JEAN-PAUL SARTRE









 

  
JEAN-PAUL SARTRE
A Náusea
Tradução de António Coimbra Martins
COLECÇÃO MIL FOLHAS DO JORNAL Público (de 222 folhas) (2003)

O HOMEM
            Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em 21 de junho de 1905, em Paris, e morreu na mesma cidade, em 15 de abril de 1980, num hospital, depois de estar nos últimos dois anos. Foi um filósofo, romancistas, crítico, ensaísta e jornalista francês, que se tornou célebre por ser um dos maiores representantes do existencialismo na França, e pela sua relação aberta com a escritora também francesa, Simone de Beauvois. Cedo ficou órfão de pai, e em 1907 vai com a mãe viver para casa dos avós maternos, e quatro anos depois, para Paris. Em 1916 a mãe casa-se, o que ele não aceita bem: considera o facto uma traição a si próprio. Foi com eles viver para La Rochelle, onde frequentou o liceu.
De 1924 a 1929 conclui o Curso Superior da Escola Normal de Paris. Começa a dar aulas de filosofia no Havre dois anos depois. Em 1933 ganha uma bolsa de estudos para frequentar o Instituto Francês de Berlim, onde toma contacto com a filosofia existencialista de Husserl e Heidegger. Destes estudos deu para escrever A Náusea, com o que divulgou na França os princípios do existencialismo, e com o que granjeou alguma notoriedade. Em 1940 foi convocado para servir no Exército Francês, em plena Segunda Guerra Mundial, em que serviu como meteorologista. Foi feito prisioneiro pelos alemães e depois libertado pelas forças da resistência, de que passou a fazer parte.
Em 1945 desiste do ensino para começar a viver da escrita, e funda com Simone de Beauvoir e outros grandes intelectuais a revista Os Tempos Modernos, uma revista “engagé”, comprometia com as suas ideias esquerdistas, anti-imperialista. Em 1952 filia-se no Partido Comunista Francês, e em 1956 abandona-o como protesto pela invasão dos tanques soviéticos de Praga. A sua presença no meio cultural vai-se afirmando, adquire prestígio internacional. Em 1964 recusa o Prémio Nobel da literatura, para não seu transformado numa instituição. Foi muito influente no “Maio de 68». Em 1972 assume a direção do jornal esquerdista Libération. Era talvez o filósofo mais popular do século XX, muito controverso, cujos comentários faziam vender jornais. Continuou sempre a escrever, a ser um embaixador da cultura francesa com a sua companheira de sempre, Simone de Beauvoir. O seu maior mérito não foi o das suas posições políticas, dos seus conceitos filosóficos, mas o de nos aguçar a consciência da liberdade, e da responsabilidade em usá-la de forma adequada.


A OBRA
            A obra de Jean-Paul Sartre é vasta e diversificada, contém romances, ensaios, contos, peças de teatro, obras de crítica, uma autobiografia e obras de cariz biográfico. Distinguem-se aqui as seguintes:
            A Imaginação (1933), ensaio filosófico
            A Transcendência do Ego (1937) ensaio filosófico
            A Náusea (1938) romance
            O Muro (1939) contos
            Esboço para uma Teoria das Emoções (1939) ensaio filosófico
            As Moscas (1943) peça de teatro
            O ser e o Nada (1943) ensaio filosófico
            A Idade da Razão (1945) romance
            Os Dados Estão Lançados (1947)
            O Que é a Literatura? (1947) ensaio
            As Mãos Sujas (1948) peça de teatro
            Crítica da Razão Dialética, Tomo I (1960) tratado de Filosofia
            As palavras (1964) Autobiografia


