HARUKI MURAKAMI
Crónica do Pássaro de
Corda
Tradução de Maria João Lourenço
Leya, SA (2006)
O
HOMEM
Haruki Murakami (村上春樹), romancista, contista
e tradutor japonês, nasceu em Quioto a 12 de janeiro de 1949. Filho de um
sacerdote budista e de uma comerciante, deles aprendeu os seus princípios de
vida e foi introduzido à literatura. Assim, quando ingressou na Universidade de
Waseda em Tóquio, escolheu a literatura e especializou-se no teatro grego. Impregnado
da cultura japonesa, deixou-se atrair pela cultura ocidental, apreciando
sobretudo a literatura e música. Não foi sem razão que abriu um bar de jazz em
Tóquio, do qual esteve à frente de 1974 a 1982. Em 1986 viria para a Europa,
onde viaja pela Itália e pela Grécia, e em 1991 parte para os Estados Unidos da
América, onde é nomeado professor associado na Universidade de Princeton. No
Japão só teria um primeiro êxito com Norwegian Wood (1987). É um escritor de
cultura diversificada, que gosta de dar conferências, de participar em
maratonas e triatlos, aberto ao mundo, embora o atraia a solidão. Têm-lhe sido
atribuídos diversos prémios. No estrangeiro: Prémio Franz Kafka (2006), Prémio
Jerusalém (2009); Prémio Catalunha (2011), Prémio de Literatura Hans Christian
Anderson (2016). No Japão: Prémio Tanizak (1986), e mais recentemente recebeu um dos
mais consagrados prémios do seu país, o Prémio Yomiuri (1996). Em 1995
regressou ao Japão, onde vive nas proximidades de Tóquio, na circunscrição de Oiso/Kanagawa.
Alguns dos seus livros já passaram a filme. Ninguém se admire que lhe atribuam o Prémio Nobre nos próximos anos.
A
OBRA
A obra de Haruki Murakami é bastante
extensa, sendo também importante para a Literatura Japonesa as suas traduções.
Citamos aqui apenas algumas das suas obras editadas em Português (no Brasil podem
ter outros títulos):
– Ouve a Canção do Vento (1979), em Portugal (2006)
– Em Busca do Carneiro Selvagem (1982), em Portugal (2007)
– O Elefante Evapora-se (1985), em Portugal (2010)
– Os Assaltos à Padaria (1987), em Portugal (2015)
– Norwegian Wood (1987), em Portugal (2004)
–
Dança, dança, dança (1988), em Portugal (2007)
– A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol (1992), em Portugal (2009)
– A Peregrinação do Rapaz sem Cor (1993), em Portugal (2011)
– Crónica do Pássaro de Corda (1995), em Portugal (2006)
– Sputnik, meu Amor (1999), em Portugal (2005)
– Kafka à Beira-mar (2002), em Portugal (2006)
– A Rapariga que Inventou um Sonho (2006), em Portugal (2008)
–
After Dark (2004), em Portugal (2008)
– Autorretrato do Escritor Quando Corre (2008), em Portugal (2009)
– IQ84 Livro I (2009), em Portugal (2012)
– IQ84 Livro II (2009), em Portugal (2013)
– IQ84 Livro III (2010), em Portugal (2013).
O ROMANCE Crónica do Pássaro de Corda
. PRINCIPAIS PERSONAGENS
–
Toru Okada: Marido de Kumiko, a
personagem principal do romance. Pessoa calma e curiosa, de natureza sensível.
Depois de deixar o emprego num escritório de advogados, vem para casa fazer o
trabalho doméstico. Estava farto de ser ali tratado como moço de recados. Consegue dar-se bem com as mulheres, com quem tem contactos
casuais.
–
Kumiko: A mulher de Toru Okada.
Trabalha numa editora de uma revista especializada em dietética e alimentação natural. O marido parece não lhe ligar grande coisa, e ela acaba
por fugir com um amante. Ao fim do romance reaparece, revelando alguns traumas
da juventude, de que culpa o seu irmão, Noboru Wataya.
–
Noboru Wataya: O irmão de Kumiko,
pessoa sem escrúpulos, ligado à política, Não gosta de Toru Okada, não tendo aprovado o ceu casamento com a irmã. Depois de
ter êxito na política morre num quarto de hospital. Estava muito ligado à vida,
e é a sua irmã que os desliga das máquinas a que estava ligado.
