DOSTOIÉVSKI
Crime
e Castigo
Excelente
tradução (a partir do Russo) de Nina Guerra e Filipe Guerra
EDITORIAL
PRESENÇA (4ª edição, 2006) (512 páginas)
O AUTOR
Fiódor Mikhailovtch
Dostoiévski nasceu em Moscovo em 30 de outubro de 1821, e faleceu em São
Petersburgo em 11 de novembro de 1881. Ainda jovem perdeu a mãe, e pouco depois
o pai, presumindo-se que assassinado pelos servos, revoltados contra o maneira despótica
como eram tratados. Tais factos pesaram muito na sua mente. Em 1849, quando
publicava um jornal, é preso sob a acusação de conspirar contra Nicolau I, e
condenado ao fuzilamento, de que foi salvo in extremis, quando se
preparavam para disparar sobre ele, já amarrado a um poste. A pena foi comutada
pelo czar para trabalhos forçados na Sibéria, mas o czar quis que esta execução
fosse simulada para lhe pregar um bom susto. Este terrível episódio é descrito em O Idiota. Dostoiévski
defendia os ideais cristãos e a igreja ortodoxa russa. Ele sofreu na sua carne
a dor física, e na sua alma, o desprezo, o abandono e a rejeição. Sofria de
epilepsia, doença que naquele tempo era olhada com repúdio e superstição. Teve
uma curta experiência no exército imperial, que teve de abandonar devido ao seu
estado de saúde. Viajou bastante pela Europa. Casou duas vezes. Era viciado no
jogo. Com o tempo amadureceu, o seu espírito tornou-se mais rico e introspectivo, reconheceu a importância da religião no povo russo, sobretudo no mais humilde, aproximou-se de Deus, deixou-se muitas vezes inspirar por Cristo.
OBRA
A
obra de Dostoiévski é constituída por mais de uma dezena de romances, alguns
deles volumosos, como o presente, e outras tantas novelas e contos, com que
recriou a Rússia do seu tempo. Deixou vestígios para o romance existencialista.
Criou, subjacente à parte romanesca, uma filosofia que desse sentido à vida. Como
escritor ele teve influência na Literatura que se seguiu, e na Psicologia,
Filosofia e até Teologia. Iniciado em 1846 com Gente Pobre, ele foi escrevendo
romances cada vez mais importantes. Vejamos as suas obras principais:
Gente
Pobre (1846),
O
Duplo (1846),
Noites
Brancas (1848),
Humilhados
e Ofendidos (1861),
Recordações
da Casa dos Mortos (1862),
Memórias
do Submundo (1862),
Crime
e Castigo (1866),
O
Jogador (1867),
O
Idiota (1869),
O
Eterno Marido (1870),
Os Possessos (1872), (Os Demónios, Brasil)
O
Adolescente (1875),
Os Irmãos Karamazov (1881).
O
ROMANCE Crime e Castigo
PERSONAGENS
Rodion
Románitch Raskólnikov (Ródia):
O protagonista de o crime e de o castigo. Ex-estudante de direito, filho de Pulkhéria
Aleksandrovna e irmão de Dúnia. Veio estudar há três anos para Petersburgo,
mas teve de abandonar os estudos por lhe acabarem os recursos. Vive pobremente
num quarto alugado. Professa a teoria de que as pessoas extraordinárias podem
estar acima das leis, tal como Napoleão Bonaparte, que, com as suas guerras,
para o mundo avançar, tinha contribuído para a ocorrência de milhares de
mortos, e era considerado um herói. Mais tarde, baseado nesta teoria assassina Aliona
Ivánovna e sua meia-irmã Lisaveta. Contudo, é capaz de gestos nobres, como no
romance depois se verá. É alto, de belos olhos negros, uma figura atraente, de
quem à partida ninguém suspeitaria.
Dmítri
Procóvitch Razumíkhin (Vrazumíkhin):
Amigo de Raskólnikov, estudante como ele, mas, mais terra a terra. Conseguiu
prosseguir os estudos dando explicações. É uma pessoa trabalhadora, amigável e
nobre. É ele que tenta apoiar Raskólnikov nas suas dificuldades. Mais tarde
apaixona-se pela sua irmã, Dúnia, com quem vem a casar.
