Toma uma droga à base de ópio que o aliviou do sofrimento por uns tempos, mas agora nada impedia que em breve não tentasse um mais eficaz paliativo. Ao fim e ao cabo aquela decisão era apenas uma fuga da sua consciência. As restrições do tratado “Não para todos”, Só para loucos” vieram-lhe ensombrar o pensamento. Ele não devia estar bom da cabeça. Mergulha então em pensamentos mágicos, num cemitério, em mitologias orientais, até dar com Harry Haller, outra vez dividido em humano e lupino. Para se retemperar de lucidez cita nomes como Jesus Cristo, Sócrates, Mozart, Haydn, Dante e Goethe. Vai a casa de um jovem professor para fazer um manifesto contra a guerra. Este mostrou-lhe uma estátua de Goethe mas ele não o reconheceu naquele aspecto enfatuado, cheio de presunção e nobreza, que criticou, a ponto de ao fim lhe ter de pedir desculpa a ele e à mulher pelo seu modo desabrido, o seu lado mau predominou naquela conversa. Levantou-se e saiu, “nunca o simples ter-de-viver lhe doera tanto como nessa hora”

            V Parte – APARECIMENTO DE HERMÍNIA (Páginas 90/170)
            “Entrei numa tasca dos arrabaldes para descansar uns instantes”, é assim que começa esta parte, onde se vão desenrolar os grandes diálogos do romance. Tratava-se do bar Águia Negra, com muita festa, muita música, muita balbúrdia. Sentou-se junto de uma das suas frequentadoras, ela viu-o carente e começou a tratá-lo por tu, tomando-se de grande familiaridade. Não demorou a convencê-lo a ter que lhe obedecer, numa espécie de jogo que estivessem a realizar para ele se restabelecer. Travam uma conversa que agradou a Harry, ela era muito experiente e culta. Adormeceu ali a sonhar com Goethe, com quem trava alguns diálogos, e maravilha-se a falar de A Flauta Mágica de Mozart. Quando acordou surgiu-lhe a sua acompanhante a propor-lhe a despesa mínima da casa. Ela parece estar a gostar do seu convívio mas recusa-se a dar-lhe o nome. Terminado aquele encontro Harry vem para casa e tem uma conversa agradável com a sua hospedeira.
            No dia seguinte volta à Águia Negra para oferecer um ramo de orquídeas à sua acompanhante. Ela ficou agradada com a oferta mas quer que ele continue a obedecer-lhe, e para que isto prossiga pede-lhe para aprender a dançar o foxtrot. Ele não se sente à vontade nestas experiências mas aceita o desafio. Os dois sentem-se agora mais próximos. Chamava-se Hermínia, lá avançou com o nome. No entender de Harry, se ela lhe agradava era porque funcionava para ele como um seu espelho. Iam brincar os dois ao jogo da vida e da morte. Segundo este processo de cura ele precisava dela para “aprender a dançar, a rir, a viver”. Falam ao de leve do Tratado do Lobo das Estepes, como para o estudar naquele texto. Para as coisas correrem bem ele tinha de seguir as suas indicações e entrar numa nova fase de socialização. Ela ia ajudá-lo a sair daquela neurose em que se encontrava, e ele depois havia de a matar. Harry quase se assustou com este vaticínio.
            O livro volta a mergulhar no ensaio. Para os leitores, mais afeitos aos diálogos, estar fase pode ser menos aliciante. Ali se apela à paz, à tolerância, à humanidade, à auto-crítica, opondo-se à agitação, ao nacionalismo, contra o que pensam os generais, os senhores da guerra. Mas têm de voltar ao seu processo de cura, e regressam às aulas de dança, afinal é ela que o vai ensinar o foxtrot. Ele só tinha de comprar um gramofone para se ouvir a música. Depois haveria de aprender a dançar o boston com outra professora. De um modo surpreendente o enredo complica-se, Hermínia apresenta Maria, uma sua amiga, para Harry dançar com ela. Ele teve que obedecer, embora se sentisse mais atraído por Hermínia. Apresentou-lhe depois Pablo, um homem que sabia tocar todos os instrumentos, por quem está apaixonada. Ele havia de lhe dar uma droga para esquecer. Saiu a seguir com Pablo e ela mandou-o para a cama com Maria. Há aqui um aprofundamento no hedonismo, que chega ao estremo de Pablo propor a Harry uma relação a três com Maria, que ele obviamente recusa.