O ROMANCE, A Náusea

Principais Personagens
            Antoine Roquentin: Um historiador introspetivo de cerca de trinta anos que pretende fazer uma biografia do marquês de Rollebon. Depois de ter viajado pela Europa Central, pelo Norte de África e pelo Extremo Oriente, instala-se na cidade fictícia de Bouville, onde anda pelos cafés e pela biblioteca. É uma pessoa cuja consciência se sente constrangida a aceitar o seu corpo, como se vivesse dentro de um objeto estranho. Por outro lado, sente uma repulsa pela sociedade em que vive, que lhe provoca uma irreprimível náusea.
            Autodidata: Funcionário da biblioteca que Roquentin frequenta, que se pretende fazer a si mesmo, mas que se rege pelos padrões normais da sociedade. Acha que os seres humanos se devem amar uns aos outros, embora na prática ele os deteste. Está contra o existencialismo. É um humanista superficial, que passa a vida na biblioteca a ler livros por ordem alfabética.
            Andy: Jovem por quem Roquetin estivera apaixonado. Ela marca-lhe um encontro, que ele aspira ansiosamente. Mas, uma vez realizado há um certo desencanto de um pelo outro. Ela não vê nele o mesmo homem que conhecera, ele mudara, e pretende viajar. Prevê um novo encontro, mas ele receia nunca mais voltar a vê-la.



Breve resumo do livro
O livro é uma espécie de diário, data o mais tardar de 1932, como nos é dito em tom irónico no primeiro capítulo, em que o historiador, Antoine Roquentin vai escrever uma biografia sobre o marquês de Rollebon, um suposto aristocrata do século XVIII. Ora bem, este seu propósito é mais uma fuga de si mesmo. Todos os dias ele trabalha nesta obra. Há dias em que se ente satisfeito, a investigação correu-lhe bem, terminou mais um capítulo, não voltará lá senão quando o passar a limpo. Mas noutros dias não lhe vê sentido, empanca nalguma das suas façanhas – foi um dia para esquecer. Para escapar àquela neurastenia começa a fazer um estudo sobre o tempo. 


Resultado de imagem para jean paul sartre
  Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, um amor surgido na juventude

Lá mais para o meio o autor desencanta-se com a biografia do marquês e resolve desistir dela. Cai em depressão, sente a náusea, não vê sentido à vida do marquês, que já o enfada. Aquele deixou-se confundir com a própria imagem que queria fazer dele. Era um homem de “má-fé”. Aproveita então por falar da sua própria existência, que está vazia de sentido e verificar como as duas são ilógicas. Não pode continuar o livro, e agora o que há de fazer da sua vida? Interroga-se ele. Não vai continuar, e começa a expor a sua tese sobre o existencialismo. Passou por um vendedor de jornais que traz a notícia de uma criança que foi violada e morta. Já não existe. Entediado, vagueia pela cidade até ouvir num pick up a voz de Ella Fitzgerald em Some of These Days. Ele tem de continuar a escrever qualquer coisa. Sobre a música dela ele escreve: Não se pode dizer que existia como eu, como Rollebon, não tenho vontade de a conhecer. Mas há esta coisa. Não se pode dizer que exista. Existe o disco que gira, o ar ferido pela voz, que vibra, existe, a voz que impressionou o disco existiu. Eu que ouço existo.

No sábado (Tarde), descreve-nos aquela visita que fez ao Museu de Bouville, e põe-se a comentar os quadros ali expostos, retratos de pessoas ilustres, e como lhe quer roubar a alma para a repartir connosco. Faz-lhes um perfil psicológico: o que elas foram, já não são. Mas tiveram uma vida, mudaram conforme a idade, fizeram por existir. A dada altura o leitor pode sentir a ler um texto sobre crítica de arte, não num romance, e ainda menos num ensaio. E depois ele desdobra o problema, põe os próprios visitantes a comentar aquilo que estão a ver, naturalmente dando uma versão diferente das personalidades retratadas, e, em vez de comentar os quadros falam da vida dos retratados. Saiu dali, achando que estivera na presença de “safados”, ou seja, pessoas que não aceitam o existencialismo, e que pretendem escapar à angústia de serem completamente livres.  