Zóssimov: Um médico amigo de Razumíkhin,
que, a pedido deste vai tratar de Raskólnikov. Tem uma personalidade
pachorrenta. Está a estudar para cirurgião, mas interessa-se muito por doenças
mentais. Apesar de ser irredutível nas suas decisões, consideram-no um bom
médico.
Nastássia: É criada na casa de Prascóvia Pavlovna,
hospedaria onde Raskólnikov alugou um quarto, sendo muito prestável para ele. Dá
para entender que o amava.
Pulkhéria
Aleksándrovna Raskólnikova.
Mãe de Ródion (Raskólnikov) e de Dúnia, senhora viúva, ainda bela, que procura
manter a sua dignidade. Vive com dificuldade para suportar a família e pensa
casar a filha com um homem de posses, que os possa tirar da miséria, vindo por
causa disso a Petersburgo.
Dúnia
(Dunietchka) ou Advótia Románovna Raskólnikova: Filha de Pulkhéria Aleksandrovna e
irmã de Raskólnikov, sobre quem este exerce alguma influência. É dotada de
uma grande beleza, culta, orgulhosa, de forte personalidade. Foi precetora em
que casa de Svidrigáliov, e, apesar dos boatos entre ela e o patrão, continua a
ser muito pretendida.
Semion
Zakhárovich Marmeládov:
Um ex-oficial alcoólico, de cerca de 50 anos, que não consegue recuperar do
seu maldito vício, apesar de ter sido ajudado. Em estado de desespero atira-se para
baixo de uma caleche, morrendo como resultado do acidente. Tem uma filha do
anterior casamento, Sónia.
Katerina
Ivánovna Marmeládovna:
Parece ter tido nascimento nobre, tem 30 anos, é inteligente e educada. Depois
de enviuvar voltou a casar com Semion Marmeládov, levando três filhos do
primeiro casamento. Com o novo marido no desemprego, por ser alcoólatra, passa
por grandes dificuldades. É tísica e acaba por enlouquecer e morrer depois de
uma queda.
Sónia
Marmeládovna, ou Sófia Semionóvna, (Sonietchka): Filha de Marmeládov, que cai na
prostituição para sustentar a família do pai, casado com Katerina Ivánovna. Ela
é vítima da sociedade, está no escalão mais baixo da miséria humana, a quem
Ralkólnikov se vai revelar, para partilharem os dois das mesmas desgraças.
Arkadi
Ivánovitch Svidrigáilov:
Marido de Marfa Petrovna, e patrão de Dúnia, sobre quem faz assédio sexual, a
ponto dela se despedir. É um depravado sexual, de quem se suspeita ter matado a
mulher à pancada ou mesmo envenenado. Está apaixonado por Dúnia, mas ela
conhece-o bem, e rejeita-o. Ele faz de tudo para a reconquistar, até chantagem.
Desesperado, depois de alguns atos nobres, suicida-se com um tiro nas têmporas
Marfa
Petrovna Svidrigáliovna:
Viúva que se apaixona por Lújin, e o vai resgatar à prisão por dívidas ao jogo.
Tolera o marido infiel perante um acordo entre os dois, que nem sempre
funciona. É muito emocional, dá-se mal com o marido, que a espanca
frequentemente. Morre aos 55 anos em circunstância suspeitas.
Piotr
Petróvitch Lújin: Homem
já de meia idade, de posses, funcionário de um tribunal. Ama Dúnia, mas Raskólnikov
(Rodion) opõe-se a este casamento. Pensa estabelecer-se em Petersburgo para
casar com a pobre Dúnia, mostrar-se seu protetor e a ter como esposa dedicada e
submissa. É calculista, gananciosa, um espírito mesquinho que acaba por
desgostar não só Dúnia como a mãe, Katerina Ivánovna. O seu casamento com Dúnia
vai por água abaixo.