–
May Kasahara: Jovem de 16 anos,
talvez demasiado adulta para a sua idade, desintegrada da sociedade, que tem
conversas regulares com Toru Okada, mesmo por carta, depois de ter ido
estudar e trabalhar para uma fábrica de perucas na província.
–
Malta Kano: Uma senhora
endinheirada e fina, dotada de poderes mágicos, que trava conhecimento com Toru Okada,
tornando.se bastante influente no meio do romance. Era filha de um funcionário
japonês que teve de sair da Manchúria durante a guerra.
–
Creta Kano: Irmã de Malta Kano. Ainda
jovem era acometida de dores horrendas, decidindo-se suicidar aos vinte anos,
guindo um carro contra uma parede. Por sorte o muro era frágil, ela não morreu
e deixou de ter aquelas dores insuportáveis. Para pagar a dívida dos prejuízos
que deu, dedicou-se à prostituição.
–
Tenente Mamiya: Um senhor já idoso
que conta a Toru Okada as suas memórias da guerra na Manchúria, algumas de uma
crueldade atroz. Ficou sem um braço, que foi esmagado por um carro de combate. Um
oficial russo, Boris, o Esfolador, mandou-o atirar a um poço no deserto, sob
pena de ser abatido a tiro, pensando com isso que ele acabaria por morrer lá
dentro lentamente. O poço tinha areia, ele não morreu e um seu companheiro
conseguiu vir ali tirá-lo.
–
Noz-Moscada: Outra personagem
feminina, bastante rica e caprichosa, cheia de mistérios, que assume um nome
curioso, e vai interferir na vida de Toru Okada de forma um pouco kafkiana. Trata o filho como se ele fosse um dândi.
–
Canela: É filho de Noz-Moscada. Ficou
mudo a partir dos três anos. Veste-se como se fosse um modelo, cheio de distinção, para fazer a vontade à mãe,
a quem serve. Tem uma bela figura e faz-se entender por gestos.
–
Boris, o Esfolador: Oficial russo,
que mandou esfolar um soldado japonês, por um mongol. Mais tarde cai em
desgraça e vai parar a um campo de concentração. Contudo, a situação política
na União Soviética muda, e ele assume o comando do campo, onde ainda vai ter como
ajudante o tenente Mamiya.
. BREVE RESUMO DO ROMANCE
Livro I
La Gazza Ladra
Toru
Okada trabalhava num escritório de advogados. Não se sentia realizado e desempregou-se,
vindo para casa fazer o trabalho doméstico, enquanto a sua mulher, Kumiko,
trabalha numa revista de produtos dietéticos e alimentação natural. Estava naquele momento a vigiar o esparguete que tinha ao lume quando ouvia na rádio a abertura La Gazza é Ladra de Rossini. Aquele fundo musical era perfeito para cozinhar a massa. Tinha
em casa um gato, a que puseram o nome do seu cunhado, detestável, Noboru Wataya, que via tudo sob o prisma do interesse económico, e
com quem não se dava. A esposa ligou-lhe do escritório a saber dele.
Para
o tirar do seu sossego, uma mulher desconhecida faz-lhe chamadas eróticas. O gato
andava desaparecido, a mulher tinha-o em muita estimação, e ele vai à procura dele pelas imediações. Há por ali muitos alguns descampados onde se possa refugiar. Vai parar a uma casa abandonada, onde se depara com uma rapariga de
16 anos, fugida da escola, muito evoluída para a sua idade. Ela diz que aquela
é a Mansão dos Enforcados, que ali puseram termo à ida há uns tempos, nunca mais tendo
sossego quem ali viveu. E isto era mau presságio para gato.
Um
dia Kumiko chega tarde do trabalho, vem nervosa, e ele explica de modo simplista esta
insatisfação, pela menstruação que lhe está para vir. As mulheres regem-se pelo
ritmo da Lua, de 29 dias. Recebe no dia seguinte um telefonema de Malta Kano,
que tem qualidades mágicas de adivinho, ela talvez saiba dar-lhe indicações onde possa estar o gato. Combinam encontrarem-se num hotel, mas para ela o reconhecer, devia usar uma gravata às pintas, que afinal não encontrou. Todavia, ela mesmo assim reconheceu-o, talvez lhe soubesse dizer onde estava o gato.
Depois de conversarem leu-lhe a palma da mão.
