MANUEL CÓRREGO






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MANUEL CÓRREGO
Campo de Feno com Papoilas
CAMPO DAS LETRAS




O HOMEM

            Manuel Córrego, pseudónimo de nome Manuel Pereira da Costa, nasceu na vila do Couto de Cucujães em 16 de Dezembro de 1932. Não tendo uma infância porventura fácil, enriqueceu-a na música, no grupo coral e no teatro, só na maioridade tirou o curso liceal como voluntário, concluindo a seguir o curso de direito na Universidade de Coimbra. Já licenciado esteve em Angola, em Malanje, como magistrado do Ministério Público, regressando em 1964 a S. João da madeira para exercer a carreira de advocacia. Esteve sempre muito ligado quer às actividades cívicas em prol da liberdade e da justiça; quer às políticas, praticando a democracia; quer culturais, em domínios com o da música, do teatro, da literatura e do jornalismo: Dirige desde a década de sessenta o semanário “O Regional” na cidade de S. João da Madeira.

A OBRA
            Ainda está por fazer um estudo sobre a sua actividade jornalística, que é considerável. É porém, na dramaturgia que o autor mais se tem distinguido. Nascido no meio do teatro, ele depressa apreendeu a sua envolvência, a sua linguagem, todo o seu processo de comunicação, escrevendo mais de uma dezena de peças, grande parte das quais premiadas em concursos. A sua elevada importância chegou a despertar interesse no Brasil, na Universidade de S. Paulo, sendo ali objecto de estudo em seminários e teses de mestrado. Lamenta-se não terem tido consagração nos nossos grandes centros, mas este vício não é de agora, já Alexandre Herculano, em 1838, se lamentava da preferência dada em Lisboa no Teatro do Salitre a uma peça do hoje quase desconhecido César Perini, em desfavor de uma outra de António Feliciano de Castilho. Vão-se citar algumas: O Tinteiro de Ferro, Camiliana, Prémio Garrett, 1990; Um Gira-Discos na Floresta, Grande Prémio de Teatro Inatel, 1991 e Prémio Eça de Queirós, 1992; O Testamento do Rei D. João Segundo, Grande Prémio de Teatro Inatel, 1998; O Casamento de D. Manuel Primeiro, Grande Prémio de Teatro Inatel, 2004; A Rainha e o Cardeal, Grande Prémio de Teatro Inatel, 2006; Um Terraço sobre a Cidade, Prémio da Escola Superior Artística do Porto, 2007. Na ficção o autor iniciou-se na ficção com Campo de Feno com Papoilas, Romance, Prémio Ler/Fundação do Círculo de Leitores, 1998, mas outros romances escreveu como: Diz-me a Quem Amar e Serei Salvo, contos, 2001; Três Horas e um Quarto, camiliana, in Dez Contos com Livros Dentro, 2004; Cem Anos sem uma Valsa, romance queirosiano, 2006, talvez a sua obra-prima; Vento de Pedra, romance, Prémio AO, 2008; e Perpétuas-Roxas e o Lá de Schumann, camiliana e outros contos, Prémio Miguel Torga, 2010. Os Sapatos Vermelhos do Papa são o seu último romance, publicado em 2016, com o autor a libertar-se da sua formação teatral, mais descritivo, encurtando os diálogos, e utilizando uma linguagem muito próxima do povo que pretende retratar, fluída e directa.

O ROMANCE ESCOLHIDO

Campo de Feno com Papoilas

a. Razões para uma escolha
            Esteve em mãos Cem Anos e uma Valsa para ser relida, mas o Campo de Feno com Papoilas por fim prevaleceu. É um livro que incide sobre a terra onde nasceu, de quando eram vivas as gerações que o antecederam, e que nos é grato revisitar. Está muito por dentro da música clássica, matéria que o autor domina. Tem muito de autobiográfico e alguma coisa a ver com o seu pai, Amadeu Pereira da Costa, que foi maestro, de que este livro será uma singela homenagem. No romance encarna a personagem de João das Contas. É portanto muito sentido, nele respira-se autenticidade, é a fiel fixação de uma época, de uma cidade e de alguns dos seus arredores.

