DOSTOIÉVSKI
O Idiota
Tradução do Russo de Nina Guerra e Filipe Guerra
Editorial Presença
O
AUTOR
Fiódor Mikhailovtch Dostoiévski
nasceu em Moscovo em 30 de Outubro de 1821 e faleceu em São Petersburgo em 11
de Novembro de 1881. Ainda jovem perdeu a mãe, e pouco depois o pai,
assassinado pelos seus servos, revoltados contra o tratamento despótico como
eram tratados. Tais factos pesaram muito na sua mente. Em 1849, quando
publicava um jornal, é preso sob a acusação de conspirar contra Nicolau I e
condenado ao fuzilamento, de que foi salvo in
extremis, quando se preparavam para disparar sobre ele, com a comutação da
pena pelo czar para trabalhos forçados na Sibéria. Este terrível episódio é
descrito em O Idiota. Defendia os ideais cristãos e a igreja ortodoxa russa. Teve
uma curta experiência no exército imperial. Viajou bastante pela Europa. Casou
duas vezes. Era viciado no jogo.
A
obra de Dostoiévski é constituída por mais de uma dezena de romances, alguns
deles volumosos, como o presente, e outras tantas novelas e contos, com que recriou
a Rússia do seu tempo. Deu início ao romance existencialista, criando
subjacente à parte romanesca uma filosofia que desse sentido à vida. A sua
influência na literatura universal é enorme. Iniciado em 1846 com Gente Pobre, ele foi escrevendo romances
cada vez mais importantes como Humilhados
e Ofendidos, Recordações da Casa dos
Mortos, Memórias do Submundo, para
se afirmar definitivamente com obras de difusão mundial como Crime e Castigo, O Jogador, O Idiota, Os Possessos, Os Irmãos Karamazov, este último em 1881.
O
ROMANCE EXISTENCIALISTA
Dostoiévski era epiléptico, na
altura uma doença ainda mais terrível do que hoje, carregada de medos e
superstições. Não fosse isso já bastante, o autor viu morrer o pai de uma
maneira terrível, e mais tarde foi condenado à morte, com os trâmites que já
conhecemos. Era um homem com a alma temperado pelo sofrimento, que teve de se haver
com muitas dúvidas, muita reflexão, não é de admirar que tivesse posto o mundo e
os céus em questão, e que nas suas longas vigílias pelo horror e pela amargura,
tivesse procurado encontrar um sentido para a vida. Daí que impregnasse a sua
obra de um nuvem de ideias que desse coerência ao mundo. Este seu propósito
começa a ser evidente com Memórias do Submundo.
O
romance existencialista introduzido espontaneamente por ele e pouco depois
repetido por Kafka (os dois autores com graves problemas de integração social),
foi fixado e teorizado a partir de 1940 por Camus e Sartre, entre outros, talvez
como resultado do pessimismo antropológico derivado da 2.ª Guerra Mundial. Esgotado
o neo-realismo, e em face de uma guerra tão tresloucada como aquela, que criara
na mente de muitos uma espécie de “vazio de Deus”, os autores quiseram para si
um papel mais interventivo, buscando um novo sentido para a existência, transformando
o romance numa espécie de ensaio filosófico. Esta corrente assenta, pois, grosso modo, no primado da existência
sobre a essência (o homem não nasce predeterminado), está centrada no indivíduo
(em oposição a tutelas exteriores), radica no absurdo da vida (que parecia ter
perdido qualquer sentido), na afirmação da liberdade (contra imposições da
sociedade).
Na
Filosofia esta corrente foi iniciada por Kirkegaard, mas já tinha tido apontamentos
na antiguidade em Sócrates, e teve depois muitos seguidores como Schopenhauer,
Nietsczche, Husserl, Heidegger e Sartre, autor muito influente. Mas na literatura
foi, de facto, Dostoiévski que o reintroduziu com Memórias do Submundo, seguido de muitos outros como disse: Kafka (O Castelo), Camus (O Estrangeiro), Sartre (Náusea).