Ao
regressar a casa nessa noite encontra Kumiko bem-humorada. Contudo, ela fica aborrecida
por ele não ter achado o gato. Não vê com bons olhos ele continuar ali em casa, e já o tinha exortado a arranjar um novo emprego. Falam do Sr. Honda, seu tio, especialista em
«possessão de espíritos» e qualidades de adivinho. Este foi combatente da
Segunda Guerra Mundial, e tomou parte da célebre batalha de Nomonhan, em que o
exército soviético destroçou as forças japonesas. Ficou surdo pelos rebentamentos que
lhe atordoaram os ouvidos. A sua cabeça está cheia de episódios terríveis de
guerra e ficou com receio da água.
Afinal
a gravata às pintas que tinha andado à procura estava na lavandaria. Toru Okada
vai de novo procurar o gato nas redondezas e dá de novo com a jovem, que afinal
se chama, May Kasahara. Ela teve um acidente, manqueja e tem um ferimento numa
vista. Anda fugida à escola. Procuram o gato por todo o lado, até num poço. Toru
Okada dá-lhe um rebuçado limão e conversam um pouco. Ela é um pouco adulta e trata-o com altivez.
Em
casa Kumiko e Toru Okada dão-se mais ou menos bem. Mas vive cada um para seu
lado. Ela foi criada pela avó, o irmão, Noboru Wataya, tinha a predileção dos
pais, e ela foi secundarizada na educação. Uma sua irmã já tinha morrido, ainda
não sabia bem por que razões. Noboru era um homem ambicioso e sem escrúpulos, e estava
a afirmar-se na política. Naquele momento passava pelo ecrã da televisão.
No
dia a seguir Toru Okada recebe um telefonema. Pensa ser de Malta Kano, mas
afinal é a sua irmã, Creta Kano. Esta conta-lhe a sua vida de sofrimento. Era
demasiado sensível à dor, desde as menstruações às dores de cabeça. Não as
podia suportar e decidiu suicidar-se aos 20 anos. Quando chegou ao dia alugou
um carro e foi com ele contra um muro, mas, azar o dela, que o muro era frágil
e ela levou-o à frente, sobrevivendo com uns arranhões. Sem saber como deixou
de sofrer as dores que a atormentavam, porém. agora tinha de pagar as dívidas e
dedicou-se à prostituição.
A
história de vida de Creta Kano perturbou Toru Okada, que tem um sonho com ela e
acaba por ter uma ejaculação involuntária. Sai de novo à procura do gato e dá
com a jovem May Kasahara, que trabalha numa loja de venda de perucas. Ainda
andou com ela a fazer um inquérito sobre carecas. Os dois conversam amenamente.
Ela é muito saída para a sua idade e parece gozar com ele.
Kumiko
uma noite chega tarde a casa e fala a Toru Okada do seu tio Honda, irmão da
mãe. Ele morrera há pouco tempo, e tinha-lhe deixado alguma coisa em
herança. Devia tê-lo em elevada estima para o distinguir com uma
recordação. Chegou a ser rico, mas teve um azar e perdeu tudo. Tivera dois
filhos, mas a mulher suicidara-se. Era uma pessoa infeliz. Segundo Kumiko sofria
de graves problemas psicológicos.
Três
dias mais tarde recebe do Sr. Tokutaro Mamiya um telefonema para ir receber as
recordações do Sr. Honda. O tenente Mamiya estivera de 1937 a 1949 na guerra. Fala
então da intervenção do Japão na China e na Manchúria, em que muitas vezes se
excedera em violência, atirando as pessoas para poços, e conta-lhe o episódio em
que a sua equipa de quatro homens envolvida em trabalhos geográficos foi
capturada pelo exército soviético. Para além dele próprio, o Sr. Honda, que
conseguira escapar à captura, de Hamano, que foi degolado no assalto ao
acampamento, e Yamamoto, que um oficial soviético mandou esfolar por um soldado
mongol para o forçar a revelar um segredo que ele nem sequer sabia. Narra aqui um episódio
de uma crueldade hedionda. Afinal, o Sr. Honda tinha deixado a Toru Okada uma
caixa vazia.