Resultado de imagem para jean paul sartre nos cafés
Jean-Paul Sartre, um fulano ruivo que andava sempre pelos cafés

Na Quarta-Feira vai almoçar com o Autodidata, quer trocar impressões, ver dimensões do seu humanismo. Mas aquilo começa mal. Dá-se o caso que Roquentin esborracha uma mosca, o que indigna o Autodidata. Mas ele logo se defende, dizendo que foi um favor que lhe fez, retirando num ápice indolor de uma vida sem sentido. Falam sobre comida, sobre o tempo, mas daqui a pouco Roquentin está a afirmar que a vida não tem sentido nenhum, o que indigna o Autodidata. É então o momento em que Sartre aproveita para apresentar a sua tese sobre o existencialismo, que o seu antagonista não entende. Ele quer levá-lo a ir ver o museu, e ele diz que de pintura não percebe nada, e o mesmo dirá de escultura e de música. Afinal ele é um ser desprovido de sensibilidade: o seu amor à humanidade é ingénuo e bárbaro: um humanista de província (pág. 143)

Mais para a frente recebe uma carta de Andy, sua antiga namorada, para se encontrar com ele, que ele espera ansiosamente. Mas quando se encontram verificam que entre eles foi perdido o encanto. Conversam, mas ela nota-o diferente, algo obtuso, a náusea deve-o estar a afetar. Isto faz que ela ainda se sinta mais desesperançada daquela relação. E diz que vai viajar, mas no fundo está a afastar-se dele. Tem mesmo encontros marcados. Que tolice fazer filhos, confessa ele. Faz uma combinação para se voltarem a encontrar, mas ele pensa que será a última vez que se verão. Ela partiu e ele resolve voltar para Paris, finalmente toma uma decisão inabalável. Vai despedir-se à biblioteca, mas descobre que o Autodidata é agredido por um tipo chamado Corso, que o acusa de molestar crianças do liceu, que é um porco.

Resultado de imagem para jean paul sartre e simone
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, um amor que resistiu à idade e à doença

Por fim resolve escrever um livro, algo de precioso e de meio lendário, em que seria recordado como aquele indivíduo ruivo, que andava sempre pelos cafés. Um livro que seria um trabalho naturalmente tedioso e cansativo, onde ele se esqueceria de si mesmo. Porém, ao escrevê-lo estava a existir, essa era a diferença. Fora um erro seu querer ressuscitar o senhor Rollebon. Bem, e talvez com este seu propósito escapasse à náusea, àquela angústia que por vezes sentia, àquela impressão de que o mundo é absurdo. O trabalho era antidepressivo, tinha em si algo de libertador. Mais tarde talvez ele pudesse evocar a sua vida sem repugnância, como quando ouvira na rua Some of These Days de Ella Fitzgerald. Este era o seu processo de se esquecer de si mesmo, revendo-se na sua obra, assim chegaria a aceitar-se como era.  


Apreciação geral deste romance
            A Náusea não é um livro primorosamente escrito: é o seu primeiro romance, veio filtrado de muitos condicionamentos, encurtamentos e revisões, é quase um monólogo, não traz algo de verdadeiramente novo à literatura, muitos dizem que é mesmo tedioso. Em segundo lugar não possui um enredo chamativo: tudo roda à volta de poucas personagens, não muitos fortes, excetuando Roquentin, a quem a sua consciência sentia repulsa pelo próprio corpo. O Autodidata será apenas uma imagem invertida deste, e mais pobre. Por último, não tem um grande amor a emoldurá-lo, uma paixão que atraia o leitor. Andy aparece tarde no romance, e é um amor falhado, será para lhe dar um pouco de suspense, que não chega a dar. Então o que é que torna este romance notável, o que o faz aparecer nas listas dos melhores romances do século XX? Bem, ele é um livro que traz para a Literatura o existencialismo, uma corrente filosófica já há muito esboçada por Kierkegaard, Husserl, Heidegger na Psicologia. Para Roquentin nada vale a pena, mas ao fim e ao cabo acaba por empenhar-se em afirmar-se ao mundo e tentar melhorá-lo. Acha que o ser humano é o que ele quiser: a essência precede a existência. Ora bem, mais importante do que isso foi o ter trazido este tema para um romance. O autor vivia em Paris, naquele tempo a capital cultural do mundo, e ao fazê-lo de uma forma bastante forte foi capaz de provocar os areópagos da cultura, a intelectualidade da altura, os jornais e as universidades. A época também era propícia a isto, no meio de tantas guerras sentia-se a necessidade de regeneração do ser humano. Desde modo o livro se impôs facilmente ao mundo, e hoje continua a ser reeditado.  