Andrei
Semionovitch Lebeziátnikov:
Amigo de Lújin, que foi seu tutor. Trabalha num ministério. Mostra ter ideias
progressistas, faz propaganda do comunismo, da igualdade no género, mas na
prática o seu comportamento nem sempre se coaduna com aquilo que apregoa.
Aliona
Ivánovna: Uma
velha de 60 anos que gere uma casa de penhores. Era viúva de um secretário de
colégio. Áspera a atender os clientes, é gananciosa e aparentemente insensível
à miséria humana. Trata a irmã como serva, não a considerando sequer sua
herdeira. Aproveita-se da necessidade dos clientes para lhes ficar com os bens
por tuta e meia. Vai ser assassinada por Raskólnikov.
Lisaveta
Ivánovna: Um jovem
simples, feia, meia-irmã de Aliona Ivánovna. Tinha um lugar o mercado e chegou
a andar a vender de porta em porta. A sua irmã, valendo-se do seu retardamento
mental usava-a como serva. Era gentil e humilde, aceitava a vida tal como ela
era, sem qualquer queixume. Viu o crime anterior e vai ser assassinada por
Raskólnikov.
Amália
Fiódorovna Lippevechsel (Amália Pavlova): dona do prédio onde vivia a família Marmeládov. É de
ascendência germânica, estúpida e gananciosa. Tem dificuldade em falar russo.
Katerina Ivánovna chamou-lhe Amália Lwidigovna, o que muito a ofendeu, dando
origem a uma grande discussão.
Praskóvia
Pávlovna: Dona do
prédio onde vivia Raskólnikov, que chegou a quase comprometer-se em casar com a
filha dela, mas que por fim recusou. Mais tarde ela chamou-o ao tribunal por
ele não lhe pagar uma letra nem sair do quarto.
Porfiri
Petróvitch: Pessoa
já de idade, gorda e calma, juiz de instrução, que vai investigar o crime
cometido, tecendo uma longa teia de circunstâncias para enredar Raskólnikov. A
sua fala é melíflua, até parece estar ali para proteger o acusado, para de
repente lhe lançar uma pergunta traiçoeira que o vá obrigar a revelar-se. Tem
35 anos, é inteligente e astuto, mas apesar disso, nobre. Aconselha Raskólnikov
a fazer uma confissão espontânea para beneficiar de atenuantes.
Iliá
Petróvitch (O Pólvora): Assistente
de Nikodim Formitch e com ele muito relacionado pelas razões atrás apontadas. É
casado e já com filhos. Considera-se primeiramente um cidadão e só depois um
oficial de justiça. Apesar de muito emotivo, por vezes explosivo, é no fundo
uma pessoa de bom coração. É a ele que ao fim Raskólnikov vem confessar o seu
crime.
Nikodim
Nicodemus Formich:
Inspetor trimestral da área em que Raskólnikov vivia. Era uma pessoa
inteligente e bem-humorada. Está muito relacionado com Iliá Petróvitch, por ter
servido no mesmo regimento em que ele prestou serviço. É ele que ouve
Raskólnikov na esquadra a primeira vez que ele lá foi por causa da letra
protestada.
Zamiótov
Aleksandrov Grigorievitch:
Chefe de secretaria onde Razumíkhin trabalha. É um jovem de 22 anos, que se
veste à moda e usa anéis. Zóssimov acusa-o de aceitar subornos no local de
trabalho. Tem uma conversa interessante com Razumíkhin e Raskólnikov sobre o
assassinato das duas irmãs.
Afanassi
Ivánovitch Vakhrúchin:
Amigo do pai de Raskólnikov, que empresta dinheiro à mãe.
Semion
Semiónovich: Pessoa
a quem Pulkhéria Raskólnikova recorria para enviar dinheiro ao filho
Raskólnikov.
Aleksei Semiónovich: Homem que trabalha para o
comerciante Chelopáiev
Nikolai
Dimiéntiev (Mikolka):
Pintor inclinado ao misticismo, que se acusou de ter matado as duas irmãs para
se vitimizar e arcar com as responsabilidades do mundo.
Mitka: Pintor, colega de Nikolai.
Koch: Jovem que vinha a casa de Aliona
Ivánovna para penhorar qualquer coisa, quando ela foi morta, e se viu
inesperadamente envolvido naquele assassinato.