Livro II
O Pássaro Profeta
No dia em que foi falar com o
tenente Mamiya, e quando chegou a casa a mulher ainda não tinha vindo. E nem
veio. No outro dia ligou para o escritório onde ela trabalhava, e disseram-lhe
que ela não tinha comparecido ao trabalho. Ficou intrigado. Contacta com Malta
Kano e ela não lhe deu grandes esperanças de encontrar o gato, e nem a mulher. No
dia seguinte foi falar com May Kasahara, que o tratava por Pássaro de Korda,
que havia ali numa árvore. Telefona mais tarde para o escritório da mulher, e
ela continuava ausente. Era óbvio que tinha fugido com alguém.
Tem
um encontro a seguiu com Malta Kano e Noboru Wataya, que sempre foi contra o
seu casamento, e diz que ele lhe tem de dar o divórcio. Ele acusa a mulher de lhe
ser infiel e ter um amante. Saem dali os dois e ele tem de pagar a conta. De
regresso a casa encontra uma carta de tenente Mamiya que quase lhe pediu
desculpa por lhe ter contado aquela história do poço, que nunca contara a
ninguém, e de sobreviver à guerra, como previu o Sr. Honda. Está agastado e deseja-lhe
as maiores felicidades.
Toru
Okada tenta então encontrar-se com May Kasahara e depara-se num sonho com Creta
Kano. Finalmente a jovem liga-lhe, e tem com ele uma conversa atrevida. No dia
seguinte pega em roupa apropriada e vai até ao poço, ao qual desce, ficando lá
fundo para ter a noção do que é aquela solidão. Ali, depois de ter recordado o
seu passado com Kumiko, adormeceu, e quando acorda, a meia luz do poço tinha
adquirido um tom amarelado. Recordou o episódio do aborto que Kumiko acabou por
fazer, dos fracassos daquela relação. Continua no poço, e pelas cinco da manhã
vê estrelas no céu, repetindo a experiência do tenente Mamiya.
May
Kasahara sabe que ele está no poço e fecha-o com a tampa, deixando-a na mais
completa escuridão. Umas horas depois May Kasahara faz-lhe uma visita para
filosofar com ele de lá de cima e volta-lhe a fechar o poço com a tampa. Ele ainda esteve
ali mais algum tempo a dormir. Por fim, resolveu voltar a casa e quando foi à
caixa do correio soube definitivamente que Kumiko o tinha deixado, fugindo com
outro homem.
Recebeu
a seguir um telefonema de Malta Kano a dizer que a irmã tinha desaparecido. Ele
lembrou-se que tinha deixado a corda no poço e vai lá tirá-la, antes que alguém
se aproveite dela, e dá com Creta Kano lá no fundo em meditação: outra com a
mania dos poços. Foi dormir com Creta Kano. Lembrou-se de um seu tio, que era
rico, e o podia ajudar. Foi fazer a barba e notou que tinha na cara uma mancha.
Recordou Kumiko, deitou-se, sentiu algo estranho à sua volta e acendeu a luz.
Era Creta Kano que estava ali na cama, claro, Kumiko tinha-se ido embora. Ela
conta-lhe a sua história, que o impressionou bastante. Quer fazer sexo como ele
e levá-lo numa viagem até à ilha de Creta.
No
dia seguinte May Kasahara telefona-lhe a pedir que ele vá ter com ela. Já
juntos, ela confessa-lhe que também estivera no poço e que isso a transformara.
Depois daquela meditação profunda achou que o melhor era retornar à escola. Beijam-se
suavemente. É já a terceira pessoa a frequentar este poço, que parece atrair as
pessoas.
Toru Okada telefona para o tio, que
o vem visitar três dias depois. Ele observa-lhe a mancha na cara com
desconfiança. Vivem os dois em mundo diferentes, não conseguem dialogar. E a
seguir acontece algo inesperado. Ele vai atrás de uma mulher muito magra, que lhe
pergunta se tinha dinheiro, e dá consigo a ir atrás de um homem com um estojo
de guitarra, quando alguém lhe desfere um golpe na cabeça por detrás. Ele tinha
estudado artes marciais e consegue reagir, desferindo alguns golpes no homem, que
surpreendentemente não reage, é insensível à dor. Toru Okada vem para casa
estourado.
