FERREIRA DE CASTRO











FERREIRA DE CASTRO
A Selva 
Guimarães & C.A


O AUTOR
           José Maria Ferreira de Castro nasceu na freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, em 1898, e faleceu no Porto, em 29 de junnho de 1974. Terminados os estudos primários na sua terra natal, pouco depois embarca para o Brasil, com apenas doze anos, onde vai parar à cidade de Belém. Ali enceta as primeiras tentativas literárias. Anos mais tarde, já homem feito, vai trabalhar num seringal da Amazónia, quando o Brasil já está em plena crise da extração da borracha. O trabalho é duro e mal remunerado. Em 1919 regressa a Portugal. Em Lisboa funda a revista A Hora, o jornal O Luso, mas, sem apoios, acaba por ter de colaborar em diversos jornais, começando a escrever os seus livros. Com a instauração do Estado Novo tem dificuldades em lidar com a censura prévia, deixa de colaborar com a imprensa portuguesa e muda o tema dos seus livros para matérias apolíticas. Recebeu, entre outras distinções, o Prémio Internacional Águia de Ouro do Festival do Livro de Nice, e em 1962 foi eleito presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Escritores.  

A SUA OBRA
            Não se vão aqui descrever todas as suas obras, que constam de mais de trinta volumes. Citaremos as que julgámos mais importantes, que se podem dividir, grosso modo, em quatro categorias: as criações iniciais, de pendor mais social, como: Rugas Sociais (1917), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), A Epopeia do Trabalho (1926); os romances baseados na sua experiência pessoal, como Os Emigrantes (1928), A Selva (1930), A Lã e a Neve (1947), Eternidade (1933), Terra Fria (1934); os livros de viagens, como A Peregrina do Mundo Novo (1926), Pequenos Mundos, Velhas Civilizações (1937), A Tempestade (1940), A Volta ao Mundo (1940-44), As Maravilhas Artísticas do Mundo em dois volumes (1959-1963); e o período de uma análise social mais abrangente, digamos que antropológica, como a Curva na Estrada (1950), A Missão (1954), O Poder (Instinto) Supremo (1968). 