            O existencialismo ainda não é um assunto encerrado. Ele vai apoiar-se na lógica de Descartes para aclarar a sua teoria: “O meu pensamento sou eu”. “Se existo é que porque tenho horror a existir”. “A repulsa à existência é outra maneira de mergulhar nela”. Tudo em Segunda-feira, transcrições da página 128. Por sinal, eivadas de pessimismo. Ora bem, nós somos, nós existimos. A Língua Portuguesa tem ela própria essa noção, ao contrário de outras, o que nos causa uma certa confusão. Há os verbos auxiliares: “Ser”, mais adequado à essência, e o verbo “Estar”, mais adequado à existência, mais estático. «Eu sou aqui» soa muito mal. Em Português: nós dizemos: «Eu estou aqui». Contudo, vejamos: qualquer coisa é, mas antes de o ser já pode estar na ideia de outrem, dá ideia que a essência precede a existência. Ela é previsível. De um homem e de uma mulher vão nascer seres, cuja essência mais geral, já sabemos como vai ser. Porém, é com a existência que se começam a adquirir qualidades. Somos nós que nos construímos: Acho que fui eu que mudei (pág. 16); A minha letra mudou (pág. 25). Sim, mas nós mudámos o que já anteriormente alguém edificou como sua obra. Contudo, a essência sem a existência nunca será possível, forma-se a partir da existência. No momento que passámos a existir já somos alguma coisa, não temos essência. Portanto, essência e existência são correlativas. É como na sociedade: onde está um direito, está um dever, e vice-versa. Ele define melhor a sua teoria em O Ser e o Nada, considerada a sua obra prima, mas mais dentro do ensaio. No ser humano, e só nele, já que as coisas são o que são, a existência precede a essência, pois o homem, primeiramente existe, e só depois de define, e adquire uma essência. Bem, não vamos fazer disto uma questão de lana caprina, escrever dez mil páginas sobre o sexo dos anjos.

            Não se pode negar ao existencialismo o seu papel, pois o termo pode ser visto por outros prismas. A importância desta corrente, quanto a nós, tem mais pertinência sob o ponto de vista político e social do que científico ou filosófico. O seu esforço interpretativo representa um passo em relação à liberdade de escolha. É contra o livre arbítrio, contra as inverdades por aí construídas para nos servirem de amarras. A existência precede a essência, deve ser o ser humano a realizar-se, a afirmar-se a si próprio. Assim, estamos condenados a ser livres. Esta corrente vai contra as teorias que fixam ao homem uma série de direitos e deveres, muitas vezes arbitrários, formatando a mente dos indivíduos, que são em parte os mais perfeitos robôs dos tempos modernos. Mas, quanto a nós, vejamos. O ser humano é livre? Devia ser livre, tem o direito de ser livre, mas bem sabemos que é um pouco escravo das suas convicções, daquilo que lhes é incutido desde a mais tenra idade na sua mente. Infelizmente, uma simples grama de álcool a mais no sangue pode influenciar as suas decisões, afastá-lo de si próprio. Alterem-lhe um gene que ele fica outro. A componente inteletiva é prisioneira em grande parte da componente afetiva, instintiva e reflexa. Quando chegámos ao âmago do que é um ser humano, resta pouco dele mesmo. Embora ainda seja ele, e não outrem. Ele é um ser pré-fabricado pela sociedade, talvez para não se sentir dissonante no meio dela.  