            Enfim, Harry Haller melhorou da sua neurastenia, mas continua com algumas das suas tendências pessimistas, aborrecido consigo próprio e com a vida, com a mesma repugnância pela política, pelos partidos, pela imprensa, com a sua visceral aversão à guerra. Era contra a maneira como se pensava, contra o ensino que se fazia, contra as obras públicas que se erguiam, contra a música que se compunha, contra o próprio sistema de educação. Faz então um poema aos “Imortais”, como Bach, Goethe e Mozart, entidades superiores, que estavam acima destas vilezas, à sombra dos quais se podia refugiar. Passa por uma sala de cinema e vai ver um filme, tratava-se de uma projecção de Os Dez Mandamentos, feita com grande afectação, que não o atraiu. Dominado por Hermínia ainda teve que ir a um baile de máscaras, um tanto contrafeito, mas que tinha de ir para não faltar ao seu compromisso. E com isto acaba por ir parar à porta do Teatro Mágico.

            VI Parte TEATRO MÁGICO (PÁGINAS 170/224)
            Hoje à noite a partir das quatro horas: Teatro Mágico – Só para loucos”. É assim que começa esta parte. Conduzido como uma marioneta deixou-se ali entrar. Dançou com Maria, contrariado, pois tinha de ir ao inferno ter com Hermínia. Quando a música parou libertou-se de Maria e dirigiu-se ao inferno, situado no andar inferior. Foi para o bar e deparou-se com Hermano, um amigo da adolescência. Mas quando se aproximou e vir melhor, afinal era Hermínia! Começou então a dançar numa atmosfera tomada de Eros e Lesbos, completamente apaixonado. Pablo puxou do seu saxofone, dando maior ênfase ao que estava a tocar, o que os empolgou ainda mais ao ritmo do Yearning, um foxtrot da moda. Beberam um copo, com ela estava diferente! Coisa estranha, apareceu Hermano que a levou, não soube para onde! Perdeu a noção do tempo até por fim encontrar uma bailarina pintada de branco, usando uma máscara, que afinal era Hermínia, mas não, como a encontrara há pouco, era ela própria, não Hermano. Dançaram até de manhã. (Esta VI parte é muito complexa e tem várias leituras).
            Hermínia perguntou a Harry se ele estava preparado para o que se ia seguir. Ele disse que sim e apareceu então Pablo a perguntar por sua vez se ele já estava pronto para o espectáculo, “só para loucos, preço, a razão”. Não havia dúvida, ia entrar numa nova fase da sua vida. Harry voltou a dizer que disse sim e avançaram os três, com Hermínia à direita e ele à esquerda. Foram para uma sala azul onde lhe foi dada a beber uma poção mágica. Ali descansaram um pouco até ele recuperar energia e se libertar do peso que era o “anseio por abandonar aquele tempo”. Mandou-o a seguir olhar para um espelho, em que se pôde ver lá dentro a confrontar a sua dualidade, e desde a infância. Finalmente, ali estava o teatro de Pablo, onde cada um se podia moldar aos seus desejos. O baile, o Tratado do Lobo das Estepes e o pequeno estimulante que foi dado a beber deviam ser suficientes para o libertar da personalidade de o Lobo das Estepes.
            Hermínia desapareceu outra vez, passando diante de um espelho gigantesco. O objectivo daquela encenação era fazê-lo rir, naquele mundo de ficção ia ser introduzido por um pequeno suicídio fictício. Aquela era uma escola de humor, onde podia ver todos o seu passado a refulgir no que ele tinha de mais ridículo. Harry olhou de novo para o espelho e viu-se lá dentro em convulsão e não se conteve: pôs-se a rir. Pablo então disse: “Boa gargalhada, hás-de aprender a rir-te como os imortais, finalmente mataste o Lobo das Estepes”. E Harry pôde ver-se fragmentado em múltiplos egos.
            Foi então confundido com a inscrição: “Todas as mulheres são tuas!”, reexaminando o problema da mulher e o instinto da sexualidade. E mais à frente com outra, com os dizeres: “Todos à jubilosa caçada”, onde volta a ser atormentado com cenários de guerra. Encontra então ali Gustavo, que fora seu colega de escola, e andaram os dois com automóveis e espingardas a matar transeuntes, não por qualquer dever de impor a ordem ou fazer justiça, mas pelo simples prazer de matar. Gustavo agora era professor de teologia, coisa estranha! Durante longos momentos andam os dois assoberbados com o automóvel a atropelar transeuntes. O cenário é de um terror surreal, e sobretudo quando matam o juiz do supremo. Houve uma dúvida sobre se aquilo seria lícito, pois era normal andarem pessoas pelas ruas, mas a Harry foi respondido que o que ontem era normal já “ não o era hoje.