Livro III
O Caçador de Pássaros
Toru Okada mergulhou na mais
completa solidão, agora, ainda quem o importunava mais eram os familiares de Kumiko a
pedir que ele lhe desse o divórcio. Um tio de Noboru Wataya, a exercer
um cargo político, tinha morrido, e este ia de certeza disputar as eleições da circunscrição, que iam ser marcadas para breve em Niigata. Escreveu ao tenente Mamiya a dizer que,
tal como ele tem atração por poços. De repente aparece alguém que quer comprar
o terreno onde está o poço, e aquele terreno tem de ser dele.
Passou mais uns dias de monotonia, enquanto
na cara a sua mancha aumenta, para seu desgosto. Saiu de comboio, e já na
cidade aparece uma mulher a perguntar-lhe se precisava de dinheiro, ele disse
que oitenta milhões de ienes já davam. Ela despediu-se dele, dizendo para estar
no dia seguinte às quatro da tarde em determinado sítio. Com uma oferta tão
inusitada teve uma noite turbulenta.
Às quatro horas do dia seguinte aparece
no local. Depara-se com um jovem muito reservado que lhe dá uns óculos pretos e
o leva para o apartamento 602 de um hotel. Já lá dentro surgiu alguém que lhe
lambeu a mancha que tinha na cara, como May Kasahara já lhe fizera, e tem uma
ejaculação. Quando saiu do apartamento levava os pesados maços de dinheiro que lhe deram. Chegou
a casa e o gato, Noboru Wataya, tinha aparecido.
Recebe uns tempos depois uma carta
de May Kasahara muito longa a dizer que estivera um lugar horrível a tentar
prosseguir os estudos. Finalmente mudara de colégio, e a ele não lhe seria
muito difícil adivinhar qual. Toru Okada foi dar de comida ao gato, que estava
bastante magro e maltratado, e resolveu então mudar-lhe o nome para Cavala.
No
dia seguinte foi falar com a mulher e o jovem que o ajudaram. Ela apareceu
passava das três horas. A mulher, de aspeto distinto, lá lhe contou um pouco da
sua história de vida, no mínimo estranha. Chamava-se Noz-Moscada, e o rapaz bem
vestido que ele encontrou era afinal seu filho, e chamava-se Canela. Os nomes
das personagens são tirados das coisas.
Ela começa então a falar do mistério
da Mansão dos Enforcados, uma casa que tem andado de mão em mão, dando azar aos
seus moradores, que caíam em desgraça ao fim de algum tempo. Parece que pertencia agora a uma empresa
fantasma. Lê esta notícia no jornal. Anda agora com um taco de basebol e desce outra
vez ao poço. Continua a sua obsessão por poços e pela escuridão, na longa procura
de se encontrar.
Vai ter de novo com Noz Moscada, que
era filha de um funcionário que estivera na Manchúria durante a guerra. Ela conta-lhe
então a ordem que os soldados japoneses receberam de matar os leões, os, tigres
e outros animais do jardim zoológico da cidade, que eles executaram, só parando
quando se defrontaram com os elefantes, por as suas armas não terem calibre
para eles. E a seguir narra-lhe outro episódio de quando vinham para o Japão em
14 de agosto de 1945, e um submarino americano se aproximou do navio para o
afundar. Eles estavam ali indefesos, com dezenas de civis no convés, e sem boias
que chegassem para todos. Comunicaram o facto ao comandante americano, que disse
que isso não era problema dele. De repente o submarino americano submergiu. Já
estavam todos à espera de morrerem ali, mas nada aconteceu, o submarino americano
afastara-se sem qualquer razão aparente: o Japão tinha-se rendido
incondicionalmente àquela hora, só mais tarde o souberam.
A seguir recebe mais uma longa carta
de May Kasahara, que tinha ido parar a uma montanha, onde trabalhava numa
fábrica de perucas. O pássaro de corda deixara de cantar, alguém o tinha
levado. Volta-se então para revistas, onde se fala de magos e adivinhos, que
políticos e pessoas importantes, de elevada craveira intelectual, consultam.
Um dia Toru Okada chega a casa e encontra lá dentro uma pessoa estranha. Ficou intrigado, para não dizer amedrontado. E não
tinha forçado a porta. Depois a estranha personagem explicou-lhe que entrara
utilizando as chaves de Kumiko. Chama-se Ushikawa e vinha a mando do Sr. Noboru
Wataya. Este queria negociar um acordo sobre o casamento de Kumiko, sua irmã, mas este
rejeita-o liminarmente.