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O ROMANCE A Selva

a. Breve resumo
Alberto, um jovem português monárquico, que toma parte na revolta de Monsanto, é obrigado a refugiar-se no Brasil, na cidade de Belém, na casa de um tio. Pensava ele arranjar ali trabalho fácil, mas a exploração da borracha está em queda no Brasil, e acaba por aceitar ir para um seringal no interior da Amazónia, com a esperança de ir trabalhar no escritório. Embarca por fim no “Justo Chermont”, em terceira classe, no meio dos outros engajados. Afogado naquele oceano de árvores, passa por Manaus, entra no Rio Madeira, até chegar ao seringal Paraíso, onde recebe o mesmo trato miserável dos outros seringueiros. Não vai para o escritório como almejava e o recomendara o tio, não, vai para o seringal.
É iniciado na extração da borracha pelo cearense Firmino. A vida ali é insalubre, o trabalho árduo e perigoso, e as redondezas, desertas de mulheres. Existe o patrão, Juca Tristão, o empregado de escritório, de nome, Guerreiro, os capazes Balbino e Caetano, e vários trabalhadores, destacando-se o tal Firmino, Agostinho, com quem vive mais de perto, e mesmo Tiago, um velho negro a quem as pessoas gostam de humilhar chamando-lhe Estica, que tem uma relação especial com o patrão.
Juca Tristão, que pagava as passagens às sucessivas levas de trabalhadores para o seringal e lhes dava agora sustento a partir do seu armazém, mantém com eles um “conta” corrente, que acaba por ficar sempre negativa, pelo menos para os que consomem cachaça, de maneira que os seringueiros, a ganhar cada vez menos, ficam irremediavelmente escravos do seringal, a ter que trabalhar para saldar a “conta”, que nunca mais será saldada. É um trabalho escravo, eles tornam-se os modernos servos da gleba.
Só há duas mulheres, a Dona Yáyá e a Nhã Vitória. Na ausência do elemento feminino os homens caiem nas maiores baixezas, em práticas zoolófilas, na perversão da natureza, mesmo os mais bem formados, que sob tais condições acabam por prevaricar, indo contra tudo o que julgavam sagrado, chegando à “repugnância por si mesmo”.
O trabalho é árduo e estupidificante. Uma ameaça indecifrável surge do interior da selva descomunal. Há um mistério ameaçador atrás de cada árvore, de cada brenha, nas margens dos rios, no meio da turbulência ou sossego das águas. Existe o perigo de serem mordidos pelas cobras, de serem devorados pelos jacarés, de serem mortos pelos índios pirimpintins, de perecerem de estranhas doenças.
Finalmente o dono do seringal, Juca Tristão, pessoa insensível e autoritária, vai a Belém tratar de assuntos pessoais, e Alberto é admitido no escritório, onde passa a ver melhor a exploração a que os seringueiros estão sujeitos: o patrão paga-lhes a 2 e vende por 5, apesar da baixa de preço da borracha no mercado internacional continua a beneficiar de avultados lucros. Ainda é a mãe, que, prevendo a sua situação miserável, lhe manda dinheiro para ele pagar a “conta” e regressar a Portugal.
Firmino e outros seringueiros, na impossibilidade de se libertarem da “conta” fogem do seringal, mas vêm a ser presos noutra exploração ao lado e levados de regresso ao Paraíso (curioso nome), onde são amarrados dentro de um barracão e chibatados com peixe-boi, destinando-se-lhes oito dias sem comer. O velho Tiago, antigo escravo, com um defeito numa perna, a quem apelidavam de Estica, revoltado aquela situação intolerável, que conhece bem da sua juventude, deita fogo ao barracão com Juca Tristão lá dentro. Não foi possível socorrer o homem. Perante toda esta tragédia pouco mais há dizer que tirar as conclusões.

b. O seu estilo
            A Selva foi publicada em 1930. Formalmente a obra enquadra-se no neo-realismo, que o autor ajudou a implantar na literatura portuguesa, corrente que traz a vida, bem experimentada, mais à superfície da narrativa. O romance está escrito como num diário de bordo que se faça de uma viagem. Tem influências claras de O Coração da Trevas de Joseph Conrad, e até de O Livro da Selva de R. Kipling. Uma obra nunca é feita do nada, terá as suas referências, mas este livro de A Selva está magistralmente bem escrito. O Rio Amazonas, o maior rido do mundo, ao fim de muito visto num pequeno navio em terceira classe, acaba naturalmente por se tornar repetitivo, monótono, cansativo, mesmo rodeado por aquela floresta luxuriante, oceânica. Contudo, o autor consegue arranjar sempre novos termos e expressões para o descrever, dando colorido à monotonia e opressão daquele espaço, extraindo dele momentos da sua beleza portentosa. Sucessivas ondas de vegetação, de águas ora mansas ora turbulentas, vão florescendo o nosso pensamento daquele labirinto florestal, tão denso como opressor, húmido até aos ossos, do qual se sentem aprisionados. A sua linguagem, embora direta, quase fotográfica, sem artificialismos, tem por vezes vislumbres de poesia. E, mesmo sendo um livro despretensioso, há um rasgo de descoberta, um grau de heroicidade, um sabor a epopeia ao longo das suas páginas.

