MAGALHÃES PINTO






MAGALHÃES PINTO
Não Haverá Amanhã
ÂNCORA EDITORA (2010)

     Estamos perante uma romance eminentemente político. A acção decorre na pequena freguesia nortenha de Sanhoane, todavia, bem entrosada na problemática e no todo nacional. As personagens são fictícias, mas o mundo que recriam, bastante real. Ali pudemos estudar quase ao pormenor um universo imenso de variáveis da política autárquica portuguesa: analisar a estratégia dos seus intervenientes, pesar os interesses que alimentam e sustentam a sua estrutura, medir as forças mais obscuras que movem todo o sistema. E pese o romance ser de natureza política, o autor sabe-o entranhar no meio social em que se desenrola, não ignorando os problemas pessoais das suas personagens, que, embora estando envolvidas na política, e naquele momento mais intensamente, são também movidas por outros interesses: continuam inteiras de corpo e alma.
     Magalhães Pinto usa uma linguagem acessível e precisa, moldada a partir da região em que se insere, o que exige alguma investigação, o que é difícil e louvável, já que caminhamos para uma linguagem citadina, tirada dos telejornais, cada vez mais gasta, uniforme, a perder sentido. Sob o ponto de vista formal, o autor não vai à procura de reinventar o romance, mas tão-somente retratar a vida com simplicidade, sem que lhe falte mestria, traduzindo a complexidade e riqueza que ela tem. Não se aprofunda muito em psicologias, descreve as situações com clareza, privilegiando as suas motivações políticas, já que é esse o seu principal objectivo. A narrativa é fluente, transpondo-nos facilmente para o meio em que a vida está a ser recriada.
     O político comum é retratado com um elemento da estrutura social, ávido de poder, perito em atrair e iludir o eleitorado, usando para isso de todos os processos e subterfúgios, mesmo os mais nefandos, num universo em que os bem-intencionados sucumbem. Cumpre-lhe captar a vontade geral, mas conduzi-la para onde ele bem quer e quando quer, ainda que limitado pela lógica partidária e pelos seus interesses pessoais, que tem de controlar dentro dos limites de uma legalidade adaptada à sua medida. Exerce o seu poder expressando uma verdade maquilhada: Finge serás rei, fala verdade e serás bobo, diz a certo ponto uma sua personagem. Neste aspecto a realidade parece-nos aferida das teses de Maquiavel, que pretendem que o político não se afirma pela bondade, mas pela hipocrisia, pela simulação, pelo calculismo.  
     Para o autor, que tem uma grande experiência de vida e andou pelos corredores da política, percorrendo-os em diversos patamares, o povo não é desprovido de inteligência. Embora tenha coração, e esta inquine o raciocínio, orienta-se por motivos aparentemente de ordem racional, sabe reconhecer as suas dificuldades, está mais ou menos consciente das suas limitações, tem as suas aspirações e anseios. Todavia, no seu todo não é muito desenvolvido culturalmente, é bastante influenciável, e pode ser facilmente manipulado pela perícia e sofisticação dos políticos. Quando se organiza em massas tem uma grande inércia, que os políticos têm de abordar com muito cuidado para não serem trucidados.
     A Democracia parece aqui seguir ideias próximas de Crozier Friedberg, reside no poder do povo, mas é relacional e acaba por ser o resultado de uma negociação, por vezes aturada, sofisticada, obscura, nem sempre justa, surgida da dinâmica das forças em confronto, em que se jogam as influências: se conseguem adesões, fazem cedências, se procedem a trocas. Os partidos políticos são os seus agentes privilegiados e  podem-na corromper, reduzindo-a a uma farsa, iludindo o eleitorado com malabarismos discursivos de efeitos calculados, algumas vezes perversos, normalmente aliciantes, e quase sempre enganadores.
     O Estado é o garante de uma certa estabilidade, a cúpula de todo o sistema, mas funciona por vezes de uma forma pouco racional, influenciada por forças perversas. E neste aspecto está perto de Vilfredo Pareto, para quem o homem, que lhe vai dar corpo, não é um ser racional, simplesmente raciocina. E nós podemos dizer que frequentemente se engana. O Estado, cimentado pela estrutura política, enferma da sua lógica, por vezes contraditória, por ser o resultado de muitos interesses, comportando-se frequentemente de forma estranha, incoerente, incompreensível, ao ponto do cidadão comum não se rever nele.
     Não Haverá Amanhã é um título, que possa  traduzir um certo pessimismo antropológico, alguma desilusão da política, mais sobretudo dos políticos, na maioria das suas páginas é positivo e tem um olhar lúcido sobre a realidade: o seu conteúdo é fortemente enriquecedor. Pese que por esta altura a sociedade portuguesa enferma de algum pessimismo, ele não terá fugido  à neutralidade axiológica que muitos leitores pretendem ver nos livros. Enfim, trata-se de um belo romance, capaz de nos ir surpreendendo, de uma leitura obrigatória para quem quiser ver a política por dentro. Está voltado para o poder local, mas tomado da lógica do poder central, que aqui disseca laboratorialmente, analisando-o à lupa, como um seu microcosmos, e neste aspecto é também um pouco da história do mundo.   02/2011 Martz Inura.




POST SCRIPTUM



            Assistimos em 16 de novembro de 2010 ao lançamento deste livro na cidade do Porto, na Fundação Eng. António de Almeida, pelas 21.30 horas. Ia apresentar o livro o jornalista Carlos Magno. Estava a sala cheia e a mesa desesperada à espera de Rui Rio, então presidente da Câmara Municipal do Porto, que tardava. Quando chegou desculpou-se do seu atraso por um afazer imprevisto e inadiável. Então, alguém replicou com ironia ao microfone que só por isso era justificável o seu atraso, já que quanto ao bom estado das ruas e à fluência do trânsito não tinha desculpa nenhuma, já que era presidente do município. A sala respondeu com uma estrondosa gargalhada. Ao nosso lado estava o coronel David Martelo, também escritor, tradutor para Português da Guerra do Peloponeso de Tucídides, que comentou: «Esta é boa! É sem dúvida a maior piada da noite!». António Baptista Lopes, da Âncora Editora, lá ao fundo na mesa mostrava um sorriso aberto e bonomioso. Rui Rio sentava-se à pressa. Em Magalhães Pinto vimos um sorriso ténue, muito voltado para si mesmo, quase ausente. O título do livro que ia apresentar, transportando consigo uma carga trágica, era: Não Haverá Amanhã. E ele devia estar tomado do verdadeiro sentido do título da sua obra, pois nem mesmo durante a sua alocução, que fez com algum entusiasmo, o abandonou esse ar de nostalgia, e teve mesmo uma tirada de pessimismo, que a assistência contrariou com uma grande ovação. Na sala havia muitos políticos, embora a obra não lhes fosse abonatória. Magalhães Pinto (1943-2010), licenciado em economia, jornalista, biógrafo, escritor, político, morreria em 06 de setembro de 2011, menos de dez meses depois. Tem outros livros publicados, como Os Heróis e o Medo, e Belmiro – História de uma vida. Ficou a sua obra.



 15/04/2019