Segue-se o episódio em que Noz-Moscada
conta a Toru Okada como Canela deixou de falar aos três anos, e como aprendeu a
linguagem gestual. Ainda volta a falar da guerra, que tanto a marcou, pois, durante
a guerra esteve com o seu pai na Manchúria, vindo de lá com ele quando foram
repatriados. Toru Okada, com a cabeça a fumegar, resolve descer outra vez até ao poço
a fim de recuperar o seu equilíbrio mental.
Quando sai e volta a casa, regressa à leitura de uma
carta que May Kasahara lhe enviara com sabor a Pássaro de Corda. Ela procura recriar-nos a
dificuldades que os jovens têm em se integrar naquela sociedade. E de repente
surge ao telefone Ushikawa a falar-lhe de Kumiko e a fazer-lhe uma proposta
para comprar o terreno do poço por 80 milhões de ienes.
No capítulo seguinte volta-se para
Noz-Moscada, que tem um atelier na cidade. As senhoras ricas sentem-se mais
tranquilas e seguras quando compram vestidos caríssimos, ainda que eles, de
facto, um custo módico. Se ela lhes vendesse a roupa pelo seu
real valor aquelas senhoras iam ficar muito infelizes. O filho tem um Porsche 911, que conduz por pura
ostentação, pois não anda a mais de 60 quilómetros à hora com ele.
Outra vez uma carta de May Kasahara,
aborrecida com os pais. Há aqui um evidente conflito de gerações. Fala da
mancha, que se por um lado que acrescenta alguma coisa, por outro, tira. Ela
não se esquece dele, que se tornou para ela um seu confidente.
Toru Okada é confrontado outra vez
com Ushikawa, agora através de um computador. Ele conseguiu uma palavra-passe
para entrar na sua rede, e desconfia que lhe anda a fazer espionagem. É também um homem solitário, a mulher abandonou-o por ele ser
violento. Veio a mando de Noboru Wataya, de quem é empregado, o seu diálogo é infrutífero.
No capítulo seguinte volta ao contacto
com Noz-Moscada, está sempre a cruzar as suas histórias. Ela avança com a odisseia
que foi o seu regresso ao Japão, vinda da Manchúria, em que só por sorte não
foi torpedeada para o fundo dos mares. Em Tóquio, em vez de um curso universitário
que lhe estava destinado, preferiu um curso de alta costura. Casou mais tarde e
o seu marido foi assassinado. Mais uma tragédia a assombrar o romance.
Regressa à Mansão dos
Enforcados. Há um Mercedes SL 500 que ali entra misteriosamente. Pouco depois vai
para junto do computador de Canela, e, através de uma password dada por Ushikawa consegue falar com Kumiko. Dá-lhe uma
boa notícia: o gato aparecera. Não conseguem, contudo, resolver as suas
desavenças. Pede a Canela que lhe comprem todos os dias os jornais, que trazem
notícias de Noboru Wataya, e lê livros. No outro dia Canela saiu e quando
regressou trazia a mãe, Noz-Moscada, com uns sapatos de salto alto. Ele continuava
a ler um livro sobre Manchuchuko, que era o estado fantoche criado pelo Japão
na Mongólia. Olha para o computador e no ecrã lê: Acaba de aceder ao programa «Crónica do Pássaro de Corda». Bem, todos
nós somos um pouco pássaros de corda.
O programa pediu que ele
selecionasse os dígitos de 1 a 16, e ele escolheu o 8. Então é-lhe lá narrado o
massacre que os japoneses fizeram, depois de terem abatido os animais do jardim
zoológico, aos alunos da Academia Militar de Hsing-ching. Eles vinham vestidos
e numerados com fatos de uma equipa de basebol, porque não quiseram colaborar
com eles e mataram dois instrutores japoneses. Quatro já vinham mortos numa
carreta, e quatro ainda estavam vivos. Haviam de ser executados, mas, para se
poupar munições iam ser mortos à baioneta. Apenas o número 4 ia ser executado da mesma forma como
matou os japoneses, ou seja, com uma pancada de um taco de basebol na cabeça. Mas ele morreu logo, aquilo esteve mal parado.
Fica-se por aqui com este resumo, que
já vai longo, deixando o resto do livro ao leitor. Talvez depois destes episódio
horríveis de guerra, de uma violência demencial, lhe reste alguma curiosidade
em saber se Toru Okada recuperou Kumiko, se ainda há algum espaço para o amor
neste mundo Harukiano.