c. O seu pendor social e moral
            Este livro, diga-se dele o que disser, que tem uma dimensão que ultrapassa o da literatura. Ele alerta-nos, sem recorrer a juízos de valor, para a injustiça social, para a exploração do homem pelo homem, para a falta de liberdade, para a fragilidade dos humilhados e oprimidos, dos negligenciados socialmente. Alerta o Brasil para um certo anacronismo das suas instituições nas suas regiões mais recônditas, em pleno século vinte, onde as leis civilizacionais e os mecanismos de controlo legais estão a tardar a chegar.
            O meio ambiente em que se vive é ali um fator preponderante daquilo que vai ser o ser humano, na sua grandeza ou baixeza moral, na sua maior ou menor elevação intelectual. Na Natureza vigora a lei do mais forte, a seleção natural, digamos que é ela que determina o comportamento do ser humano, e sendo selvagem fá-lo regredir à sua psicologia primitiva. Esta ideia é mais evidente na última página do livro, quando ele toma o propósito de jamais voltar a acusar alguém. Como advogado prefere seguir a carreira consular ou quanto muito dedicar-se à defesa dos réus, à denúncia dos crimes contra a humanidade.
            O ser humano sob um ambiente adverso descaracteriza-se, degrada-se moralmente. A natureza tem, digamos, vida própria, é estrutural e estruturante, molda à sua medida os seus figurantes, as suas personagens, que se têm de adaptar a o meio em que vivem, tornando-se mais duros e insensíveis, quando este ambiente é mais agreste. Estão ali as raízes do mal.  

d. Importância para a literatura portuguesa
            Ferreira de Castro é um precursor do neo-realismo na literatura portuguesa, uma maneira mais próxima, mais vivida, de vermos a realidade social, que se estava a tornar artificial, levando ao papel uma vivência insuspeita, capaz de resistir a toda a prova. A literatura portuguesa, tendo na altura pouco expressão internacional, ganhou com ele algum protagonismo. As suas obras passaram fronteiras, e ele acabou por ser um dos autores portugueses mais traduzidos do seu tempo. Em1951 foi mesmo proposto para prémio Nobel de Literatura, situação que se veio a repetir em 1968, juntamente com Jorge Amado, por imposição deste último, dado o valor que lhe reconhecia e a amizade que os ligava. Influenciou muitas gerações de portugueses e até de brasileiros, que viam nele um autor internacionalmente reconhecido, defendendo os valores de liberdade e de justiça de que estavam carecidos aqueles tempos. 
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A Selva foi adaptada ao cinema em 2002, numa realização de Leonel Vieira. 
Na foto, Diogo Morgado e Maitê Proença, no papel das principais personagens.


CONCLUSÃO
            O livro A Selva foi escrito em 1926, portanto, 15 anos depois de Ferreira de Castro ter abandonado o seringal. É uma obra autobiográfica, por isso com uma narrativa muito próxima do autor, que não precisou de inventar nada para criar a realidade. Há uma minúcia descritiva, uma profusão de detalhes, um clima poderoso e denso de pormenores que nos fazem acreditar e sentir naquilo que estamos a ler.
            Ferreira de Castro leva-nos a fazer uma incursão na Amazónia, um espaço então ainda pouco explorado, para quem o mundo olha com algum mistério e fascinação, descrevendo de forma singular episódios da extração da borracha na selva, quando esta estava em decadência, falando de uma região desconhecida do grande púbico, e de factos relevantes para a história da humanidade, de grande exotismo, irrepetíveis.
            Não se pode negar que este livro tem momentos menos vivos, menos aliciantes, mas no seu todo é coeso e forte. O autor obriga-nos forçosamente à reflexão, como atrás já se disse. Quase sem os citar, defende os direitos humanos, revela ao mundo um caso particular de exploração de trabalhadores, denuncia situações de injustiça graves, acusações essas, que vemos como uma realidade que tem de ser mudada imperiosamente, e sem que o autor o peça de modo expresso. A sua veemência faz-nos ter sede de justiça.
            Não é um livro com um enredo obsessivo, cheio de segredos miríficos que alienem a nossa imaginação numa textura meramente lúdica e superficial, e que uma vez lido é para esquecer. Não, este é um livro que empurra a literatura portuguesa para a modernidade, milimetricamente bem escrito, que nos obriga a tomar consciência do mundo em que vivemos, nos ensina a pensar. Tudo isto enquanto nos leva numa incursão à Amazónia mais recôndita, exuberante de vida, cheia de magia e ainda atual, a muitos títulos fascinante.


Martz Inura
 6.10.2013



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