Crime e Castigo foi adaptado ao cinema em 1998 por Joseph Sargent. Com Patrick Dempsey como Raskólnikon, Ben Kingsley como Porfiri, Julie Delphy como Sónia, e Eddie Marsan como Dmítri Razumíkhin.
O livro, porém, ainda iria ser sujeito a novas adaptações, como a de 2002, de Menahem Golan. BREVE RESUMO
I PARTE
Raskólnikov
é um ex-estudante a viver em Petersburgo nas águas furtadas de um prédio, que
mais parecia um armário. Desistiu do curso de direito por
não ter recursos. Está com dificuldades de dinheiro e vai empenhar um relógio
de prata a uma velha prestamista, chamada Aliona Ivánovna. Ele observa os seus procedimentos.
Ela tem um aspeto repugnante, é baixa e suja. Depois de alguma discussão, ela
deu-lhe um rublo e quinze pelo relógio, uma ridicularia. Saiu dali e foi para
uma taberna da cidade, onde se depara com dois bêbedos. É um jovem isolado, que
perdeu o rumo à vida, revoltado com a sociedade, apagado e triste.
Na
taberna acaba por ouvir a conversa de um bêbado incorrigível – trata-se de Marmeládov.
Ele desabafa para toda a gente os seus desgostos, sendo chacoteado por
Lebeziátnikov. Casou com Katerina Ivánovna, uma mulher com três filhos, de 3, 5
e 9 anos de idade. E ele próprio levou consigo também uma filha, que anda na
vida, chamada – Sónia Semiódovna. Agora vive numa casa alugada à senhora Amália
Fiódorovna Lippewechsel. Um bom homem, Ivan Afanássievitch, tentou-o ajudar e
arranjou-lhe um emprego, mas ele recaiu no vício, e não o pôde segurar. Traçou
um cenário de vida terrível, sendo ridicularizado pelos presentes.
Raskólnikov
regressa à sua pensão miserável. Recebe-o a criada Nastássia, que o trata com
delicadeza, talvez amor. Ela comunica-lhe que a patroa, Prascóvia Pavlóvna vai fazer
queixa dele à polícia, porque ele não paga o aluguer nem sai do quarto. Recebe,
entretanto, uma carta da mãe, chorosa, a viver em dificuldades, que o trata por
Ródia, dizendo que os 15 rublos que lhe enviara há quatro meses lhe foram
emprestados por Afanássi Ivánovitch Vakhrúchin. Conta-lhe que a irmã Advótia
Ivánovna (Dúnia) (Dunetchka) vai casar com Piotr Petróvitch Lújin. Saiu de casa
banhado em lágrimas, indo dar uma volta pela avenida Vassílievski.
Na
rua pensa na carta da mãe e todo aquele estendal de misérias. Ele não concorda
com o casamento da irmã com o senhor Lújin, um homem de posses, mas mesquinho –
um recurso para as tirar da miséria. Na rua encontra uma rapariga ainda jovem,
com o vestido esfarrapado, meia bêbada. Atrás dela vem Svidrigáilov, com o propósito
de a proteger, mas sabia-se lá para quê. A polícia tomou conta da ocorrência.
Raskólnikov não gostava nada deste Svidrigáliov, casado com Marfa Petrovna, que
inquietara a irmã quando ela fora lá perceptora. Chegam a brigar um com o outro,
e é a polícia que os aparta. Segue então em direção a casa do um seu amigo
Ramuzíkhin, de quem fora condiscípulo.
Ele
andava há dias para falar com Ramuzíkhin para lhe arranjar algum trabalho, umas
explicações, ou qualquer coisa do género. Mas tencionava fazê-lo só depois daquilo, e foi adiando. Esta ideia
fazia-o sentir calafrios. Foi dormir e teve um sonho terrível com a sua avó.
Pára, e pensa naquilo que tem de fazer, algo de terrível, para o qual
julga não ter coragem. Encontra na praça Sennaia, Lisaveta, meia-irmã da viúva
Aliona Ivánovna. Ele pensa e repensa na ocasião mais propícia para fazer aquilo que tinha em mente, algo de terrível.