b. Sinopse da Obra
            O romance estende-se por 46 capítulos, que se vão a seguir tentar resumir como aperitivo e estímulo à sua leitura:
1.       A acção decorre na Vila Nova da Azinheira, que ia à vida descalça. A sua banda de música e o seu fundador, cujo retrato não há, virá dos idos de 13 de Dezembro de 1888. Há aqui uma evocação de Luciano de Castro, que frequentava estas bandas, e a apresentação do Padre Francisco Alves, que já nesse tempo não usava sotaina.
2.      Recordação do primeiro dia de banda do narrador-personagem, aos doze anos, que o la minuta na cabeceira da cama retratava. Descrição sucinta da sua infância e da sua terra, cuja beleza fizera parar Eça de Queiroz na sua carruagem, no caminho de Oliveira para Ovar.
3.      A Banda Musical de Vila Nova da Azinheira não surgiu de um dia para o outro, tivera o contributo do professor Canelas, do Padre Francisco Alves. Para isso houve que reunir recursos: pôr em acção os vinte amigos, pedir nos palacetes, organizar quermesses, cantigas ao desafio, jogos de destreza, cortejos, e o contributo de um “brasileiro” rico.
4.      O narrador evoca o seu passado, do deslumbramento do primeiro clarinete que teve em mãos, vindo da parte do mestre António Soutinho. Na banda foi tudo o que quis, e aos trinta anos chegara ao topo, só não tomando a regência por lealdade a um amigo. Fora a música (e o teatro) que naquelas idades dúbias de ser apóstolo ou apóstata o salvara.
5.      Primeiros desaires da banda. Ainda o instrumental não estava pago, quando em 18 de Dezembro 1891 cai um grande temporal na terra, que arruína a casa de ensaios com a destruição do instrumental de porte e das partituras, trabalho de muitos serões.
6.      O dia treze de Dezembro, o dia de Santa Luzia e do seu nascimento do narrador. A evocação do seu avô, que se ficou pela bateria, e a quem nunca vira com um copo a mais, que um dia, num almoço dos seus anos o indicou aos presentes como futuro mestre da Banda de Vila Nova da Azinheira.
7.      Evocação da figura de Jesuíno, que casou antes das sortes, e que o pai e o abade livraram da tropa por mor dos rebentos que lhe nasciam como cogumelos. Era amigo de Amadeu Canelhas, mestre-escola, ourives do sol, a quem alcunhou de Toscano Parsifal, e que morreu cedo.
8.      Bela narrativa de um velho mestre de música que se recusa a largar a regência. Apesar de parado no tempo sente-se apossado do poder: Eles que venham. Quando achar que estou a mais vou-me embora.
9.      Festa na aldeia com todos os seus ingredientes: missa, procissão, banda e coreto, regueifa. Belchior era o mordomo-mor, e, com a sua freima esforçada deu nome a essa festa.
10.  A relação do narrador com Florêncio, apaixonado pela música, que uma vez saído dela e abandonado pela mulher e pelos filhos se deita abaixo de um comboio, mesmo em frente à casa de ensaio.
11.  Um mendigo que chegou a mestre. O padre Francisco Alves andava à procura de um maestro para a banda. Ora apareceu ali um refugiado russo, Vladimiro, que desenhava figuras de santos no adro e tocava saxofone contralto à maravilha. Como sabia muito de música foi proposto para o lugar.
12.  A comissão tenta impor o narrador (director do jornal, João das Contas) como novo mestre da banda, mas ele tenta resistir. O seu avô bem podia ter-se calado com aquela farsada de o fazer mestre de banda antes de tempo.
13.  Continuação da história do narrador quando rapaz, a quem cortaram uma perna que criara gangrena de uma forma rudimentar e desumana. Tocava flautim. Há o episódio da hóstia e da namorada, Aninhas, que não o abandonou, no meio das suas agonizantes dores.
14.  Este é o capítulo da hipócrita homenagem ao velho regente da banda, em decadência, a quem faziam discursos laudatórios, mas o que na verdade queriam era vê-lo pelas costas a abandonar a regência.
15.  Nova regência, a do rapaz que tocava flautim. Tirou o estrado o estrado da casa de ensaios para disfarçar a prótese que tinha na perna. Aninhas, agora sua mulher, foi uma das pessoas que o impulsionou. O reportório foi remodelado da clave à coda.
16.  Bela descrição do novo maestro, António Soutinho. Felizmente, na 1.ª Grande Guerra a banda não sofrera grande monda. Uma segunda referência ao russo de olhos azuis, Vladimiro, com um saxofone flexível que ia da flauta aos metais.  
17.  Vila Nova da Azinheira reivindica a emancipação concelhia. Há ajuntamentos, comícios, abaixo-assinados. Vai a Lisboa alguém fazer pressão e o ministro assina. O facto é comemorado na vila com cerimónia apropriada.
18.  O progresso tinha chegado àquela terra, os artesãos estavam a transformar-se em industriais, homens que não passaram das primeiras letras graduaram-se a si mesmos em doutores na sua arte ou ofício. Pensavam num grande clube de futebol, num estádio, num santuário em cima de um monte. O progresso também atingira a banda que tinha agora 48 executantes e reportório para três dias seguidos.
19.  Uma serração de madeira em plena laboração, o cheiro da resina e do serrim, os troncos de pinho, as tábuas para o soalho. Jesuíno era um modesto trabalhador, Leocádia, sua mulher, vinha ali de açafate à cabeça trazer-lhe o almoço. Era clarinete, mas com tanto que fazer, dividido entre a família e a banda acabou por deixar o instrumento.
20.  O mestre recusava-se a admitir mulheres na banda. Com maior ou menor dificuldade resistira a duas guerras, não ia agora baquear. Mas a verdade é que presentemente já não havia uma única banda que tivesse sobrevivido sem mulheres.
21.  Virgílio da Bernarda era boa pessoa. Faltara a três ensaios seguidos, tivera que integrar o Corpo Expedicionário para as Colónias. Chegara a ser condecorado sem dar um tiro. O mesmo não se podia dizer de Germano da Freita, que, tendo denunciado Salvador Tarrinca como mixordeiro o levou à prisão, deixando à mulher uma caldeirada de filhos e a padaria, de que ele se apossou.