. APRECIAÇÃO GERAL
Numa sociedade ainda muito voltada
para o passado, a principal personagem do romance, Toru Okada, assume o papel doméstico
no lar. E mais para o fim do livro, Ushikawa, que trabalhava para Noboru
Wataya, reconhece que era um cobarde ao bater em casa na esposa, quando fora
não fazia mal a uma mosca. Toru Okada, recentemente desempregado, não se inibe,
pois, em vir para casa exercer funções naquela época consideradas femininas, e
sem pruridos. Dá-se bem com as mulheres, a quem trata com muita delicadeza, num
país em que os seus direitos estavam diminuídos, e se tornava necessário extinguir
os privilégios que davam aos primogénitos, como Noboru Wataya. Não sei como a Haruki Murakami ainda não deram o
Prémio Femina.
Crónica do Pássaro de Corda, a que
não é alheia a influência ocidental, não só nos estilos linguísticos, como nas referências
à sua cultura, desde a música clássica, referindo Rossini, à música de jazz, citando
Dave Mills, ou ligeira, quando fala de Percy Faith e Andy Williams. E essa
influência, que até poderá ser enriquecedora, ao misturar duas culturas, ainda é
mais notória na literatura, em que, para além da roupagem kafkiana que dá ao
romance, tem nele visíveis vestígios dos livros que traduziu para o Japonês, e de
outros que o terão seduzido mais, como os de Raymond Chandler. Contudo, nem por isso ele deixa de revelar ao leitor
pormenores curiosos da cultura japonesa, referindo os usos e costumes seguidos
naquele país, que o leitor ocidental apreciará.
O livro é quase um manifesto contra
a guerra e a violência, expondo sem reservas os seus exageros mais primários,
infra-humanos. Ataca todos os países envolvidos, mesmo os seus compatriotas
japoneses, que cometeram algumas atrocidades na Segunda Guerra Mundial, excedendo
as leis da guerra, já por si execráveis. O autor odeia o ódio, que não
aproveita a ninguém, nem mesmo a quem odeia. Aquele episódio em que descreve a
ação do oficial russo, Boris, o Esfolar, é de uma violência indescritível, e o mesmo se passa
com a execução insana dos animais no jardim zoológico, leões, tigres, lobos,
ursos, entre outros, e da bárbara execução da pena de morte de alguns instruendos
da Academia Militar de Hsing-ching.
Este romance está cheio de
referências aos adivinhos, ao espiritismo, aos poderes ocultos, aos fenómenos esotéricos.
Algumas personagens têm mesmo poderes divinatórios. Aquela obsessão pelo fundo
dos poços, onde as personagens mergulham por longos períodos para se
recuperarem psiquicamente, é sintomática. Existe uma casa amaldiçoada (a Mansão
dos Enforcados), um poço com propriedades curativas retemperantes, por quem as pessoas andam
obcecadas, uma fonte com água sagrada em Malta. O Sr. Honda, combatente da
Segunda Guerra Mundial, possui qualidades premonitórias. Noz-Moscada é
clarividente, vê mesmo o futuro através da palma da mão. O romance cultiva este
tipo de crenças e espiritualidades.
O autor, usando uma linguagem solta,
por vezes coloquial, diverge de tema de capítulo para capítulo, indo da sua relação
com a sua esposa, Kumiko, aos seus encontros com a adolescente May Kasahara, com
Malta Cano ou Creta Cano, e, por fim, com Noz-Moscada ou Canela. Ele
pretendente diversificar a sua narrativa, ao mesmo tempo que lhe introduz
histórias laterais, que têm pouco a ver com o tema principal, o que torna o
romance arrastado nalgumas das suas partes. O veio da ação fica submerso por histórias secundárias. As personagens têm quase todas um trauma que as transformou: o
Sr. Honda perdeu a alegria de viver na guerra; May Kasahara vê que qualquer élan
dentro das pessoas; Kumiko sofreu abusos do irmão; Malta Kano tem marcas psicológicas
da guerra da Manchúria, Creta Kano perdeu algo fisicamente que a marcou; Canela
é mudo; o próprio Toru Okada tem uma mancha intrigante na cara. As personagens
têm quase todas problemas de identidade por resolver.