            A Náusea vem carregada de pessimismo antropológico, que os psicanalistas facilmente poderiam explicar, estudando a vida de Jean-Paul Sartre. O tempo é uma ilusão. Pensa mesmo se se matar, está com um canivete nas mãos. Ele não encontra sentido para nada, sente-se perante um mundo absurdo. Roquentin gosta de música, de Some of These days de Ella Fitzgerald e de Chopin. Aquela infância infeliz, onde se estrutura a nossa personalidade dá para entender muita coisa. É um período em que se em nós for destruída qualquer afeto mais profundo, jamais será reconstruído. A vida para ele é uma náusea, uma experiência infeliz, uma tristeza que o invade a cada momento. Recorde-se que o autor quis dar ao livro o título de Melancolia. Ele não vê sentido à vida, não lhe encontra um sentido de finalidade. Não há nenhuma razão para existir, repete ele a (pág.142). O sentido tem de ser ele a dar-lhe com o seu humanismo. Quando se põe a hipótese de esmagar uma mosca, acha que fazê-lo, era um favor a prestar-lhe (pág. 132). Repare-se que os dois soldados assassinos, condenados à morte no romance A Sangue Frio, de Truman Capote, quando começaram a matar pessoas a esmo também pensaram o mesmo. Para eles: estavam a fazer-lhes um grande favor. Sartre chega a falar da extrema tolice de fazer filhos, (pág. 197). O autor faz no livro alguma crítica à sociedade de Bouville, recorrendo à personagem de Roquentin. E, no fundo, apesar das suas fraquezas resiste à adversidade, ele não se suicida, ele luta por se afirmar, escreve um livro, exorta-nos a vivermos por nós, quer libertar o ser humano da escravidão de si próprio, acaba por ser, afinal, um humanista.

            A Jean-Paul Sartre atribuíram o Prémio Nobel em 1964. Ele próprio, sabendo que estava nomeado enviou uma carta para Estocolmo a dizer que não o receberia, caso ele lhe fosse atribuído, e explicou as razões. A carta não chegou a tempo, resta saber por quê. Segundo ele, um escritor não se pode transformar numa instituição. Bem, é esta justificação. Ele estava farto de saber o processo pouco nobre sobre a seleção do vencedor do prémio, das perversas influências políticas, institucionais, nacionalistas, corporativistas sobre o resultado da escolha, que tem frequentemente pouco a ver com a literatura, e sempre mais a ver com a política, com a visibilidade social do autor, ou influência cultural que tenha o seu país. Se não, vejamos, em 1901 foi atribuído o primeiro Prémio Nobel de literatura a Sully Prudhomme, distinto poeta francês, hoje em parte ignorado, e não a um expoente da cultura universal, Leão Tolstoi, já bem conhecido na altura. Os grandes escritores continuam a escapar à triagem da academia sueca, como sejam o caso de Leão Tolstoi, James Joyce, Robert Musil, Marcel Proust, Jorge Luis Borges, entre outros. Franz Kafka nem chegou a ser aceite pelas editoras, por ser demasiado original. Sartre ao recusar o prémio mostrou a sua verdadeira nobreza e coerência: Ele, neste romance, que mais tarde considerou a sua obra maior, sabia do que falava. A páginas 54 diz: Não era o amor, oh não, nem a glória, nem a riqueza. Era… Enfim, tinha imaginado que, em certos momentos, a minha vida podia ganhar uma qualidade rara e preciosa. 