            Terminada aquela tarefa fantasmagórica, Harry vai parar a um átrio e encontra uma série de portas. Entra numa que diz: “Guia para a reconstrução da personalidadeSucesso garantido”. Encontrou de novo Pablo que lhe estendeu um espelho, e nele viu a sua “pessoa desintegrar-se em muitos eus”, Materializando aquilo que a ciência chama de esquizofrenia. Os cacos de que se faziam a sua alma estavam sobre um tabuleiro, quais peças de um xadrez, que Pablo afastou displicentemente. A partir de agora Harry estaria liberto, poderia jogar o jogo da vida como lhe apetecesse, disse. E como se aquele caso estivesse arrumado guardou as peças e meteu-as na algibeira.
            De repente um dístico flamejou. “Prodígio da domesticação do lobo das estepes”, o que lhe provocou alguma perturbação. Viu então no espelho um homem trazendo um lobo como quem leva um cão dando uma aula de adestramento. Fugiu angustiado deste espectáculo de quem quer domesticar a mente humana e foi parar de novo a “Todas as raparigas são tuas”. E aqui voltou à juventude e entrou em experiências de sedução e devaneio até ficar maduro para Hermínia. Foi parar ao átrio do teatro, e viu a legenda: “Como matar por amor”. Ora ele era contra a guerra! Foi à procura de Pablo e Hermínia e encontra um Mozart divertido que lhe fala de Brahms e Richard Wagner, de música, da vida e da morte. Encontra uma porta que abre, e o que vê? Pablo e Hermínia em corpo nu, e sob o seio esquerdo daquela enterrou a sua faca até desaparecer a lâmina. Para amenizar a coisa apareceu outra vez Mozart e por fim ouviu-se numa rádio de Munique O Concerto Grosso em Fá de Handel. Para Mozart ele ainda havia de aprender a galhofar, a ter humor.
            Por fim chegamos à “Execução de Harry”. Ele deu o seu assentimento. O acusador disse: “Meus senhores, têm perante vós Harry Haller, acusado e condenado por abuso voluntário do nosso teatro mágico”. A acusação termina com estas palavras: “Pelo que foi dito, se condena Haller à pena da vida eterna e à suspensão por doze horas do direito de admissão no nosso teatro. A seguir todos os presentes deram uma terrível gargalhada em uníssono. Quando voltou a si Mozart continuava a seu lado, criticou-o por ser cobarde e querer morrer, quando o que era preciso era viver. Achou mesmo que ele merecia ser condenado a uma pena mais pesada. «Qual?» Perguntou Harry. E ele respondeu: «Podíamos por exemplo ressuscitar a rapariga e fazê-lo casar com ela». Mas Harry Haller pediu que não, para isso nunca estaria preparado. Havia de dar em desgraça. Deu subitamente com Pablo e perguntou-lhe onde estavam. E ele disse que estavam no seu Teatro Mágico, onde podiam ser o que quisessem, mas manifestou-se bastante desiludido com a sua actuação. Todavia, nada que não pudesse remediar, pegou em Hermínia, transformado em anã e meteu-a na algibeira, como fizera atrás aos bocados da sua alma. Agora podia ver tudo mais claro, ainda havia de saber jogar melhor a partida de xadrez que era a vida.  

            COMENTÁRIO GERAL AO ROMANCE
            Chegado à casa dos quarenta, Harry Haller tinha perdido a vontade de viver, e, para o caso ser mais dramático, talvez ainda mais a de se suicidar. Era preciso sobreviver a este tédio e vai experimentar novos processos de regeneração mental. Volta-se para o auto-conhecimento, mas depara-se aqui com uma personalidade dividida ente o lobo e o homem, um dualismo que lhe vem da sua educação protestante pietista, com balizas muito marcadas ente o Bem e o Mal. Mais tarde, por influência do hinduísmo esta análise iria complexificar-se, ao verificar que a sua alma não é una, mas múltipla. As primeiras páginas de O Lobo das Estepes incidem sobre a fragilidade do ser humano e a perigosidade da vida em sociedade, mas aos poucos ele vai introduzindo a sua componente política, de natureza pacifista, e acaba por se manifestar contra o revanchismo, contra a massificação e desumanização da cultura, contra a guerra. Expressando uma tal panóplia de ideias, este livro não iria ter grande aceitação na Alemanha, diminuindo com o nazismo, em que acabou por ser proibido. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, os europeus, e mais que todos os alemães, puderam apreciar devidamente este romance, premonitório, e ver com estavam certas as suas ideias, como teria sido bom tê-las valorizado e seguido. Foi daí que pouco depois Hermann Hesse receberia o Prémio Nobel de Literatura (1946).