Precisava de encontrar a viúva sozinha em casa para lhe desferir o golpe.
Raskólnikov
andava a informar-se da sua vítima, que estava muito por casa. Soubera que
Lisaveta fora sondada por uma família, caída na desgraça, para vender coisas de
porta a porta à comissão. E ela tinha jeito para isso, falava pouco, era
submissa e assustadiça. Durante muito tempo não precisara de recorrer à velha agiota,
dava explicações, mas agora as coisas mudaram e foram lá penhorar um relógio de
prata do pai e um anel de ouro com três pedrinhas, que lhe oferecera a irmã.
Entra numa taberna e vê um oficial do exército e um estudante a referirem-se a
Aliona Ivánovna como uma agiota desprezível, viúva de um secretário de colégio.
O estudante considerava a velha vil e sem préstimo, com cuja morte não se
perdia nada. Isto mais reforçou as suas convicções. Aquela velha não valia um
piolho, mas era preciso coragem para fazer aquilo,
que não era sequer um crime. Ele tinha de testar nela os seus princípios. As coisas que tinha em mente proporcionaram-se no
meio de uma descarga de emoções descontroladas. Teria que levar dali um machado
sem que Nastássia desse por isso, e escondê-lo num casacão até casa da velha.
Seguiu para local, ainda não muito convencido do ato que ia fazer, aquilo
talvez fosse apenas um ensaio.
Consegue
chegar ao apartamento de Aliona Ivánovna. Ela ainda demorou a abrir-lhe a
porta, estava desconfiada. Ele teve de a pressionar, era para penhorar uma cigarreira
de prata. A mulher analisa peça, que comenta depreciativamente, inclina-se para
a ver melhor, e ele aproveita para lhe dar uma machadada no cocuruto da cabeça,
e a seguir outra. Ela cai inanimada. Ele vai ao quarto dela tentar roubar os
seus valores, numa cómoda e depois numa arca debaixo da cama, de onde leva os
artigos mais valiosos. Entretanto, aconteceu uma coisa que não esperava, chegou
Lisaveta, ele corre para ela, que não estava à espera daquela agressividade, e
ele atinge-a com o machado, rachando-lhe o crânio. Quer sair, mas aprece à
porta para entrar Koch e um desconhecido. Deviam vir penhorar coisas. Estranham
não estar ali ninguém e tentam forçar a porta, mas Raskólnikov trancou-a e
protege-a. Há ali algo suspeito e eles vão chamar um guarda. Ele espera um
pouco, e quando se certificou que eles estavam longe desceu. Eles, entretanto,
voltaram com o guarda, e ele refugia-se num andar mais abaixo, que estava em
obras. Deixa-os subir e segue para casa. Está fora de si, sem capacidade de se
concentrar em nada.
II
PARTE
Raskólnikov
passa a noite sobressaltado. Aquele crime atordoa-lhe a cabeça. De manhã
aparece Nastássia com um aviso para ele ir à polícia, e ainda fica mais
inquieto. Ele pensa o pior e vai lá tresloucado. Chega à esquadra, e, contra as
suas perspetivas, não lhe ligam nenhuma, afinal, o caso que o trazia ali não
devia ser assim tão grave. Antes de o atenderem chamaram Luísa Ivánovna, uma
dama espampanante que andava na vida. Há um grande rebuliço, e ele desmaia. É
atendido a seguir pelo secretário, Iliá Petrovitch, e pelo inspetor Nikodim
Formich que o informa que tem uma letra a pagar a certo indivíduo, que assinara
à sua senhoria, a quem não pagava o quarto nem saía. O inspetor, vendo a sua
fragilidade, até o anima, dizendo que a pobreza não é nenhuma vergonha.
Enquanto isto acontece, Raskólnikov ouve uma conversa entre o secretário e o
inspetor sobre o assassínio da velha, em que não se fazia nenhuma referência à
sua pessoa, porém, os dois suspeitos que encontraram iam ser libertados por
falta de provas. Bem, talvez desconfiassem dele.