Em Portugal Virgílio Ferreira foi um dos seus primeiros seguidores (Aparição). Havia o problema da
literatura ter conotação política ou não. José Régio era pela “arte pela arte”,
sem conotação política, e lá fora Oscar Wilde ia pelo mesmo diapasão, considerava-a
a regra de ouro da criação, e do mesmo modo André Guide, que dizia que na arte,
a ética é uma dependência da estética. O caso é bicudo, já que a ética muda com
o tempo, e a arte ao ficar na dependência da estética envelhece. O “Bem-dizer”
não é o “Bem-fazer”. Contudo, os conceitos de estética também mudam. Não é que
os livros não devam tratar destes assuntos, mas não se poderá considerar bem
arte, mas moral, filosofia, política.
O IDIOTA
A presente edição é uma tradução de
Nina Guerra e Filipe Guerra. O livro conta a história de um tal príncipe Lev
Nikoláevitch Míchkin, que, vindo de se tratar na Suíça de uma “idiotia”, no
comboio de Varsóvia a S. Petersburgo trava conhecimento com Lébedev e Parfion
Rogójin. Sem recursos, já na cidade vai falar com a generala, que ainda seria
sua parente, Lisaveta Prokófievna, esposa do general Ívan Fiodorovitch
Epantchin. Ambos têm três filhas: Aleksandra Ivánovna, Adelaída Ivánovna e
Aglaia Ivánovna. Com subtileza consegue introduzir-se naquela sociedade arcaica.
Atenção que há mais de um general, mais do que um príncipe, sempre com nomes
difíceis de fixar para um leitor que não esteja familiarizada com o Russo.
O príncipe Michkin sofre de
epilepsia, é uma pessoa amável, generosa, sincera, desprendida das coisas,
enfim, naquela sociedade, para quem o conhece um perfeito idiota (parvo).
Lentamente vai-se por em relação com as famílias dos Rogójin, Lébedev,
Epantchin, Ptítsin, Gánetchka, entre outras, tendo de se haver com elas. Chega
à cidade sem recursos, vivendo de expedientes, até receber uma avultada
herança, que o vai tornar mais respeitável. As personagens são tiradas da
burguesia, não são vistas a trabalhar. Presume-se que administram os seus
recursos, escassos, pois algumas deparam-se com dívidas por pagar, ou com letras
não saldadas. A parte romanesca vai travar-se mais visivelmente entre o
Príncipe Míchkin, Aglaia Ivánovna e Natássia Filíppovna. Esta última teve
outros pretendentes como Afanassi Ivánovitch Tótski, Parfion Rogójin e Gravila Ardaliónovitch
Ivolguín. Isto já dá para orientar o leitor. È melhor não dizer mais nada.
O
Idiota foi escrito em Florença, entre 1867 e 1868, durante quatro meses. O
seu príncipe Míchkin foi inspirado no D. Quixote de Cervantes, cruzado de
empresas quiméricas, e tem muito de Jesus Cristo, mensageiro da bondade e do
perdão, do desprendimento. Ele problematiza constantemente o nacionalismo
russo, a estrutura social da Rússia do século XIX, a questão religiosa, o
dinheiro como móbil das pessoas, põe a nu o intrincado psiquismo de cada um, procurando
deixar submersa nas suas páginas um sentido da vida. Não parece ser do seu
tempo, em sinceridade e desapego aos bens materiais, sofre de uma quase
inocência. Admira a beleza, reincarna em si a bondade e é humilde perante toda
aquela caterva de lobos que o cerca. Na Suíça chega a beijar uma tísica, uma
mulher perdida, desprezada por toda a aldeia. Todos o julgam por isso um tanto
imbecil, mas ele conhece bem o interior das pessoas que o rodeiam, a sua
inteligência é arguta, não obstante generosa e compassiva. No seu coração pode
ocorrer momentaneamente alguma repulsa ou ressentimento, mas não há lugar para
o ódio.
Dostoiévski por vezes embrenha-se em
longas dissertações, que só o seu génio descritivo as salva de algum tédio, o
seu olhar parece um foco de luz intensa, que se ilumina sobre as personagens, pondo
a nu a sua alma, digamos que elas ficam expostas à sua lúcida observação, mostrando
à saciedade as suas aspirações e medos, as suas fraquezas e potencialidades, o
seu egoísmo ou altruísmo, toda a sua manha e sageza. Tão informado está sobre tudo
e todos que dá a impressão de ser dotado de qualquer qualidade divina que o
torne omnisciente. Mas Dostoiévski não é só extraordinário a caracterizar
psicologicamente as suas personagens, ele é exímio e a descrever fisicamente as
pessoas, a pincelar as cidades, as paisagens, a estender até à nossa
compreensão a intricada teia de relações sociais que o rodeiam. Mais
recentemente, críticos como Mikhail Bakhtin, ao falar sobre o “romance
polifónico”, consideraram que Dostoiévski terá ido mais longe que o
existencialismo, ao dar voz não só às personagens, mas a teorizar em mais de um
nível problemas de natureza filosófica, social e moral. Em O Idiota defende a tese de que um homem verdadeiramente bom e
generoso dificilmente poderá singrar numa sociedade egoísta e corrompida,
muitas vezes cruel, como aquela, onde ainda não se afirmaram os valores
cristãos.