Não é dar uma no cravo e outra na
ferradura, é ser justo. No cinema, onde é mais fácil analisar as coisas, uma
longa-metragem pode ser um bom filme, ter a melhor realização, o melhor ator
principal, mas o argumento ser trivial, os seus atores secundários serem
medianos, a fotografia ser apenas boa, e a sonorização sofrível. É normalmente
isto que acontece. Pois aqui neste livro de Haruki Murakami, se ele tem as
virtudes de que já falámos, tem outros aspetos menos bons. Ele prolongou quanto
a nós demasiado a narrativa, que distribuiu por três livros, perdendo-se em
cenas um tanto em laterais ao eixo da novela. No Japão, havendo muitos críticos que o
reconhecem, há outros que acham que está supervalorizado. Consideram-no demasiado
seguidista, colando-se à literatura ocidental, até nos títulos que
dá aos seus livros, fazendo uma narrativa ao gosto da época para produzir best-sellers. De facto, neste livro as relações, normalmente iniciadas por telefone, parecem por vezes uma tanto artificiais. Ao romance falta unidade de conteúdo,
dispersa-se por um rosário de histórias que têm pouco a ver
com a relação entre Toru Okada e Kumiko, que acaba por ficar pouco definida.
Fora estes pequenos apartes, o autor foi muito ambicioso neste livro, consumando autênticos malabarismos literários. Parece estar a fazer já um ensaio para a sua trilogia do IQ84, que iria publicar a partir de 2012. Em música a narrativa começa por ser inicialmente estereofónica, com a oposição entre Toru Okada e Kumiko; depois trifónica, quando introduz a jovem rebelde May Kasahara, e, por fim, quadrifónica, quando acrescenta a neogótica Noz-Moscada, recheada de cenas marginais. Os episódios da guerra, hiperrealistas, são de um arroubo extraordinária. Quando mistura a lógica obtusa de Kafka com o humor de Dostoievski, tratando com muita seriedade situações completamente esdrúxulas, implausíveis, é delicioso. Bem, aquela mania que deu às personagens de combater o stress, descendo para o fundo de um poço é no mínimo curiosa. Crónica dos Pássaro de Corda deixa atrás de si muitas mensagens ocultas, sensibiliza-nos para a libertação da mulher, para a estupidez da guerra, induz-nos à tolerância, faz-nos uma visita guiada ao Japão. É um romance com muito interesse.
Fora estes pequenos apartes, o autor foi muito ambicioso neste livro, consumando autênticos malabarismos literários. Parece estar a fazer já um ensaio para a sua trilogia do IQ84, que iria publicar a partir de 2012. Em música a narrativa começa por ser inicialmente estereofónica, com a oposição entre Toru Okada e Kumiko; depois trifónica, quando introduz a jovem rebelde May Kasahara, e, por fim, quadrifónica, quando acrescenta a neogótica Noz-Moscada, recheada de cenas marginais. Os episódios da guerra, hiperrealistas, são de um arroubo extraordinária. Quando mistura a lógica obtusa de Kafka com o humor de Dostoievski, tratando com muita seriedade situações completamente esdrúxulas, implausíveis, é delicioso. Bem, aquela mania que deu às personagens de combater o stress, descendo para o fundo de um poço é no mínimo curiosa. Crónica dos Pássaro de Corda deixa atrás de si muitas mensagens ocultas, sensibiliza-nos para a libertação da mulher, para a estupidez da guerra, induz-nos à tolerância, faz-nos uma visita guiada ao Japão. É um romance com muito interesse.
Martz Inura
17/04/2019
Excelente análise crítica, no global adoro este livro mas de facto no que perde um pouco é na profundidade das relações humanas de parceria. Sobretudo a relação Toru Okada - Kumiko, que acaba por ser o principal eixo do livro, e que acaba por desiludir um pouco no fim, no sentido em que poderia ter ter tido uma outra profundidade narrativa. Os personagens até são bem caracterizados e vão tendo atitudes imprevisíveis que acabam por ser parcialmente compreensíveis mas no fim sente-se que ficaram algumas pontas soltas. Como se no fim o Murakami se tivesse apressado para acabar de vez com o livro. A mistura de culturas literárias (sobretudo os cenários kafkianos misturados com humor Dostoievskiano) num registo simples e fluído, a incessante e penosa busca dos personagens em encontrarem-se a si próprios das formas mais estranhas e enigmáticas, e o relato hiperrealista de episódios brutais da segunda guerra Mundial elevam de facto este romance para um nível acima da média.
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