Chega
a casa, e a primeira ideia que lhe veio à cabeça foi a de que a tivessem vindo
ali revistá-la. Pega nas peças roubadas, que tinha escondido atrás do papel de
parede, mete-as nos bolsos do sobretudo e vai até ao rio escondê-las em melhor
sítio. Pensa em enterrá-las numa ilha, mas ainda é longe, e passa por uma casa
abandonada e esconde-as debaixo de uma pedra, mesmo o porta-moedas, que nem
sequer abriu. Saiu dali aterrado de medo e vai falar com o seu velho amigo,
antigo colega de estudos, Razumíkhin. Mas continua tão perturbado que os dois
mal dialogam. Volta para casa e a criada Nastássia recebe-o amavelmente.
Pergunta-lhe se ele vai comer e ele pede-lhe apenas água.
Raskólnikov
sente-se esmagado pelo sentimento de culpa e adoece, fica num estado de semi-consciência.
Nastássia, que lhe tem alguma afeição, trata dele com desvelo. Razumíkhin sabe
do caso e manda ali o médico Zóssimov tratar dele por duas vezes. Quando o vê
mais recuperado, para o animar diz-lhe que resgatou a letra e ficou seu fiador.
Traz-lhe ainda 35 rublos, enviados pela mãe por Afanássi Vachrúchin. Pensava
ele que eram estes os seus problemas. Tendo-o visto tão desmazelado da última
vez trouxe-lhe roupa nova e um boné. Pouco depois chegava mais uma vez Zóssimov
para o tratar.
Zóssimov,
alto e gordo, de 37 anos de idade, estava em cirurgia, mas interessava-se por
doenças mentais. Está ali a tratar Raskólnikov. Razumíkhin Fala com ele de
Zamiótov, que o médico condenou por aceitar subornos. Ao primeiro não lhe
interessam estas críticas, que atribuía à sua juventude, e aproveita para lhe
falar do assassinato brutal de Aliona Ivánovna, a que Nastássia acrescentou Lisaveta.
Raskólnikov mostrou-se admirado por ela também ter sido assassinada. Razumíkhin
conta-lhe que Koch e Petriakov foram considerados suspeitos, e que tinham de
ajudar este último, pois não o imaginava a fazer uma coisa daquelas. Tiveram
sorte que aparecera Nikolai, trolha no prédio, a trabalhar num andar mais
baixo, que fora apanhado com uns brincos penhorados. Raskólnikov só então percebe
que os deve ter deixado lá cair. Chega, entretanto, um desconhecido que interrompe
a conversa.
Quem
tinha chegado? Bem, Piotr Petrovitch Lújin, um homem de 45 anos, noivo de sua
irmã, Dúnia. Diz ter alugado um escritório em Petersburgo. Pensa mudar-se para esta
cidade. Estão ali em conversa, para além dele, Raskólnikov, Razumíkhin,
Zóssimov e Nastássia. Não demorou que começassem a filosofar sobre a moral, o
sentido prático da dignidade, o progresso e o aumento do crime na sociedade.
Raskólnikov mostra-se desagradado com a conversa e proíbe Lújin de falar da sua
irmã. Razumíkhin e Zóssimov constatam que o crime na cidade o incomoda e saem.
Nastássia oferece-lhe chá, mas ele rejeita-o, o que quer é estar sozinho.
Raskólnikov
sente-se melhor, veste-se e vai até ao palácio cristal, onde gasta dinheiro em
bebidas e mulheres, e dá chorudas gorjetas. Manda vir pelo empregado os jornais
dos últimos cinco dias. Aparece ali Zamiótov e põe a hipótese de quem terá sido
o assassino de Aliona e Lisaveta. Ele não se mostra muito interessado em falar
nisso. Vai a sair e encontra-se com Razumíkhin, que fica escandalizado por o
ver ali. Depois de uma conversa estúpida segue para a ponte N, onde uma mulher
se tinha deitado a afogar. Conseguiram salvá-la mais à frente. Sente-se atraído
pelo local do crime e vai lá, encontrando Mitka e Nikolai (Mikolka). Eles
perguntam o que ele quer dali e ele reponde que quer alugar o andar. Quando
sai, na rua é tomado por suspeito. Estão a pensar em o levar à esquadra, mas
alguém o considera um mariolas, um intrujão com quem não vale a pena perder
tempo. E assim consegue desaparecer dali.