22.  A figura de uma mulher, Gracinda, matriarca, que condiciona a vida ao marido. A mulher é o habitáculo do homem.
23.  Salvador Tarrinca na prisão jurara vingança. Os filhos começaram a andar ao Deus dará. Havia a fama de entrarem em alguns assaltos. Certo Domingo desapareceu durante o sermão para aparecer mais tarde no fundo do poço do sino.
24.  O episódio caricato do piano oferecido pela Fundação Calouste Gulbenkian, para o qual não havia local apropriado para o colocar.
25.  Grandes fábricas se estavam a construir, entre elas a chapelaria de Benedito Pouca Letra, que exigia para a sua caldeira uma alta chaminé de tijolo. Estavam a pensar construí-la com andaimes a partir de fora, mas Jesuíno Santa Engrácia resolveu construí-la de uma forma muita mais prática e económica. Enriqueceu com a sua Leocádia, a ponto de chegar a ter saudades de quando era pobre.
26.  Festa na terra com a inauguração da Senhora dos Remédios. A vinda do bispo, dos altos dignitários, a presença dos bombeiros, e depois a procissão cheios de anjinhos. O maior incidente aqui foi quando os anjinhos (crianças de tenra idade) tiveram de ir mijar e a procissão teve que parar.
27.  O progresso chegou à cidade, e era não só económico como social e cultural. Leocádia fora a primeira mulher a andar de bicicleta, a montar um negócio de automóveis de aluguer, a abrir um posto de gasolina. Havia carreira para o Porto. Construiu-se o cinema, o centro comercial.
28.   O problema da junção da vila à freguesia vizinha, a fundação do jornal O Litoral, a celebração da vitória das eleições na vila do “General Sem Medo”. Regressa a seguir aos problemas da banda, onde o Padre Francisco Alves por muito tempo foi regente provisório, mas António Soutinho, que teve uma boa arrancada, durante quarenta anos não renovou o reportório numa única linha.  
29.  A mão-de-obra começa a fugir da agricultura para a indústria, os campos ficam ao abandono. É então o usurário Sr. Coimbra se aproveita para comprar propriedades ao desbarato. Entretanto as mulheres começaram a chegar à banda.
30.  De um modo perfeitamente teatral fala de Mozart para amenizar a recordação dos campos de extermínio nazi.
31.  Ameniza o discurso, paradoxalmente recorrendo às Fúrias de Beethoven, trazendo à baila a história de Filomena e Floriano. Prossegue com as usuras do Sr. Coimbra que agora acode aos aflitos nos casinos de Espinho, Póvoa e Figueira, emprestando dinheiro a juros exorbitantes.
32.  O autor contempla as quatro fotografias da banda e revê nelas toda a história da banda de música, vindo-lhe à memória a história de vida de Moisés Pimpão, casado com Lucinda.
33.  O episódio de Zeferino Bombarda, o homem do contrabaixo, de bigodes farfalhudos, capataz nas Minas do Pintor, que um dia se distraiu na forma prosseguindo a marcha quando a banda estacou, sendo despromovido para um barítono roído pelo verdete.
34.   Augusto Brandão, alto e direito com um fio-de-prumo, casado com Maria José, que lia livros proibidos. Reminiscências românticas: Esperam por nós os trilhos de giestas e carriças. Os campos de feno com papoilas.
35.  Uma evocação dos pingueiros da banda, de que destaca Pedro Zipela, o terceiro trompa, cuja superior façanha foi (em Espinho) ficar debaixo do comboio (o rápido) e sair ileso.
36.  O narrador volta à política para falar de quando o mestre foi preso por levar na lapela um emblema de um dos beligerantes da 2ª Guerra Mundial, e de quando desistiu de concorrer à Banda da GNR por sua intercessão.
37.  Jesualdo Princeso, o trompetista que se melindrava quando determinada peça difícil não era tocada, e se sentia ao mesmo tempo aliviado se não fosse, com receio de fraquejar. Não pelo solo (tocava-o há tantos anos que a melodia inventava-se a si mesma) mas pela ocasião. Tinha a mulher, Rosenda, que não era um modelo de virtudes.
38.  Chegam as primeiras vagas de emigração, não dão lugar aos novos e a banda entra em decadência. Por outro lado tinha morrido a mulher ao maestro e ele desde esse dia nunca mais fora o mesmo, agarrava-se à estante com um náufrago.
39.  A banda de música, que só regressava ao pôr-do-sol, depois do recolher do padroeiro e de dar três voltas à capela. E a história de Tiago Otero, casado com Desdébora, ciumento incorrigível, que faltava aos ensaios para ir expiar a mulher.
40.  Uma incursão pela história da música clássica, sem que ela se despegue da história da cultura em que esta está enovelada.
41.  O episódio de Plácido Trompa, que entrou na banda porque o pai pertencia à direcção e morria se o enxerto não subisse ao coreto, e que foi adquirindo diversas alcunhas. Quando adoeceu e caiu numa cama de hospital esteve recomendado por uma empregada de limpeza, a Angélica, com quem acabou por casar.
42.  Regresso à história da música clássica para falar de Verdi, um Shakespeare da música, que foi reprovado no acesso ao conservatório de Milão e acabou seu director.
43.  Surge um novo mestre para a banda, o João das Contas, quando Vila Nova da Azinheira mudou de nome e os músicos deixaram de ser fiéis à banda, e iam tocar noutras que lhes pagassem melhor.
44.  O narrador penitencia-se por não ter escrito a história da banda, mas argumenta que ela mais se lê por música que por palavras, gostaria que fosse a um tempo a tangível melodia do homem e a profunda harmonia do chão.
45.  João das Contas queria de facto escrever uma história da banda, mas como, se estava gravemente doente? Esquecer-se de si era o único esforço que lhe era permitido.
46.  Mas o seu desejo em si de escrever a história da banda, prenunciador, como que se enterrou no chão e ganhou raízes: Raios me partam se não hei-de escrever a história da banda.