Um autor por mais admirado e
considerado que seja não é uma autoridade que esteja a salvo de toda a crítica,
é humano, não é infinitamente perfeito. A estrutura deste romance tem muito de
teatral. As pessoas descolam-se de uma casa para outra, por etapas, e é ali que
é revelado todo o enredo. O espaço físico torna-se portanto minimizado em favor
do espaço mental. Também o tempo é pouco cronometrado, quase não se dá por ele
no romance, é indefinido, tudo se passa não se sabe em quantos dias. Dada a
situação difícil em que foi escrito este livro, no estrangeiro, doente e à
pressa, em quatro meses, o romance pode parecer por vezes um tanto caótico
(Tolstoi assim o criticou), os factos ocorrem aqui e ali com uma sequência
saltitante, quase desconexa, como se tudo tivesse ocorrido “de repente”,
palavra que ele está sempre a repetir. Por vezes temos que ir investigar a que
personagem foi dada a palavra. A realidade é aqui e ali distorcida, exacerbada,
afrouxando a coerência ao romance. Ele mesmo admitiu não ter conseguido atingir
o máximo das suas potencialidades como escritor, quando disse: A pobreza e a miséria formam o artista.
Mas ressalve-se este aparte, que naquilo em que ele foi grande é um mestre
incontestável.
Ler O Idiota, e o mesmo se dirá de outros livros deste autor como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, é como ir em peregrinação até ao subterrâneo
da alma humana e ali ver tudo no meu máximo esplendor, é ver mais longe os
horizontes do mundo e ali perscrutar vislumbres do sentido oculto das coisas, é
ver a aventura às vezes desesperada ou mesmo trágica que é a vida de cada um. Vou
citar dois pensamentos tirados desta obra: Colombo
não era feliz na hora de descobrir a América, mas sim quando estava no processo
da sua descoberta, pág. 388. “O luxo
se transforma pouco a pouco numa necessidade, pág. 131. Leia-se a seguinte
transcrição, paradigmática, quando escreve sobre ataques epilépticos: A sensação de vida e de auto consciência
parecia decuplicar-se nesses instantes, que tinham a duração de um raio. A mente e o coração iluminavam-se com uma
luz inacreditável; todas as emoções, todas as hesitações e preocupações dele
pareciam apaziguar-se de todo, resolvidas num sossego superior, pleno de uma
alegria e de uma esperança claras e harmoniosas, como que preenchido da razão e
da causa última (pág. 222).
CONCLUSÃO
O Idiota
é um romance magnífico, típico do autor, com aquele fulgor que o caracteriza, capaz de nos maravilhar, levar à reflexão. É uma peregrinaão à interioridade do ser humano. Dostoiévski, diga-se dele o que disser, que é um dos
escritores mais marcantes da Literatura, não só pela profundidade e profusão da
análise psicológica, em que é um mestre consagrado, como pela introdução do
romance de ideias, existencialista, em que foi original. Por tudo isso ele foi
marcando sucessivas gerações de escritores, que ainda hoje continuam a recorrer
a ele para se banharem no seu génio criativo. São notórias as suas influências em pensadores
como Nietzsche, Freud e Sartre, e em escritores como Camus, Kafka, Mishima,
Nabokov, Proust, James Joyce, Thomas Mann, Henry James, Hemingway, Solzhenitsyn
ou Virgílio Ferreira, só para citar alguns. Ele influenciou todas as
literaturas. Algumas das suas personagens são tão fortes que como possuem um
poder hipnótico sobre o leitor, que facilmente se deixa apossar pela sua
grandiosidade. Trata-se de um autor extraordinário, cuja leitura é obrigatória
para quem quiser estar bem dentro, não apenas da Literatura, mas da Cultura.
Martz Inura
14.11.2013
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