            O livro é, se estudarmos uma pouco a história de vida do autor, claramente autobiográfico. Ora bem, inicialmente, quando ele vê a sua vida a descambar para o abismo, tem ideias suicidas e refugia-se na música e na literatura. Cita autores clássicos, e até os integra como personagens neste romance. Mas parece não ter conseguido sair daquele enjoo da meia-idade, daquela angústia existencial em que vivia. A seguir, através de Hermínia entra no mundo dos prazeres carnais com o seu relacionamento com Maria; estimula a convivência social através da ida a espectáculos de música de jaz, no aprendizado de danças; e até no consumo de drogas alucinógenas, que lhe facilitariam o esquecimento. Mas também aqui não encontra a cura para os seus males, não terá reconstruído a sua personalidade do modo pretendido. E ele tira mais uma conclusão: a vida, pensando bem, é um absurdo, não a devemos levar a sério, temos que a saber jogar, aprendendo a rir. E é através do humor, proporcionado pela sua entrada no Teatro Mágico, que ele vai encontrar a solução, como Mozart, que se ria daquilo que não compreendia. Para fugir ao medo e ao desespero, ao descontrolo psicológico, ele ia entrar nesse mundo mágico, quase absurdo, onde poderia dar umas boas gargalhadas e não sentir demasiado o tédio e a tristeza de que às vezes a vida se reveste.
            Está claro que este romance não é de leitura fácil, tem três narradores: o editor, que era sobrinho da mulher que lhe alugara o quarto; o próprio Harry Haller, que dá vida ao livro; e o autor do Manuscrito de Harry Haller, Só para loucos. Assume, pois, um estilo construído dentro do Realismo Fantástico europeu, em que nem tudo é dito de forma linear, obrigando o leitor a procurar a Realidade no meio da Fantasia. Os imortais da nossa cultura, como Goethe e Mozart, por um estranho poder surreal são introduzidos no romance como personagens, e, com a sua genialidade própria, já libertos das paixões, dão os seus conselhos sábios; e Harry Haller nem sempre sabe onde está: se está a dormir ou acordado, se está a sonhar ou se está narcotizado – tudo nele é muito impreciso e surreal, como se a vida fosse um sonho. Ele é anti-burguês, daí a dificuldade em se integrar naquela sociedade, e vai tentar vaguear por um mundo mágico que narcotize as suas inquietações. Era preciso aprender a viver, e talvez ainda mais a morrer com dignidade. Em 1967, com Cem Anos de Solidão Gabriel García Márques afirmava de vez o “Realismo Mágico” como escola literária, mas Hermann Hesse, em 1927, quarenta anos antes, já tinha passado por este estilo em O Lobo das Estepes, como podemos verificar no seu “Teatro Mágico”.
            Com influências importantes de Thomas Mann, Kafka, Goethe e Nietzsche, a mensagem geral de O Lobo das Estepes não deve ser considerada liminarmente como negativista ou pessimista, como o acusaram alguns dos seus críticos, isto seria não compreender o romance na sua globalidade. Apesar de Harry Haller ser uma personagem um tanto melancólica, deprimida, e ter inicialmente perdido o sentido da vida, ele anda à procura de uma solução existencial, de um equilíbrio emocional que lhe permita encarar a vida com optimismo, professa ideias a favor da paz, a favor da reabilitação do ser humano, tem preocupações quanto à sua cultura e educação. Além disso, numa época de ressentimentos nacionalistas, expressava críticas ao armamentismo e ao revanchismo, já estava emergente nele a ideia de uma Europa pacificada e unida. Apesar de esboçar ideias suicidas, futurava a superação do ser humano através do humor. Sendo uma personalidade desadaptada, com dificuldades de integração, mais difícil e louvável será o seu processo regenerativo. É um livro complexo, Hermann Hesse obriga-nos aqui a reflectir, a fazer porventura mais do que uma leitura, é um livro profundo e denso, que, por isso mesmo, e como ele previra, dada a sua complexidade de significados ocultos que tenha, não será “para todos”.

Martz Inura
9/8/2016



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