c. Aspectos menos fáceis nesta leitura
            Trata-se da primeira obra de ficção de Manuel Córrego, grande apreciador e cultor do teatro, que lhe entrou pelas veias desde a mais tenra idade, e onde se tem distinguido especialmente. O autor segue pela via mais difícil, é sobretudo descritivo, o leitor actual mais comum, habituado a leituras frívolas que uma vez lidas são para esquecer, não encontra um herói em conflito a atravessar a espinha dorsal da obra, uma trama a criar expectativa do que irá acontecer, até que se atinja o clímax e se chegue ao final, em que o mistério será explicado. É a vivacidade do narrador que salva o romance, como já em A Cidade e as Serras, que se focaliza mais na apologia da natureza que no enredo intrincado. a beleza da narrativa salvara Eça de Queiroz.
            Numa primeira abordagem a acção vagueia pelo conto, pela tirada teatral, ainda que modelar, (que no palco é expressa pelos actores, não precisa de ser explicada no texto, ao contrário do romance); em incursões à história da música clássica, é memorialista, pode até parecer a alguns leitores um tanto dispersiva, saltando de personagem em personagem. Exige um substrato cultural, sobretudo de música erudita. Só no decorrer da leitura o leitor vai perceber que a banda de música será o eixo giratório de todas estas histórias, e elas primam pela autenticidade, são intensas, ricas em pormenores, e é no seu todo que podemos recuperar o global sentido da obra, que possui um significado mais vasto, tem a ver com a vida das pessoas, com a história daquela terra.