            Os misantropos estão gratos a Jean-Paul Sartre por ele ser dos poucos romancistas que se lembrou deles, que não teve vergonha desta verdade, a de terem repulsa à existência. E deve corrigir-se o dicionário, quando se diz que eles odeiam o mundo, no sentido puro de termo eles têm apenas repulsa pela natureza humana, rejeitam-se a si próprios e têm horror à sociedade. Alguns deles foram grandes criadores, e mesmo pessoas generosas, enquanto outros, que dizem amar o mundo, da sua ação resultou para a humanidade milhões de mortos. O verdadeiro misantropo sente-se de mal com o mundo que o rodeia, quer voltar-se para si e refugiar-se em qualquer canto de si mesmo. Já Pitágoras defendia a libertação do homem pelo trabalho intelectual. A vida é uma festa, viva-se, sejamos felizes, mas tentemos compreender os misantropos. Eles estão abismados por a natureza, que se diz sábia, os ter criado sem eles ter pedido, para virem sofrer, quando tinha um número infinito de seres a criar em vez deles! Desses que amam a vida, têm sede de poder, da glória, da riqueza, que querem devorar todo o tempo e todo o espaço. 
               Realmente, ter de comer e defecar, ter de copular como qualquer animal, sentir demasiado e pensar mal, terá a seu ver algo de repugnante. E eles contentar-se-iam em simplesmente não existirem, permanecerem intocáveis no Nada, na Paz Absoluta. A natureza talvez tenha alguma desculpa, pois esta maneira de ver o mundo tem muito a ver com distúrbios na infância, resulta muitas vezes de alguém ter falhado na sua educação das crianças. Sartre reviu-se na canção daquela preta Ella Fiztgerald, ali bem presente no pick up, e longe dela. Ele era ruivo, uma cor no seu pensar ainda mais desgraçada. Também o escrever para ele seria o seu refúgio, a sua fuga de si próprio. Fernando Pessoa, também com uma infância infeliz fez o mesmo, fugindo para os seus heterónimos. Citemos apenas alguns dos misantropos mais famosos, para além de Jean-Paul Sartre: Pitágoras, Jonathan Swift, Ludwig Van Beethoven, Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Oscar Wilde, Franz Kafka, Fernando Pessoa, Louis Ferdinand Céline, Salvador Dali, Herberto Helder, Stanley Kubrick, Alan Moore, Jim Morrison.

            Há quem critique Jean-Paul Sartre por ele ser um depravado. Atendamos que ele vinha de uma infância infeliz, e que a mãe voltou a casar depois da morte do pai, o que lhe reforçou este transtorno psíquico. Ele na vida não procura o amor tradicional, como o casamento, vida social, filhos. Ele à sua maneira era um misantropo. É célebre a sua frase: O inferno são os outros. Mantinha uma relação aberta com Simone de Beauvoir, que sexualmente também era livre, e com comportamentos desviantes. Não tiveram filhos. Ele pode ter errado, mas era uma pessoa coerente, preocupada com os problemas sociais, não demasiado obcecado pelo poder, pela honra e pelo dinheiro. Era muito humano e responsável. Há quem o vilipendie por ser ateu. Ele pretendia apenas afirmar a liberdade do homem. É dito, e mesmo pela sua companheira, que o conhecia bem, que ele tivera uma educação religiosa. Ele terá sido crente. Mas no meio das duas guerras mundiais devastadoras, de uma violência demencial, ele achou como muitos que se impunha uma ação providencial que pusesse termo àquela barbárie, o que não aconteceu. A sua geração, foi, pois, confrontada com uma aparente ou não «ausência de Deus». Por outro lado. O ser humano nascido com tão maus instintos, impunha-se que, sendo criado por um Ser infinitamente bom, fosse construído à Sua imagem, mais bondoso e compreensivo. E realmente, aos seres humanos é lícito pensar: se do Alto não nos ligam nada quando estamos vivos, vão ligar-nos, quando estivermos mortos? Bendito seja Deus, ele foi feito um pouco a partir destas dúvidas! O seu propósito foi clarificá-las. Já em vida ele conseguiu granjear estima e reconhecimento, mesmo de quem não estava inteiramente de acordo com as suas ideias. Possa ter errado algumas vezes, era uma pessoa amante da Paz, da Justiça e da Liberdade. Mais para ser refletido que degustado, A Náusea é um grande livro.

Martz Inura
22/03/2019


Nenhum comentário:

Postar um comentário