d. O que distingue esta obra
            Em primeiro lugar, e até pode parecer paradoxal, o que há aqui de mais original é o aspecto formal deste romance, que é apresentada ao leitor como que uma série de flashes sobre Vila Nova da Azinheira (a sua terra), com uma grande fidelidade, tirados de diversos ângulos e temporalidades, como se inspirasse na peça sinfónica Quadros de Uma Exposição de Modest Mussorgsky. Lendo toda a obra, aquilo que é dispersivo, de difícil manejamento num romance, sendo forte e modelar acaba por dar ao seu conjunto grande expressividade. A narrativa segue uma toada de sabor popular mas com rasgos aqui e ali de erudição, sobretudo musical, é um passeio tanto no tempo como no espaço àquela remota terra, algures no distrito de Aveiro, o leitor que a descubra. Allegro, adágio, largo, andante, presto, prestíssimo, allego ma non troppo serão alguns dos andamentos que percorrem todo este livro.
            A obra apesar de despretensiosa é complexa, tem mais do que um fio condutor, mais do que um patamar de análise: Assenta num estrato cultural, tecido sobretudo a partir da história da banda que o não chega a ser, da música e até de o teatro, actividades que o narrador confessa tê-lo salvo; até o sobrepor de um estrato social, descrevendo um cardápio precioso de histórias, usos e costumes daquele tempo, todo o evoluir das relações sociais, de que se destaca a libertação da mulher; ao estrato económico, descrevendo a formas de sobrevivência daquele povo, e a chegada da indústria com os” unhas negras”, o operariado; até por fim à política, com trechos sobre a distribuição do poder na vila, à sua emancipação administrativa, até à repressão policial que então se fazia sentir entre o povo, ou quando fala de eleições e do “General sem Medo”.
            Há um ritmo próprio do romance, como o de um concerto que esteja a ser executado. Está povoado de expressões idiomáticas de sabor popular. A música liga as pessoas, harmoniza a vida. Está presente na banda mas também na tuna, no grupo coral, numa terra que anda sempre à procura de maestro, de um grande timoneiro que a guie. E o autor, terminada porventura qualquer melodia discursiva, de quando em vez faz incursões pela música clássica, talvez há procura de alguma harmonia que momentaneamente lhe escasseie, como Beethoven fazia com os seus fortíssimos, em luta contra as suas Fúrias, ou talvez à procura da erudição, já que as peças normalmente tocadas se destinem a uma população não muito instruída.
            Mas diga-se para concluir, que aquilo que talvez mais distinga e enobreça este livro de Manuel Córrego será a utilização de uma linguagem vernácula, falada pelo povo, com toda a sua ingenuidade e até mordacidade, que o autor tenta restaurar com grande exactidão, da oralidade coloquial que reassume, do léxico, hoje em desuso que recupera, das maneiras de pensar, sentir e agir que aqui podemos ver ressuscitadas, e que ficarão à disposição das gerações vindouras, que já não as poderão experimentar, porque não nos banhamos duas vezes nas águas do mesmo rio, mas que poderão ver aqui magistralmente reconstruídas. É, enfim, um romance que nos leva a revisitar uma boa parte de Século XX num meio rural português a industrializar-se, em plena transformação, a não perder de ler.

Martz Inura
8/12/2015
Actualizado em 4/4/2017



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