Vai
a caminho de casa e dá com um acidente na rua: uma caleche tinha atropelado Semion
Zakhárovith Marmeládov, o bêbado com quem tinha falado na taberna. Ajuda a
levá-lo para casa, onde está a mulher, Katerina Ivánovna. Ele está mal, a ponto
de chamarem o médico e o padre. Por fim morre, depois de ter pedido perdão à
mulher e à filha pela miséria que as obrigou a passar. A mulher, para além da
enteada, filha de Marmeládov, tem mais três filhos do primeiro casamento. Ele
deixa lá todo o dinheiro que recebeu da mãe, 25 rublos, para se fazer o funeral.
Segue para casa de Razumíkhin, a dois passos dali, onde conversam sobre Zamiótov
e Petróvitch. Confessa que deu o dinheiro da mãe para acudir a tanta miséria.
Seguem para casa de Raskólnikov, e quem está ali? Para além de Nastássia,
Pulkhéria Aleksándrovna, e a filha, Dúnia. A mãe e a irmã avançam para ele para
o abraçar.
III
PARTE
Raskólnikov
está perturbado e não recebe com a esperada alegria a mãe e a irmã, Dúnia,
também chamada Advótia Ivánovna. Elas falam do casamento com Lújin, e ele
rejeita-o liminarmente, perante o espanto de ambas. Depois daquele encontro mal
conseguido, Razumíkhin vai levar as duas à
pensão onde estavam alojadas. Ao sair da casa, um pouco embriagado, diz uma
série de disparates, mas sente-se subitamente tocado pela beleza de Dúnia e não
sabe como desculpar-se. Fala da senhoria, Práscovia Pávlovna, que deve ter
ciúme delas. Saiu buscar Zóssimov, que andava a tratar do irmão, porém, ainda
tocado pela bebida. O médico sente-se deslumbrado com a beleza de Dúnia, para
ele, Advótia Románovna. Têm uma conversa brejeira com ela. Quando saem,
Razumíkhin quase se zanga com ele, por ter gracejado com ela,
considerando-o um mulherengo incorrigível. Os dois estão seduzidos por
ela.
Às
sete da manhã, Razumíkhin acorda e toma consciência da figura que fez no dia
anterior a falar com as senhoras, um tanto tomado pela bebida, e sente-se
envergonhado. Para elas ele era Dmitri Prokófitch. Dormiu onde calhou, na sala
de Prascóvia Pávlovna. Sai e vai ter com Pulkhéria Aleksándrovna e Advótia
Románovna, tentando recuperar a sua boa imagem. Elas parecem não terem visto no
seu comportamento nada de excessivo, e contam-lhe que receberam uma carta de
Piotr Petróvitch Lújin a justificar-se por que não ter vindo recebê-las, quando
elas chegaram, e que quer encontrar-se com as duas, mas, sem a presença de
Ródia (Raskólnikov). Entretanto, mãe e filha, esperando vê-lo mais bem-disposto
para o consultar de novo, vão ter com ele, levadas por Razumíkhin.
Raskólnikov
tinha acordado quase restabelecido. Vêm falar com ele a mãe e a irmã. Estão
ali, para além delas, Razumíkhin e Zóssimov. A conversa dele nesse dia é mais racional. Ele tenta mais uma vez justificar ter dado o dinheiro que a
mãe lhe mandara à viúva de Marmeládov, confessando que fora para ela fazer o
funeral do marido. A mãe, que só queria o seu filho recuperado, pareceu
compreender a situação. Lújin tinha pediu na carta para Ródia não estar
presente no próximo encontro, não queria ter a sua oposição, mas a irmã fez questão
de o irmão vir a essa reunião, bem como Razumíkhin e Zóssimov. Era uma maneira
de pôr à prova o amor do seu pretendente.
Pouco
depois chega ali uma moça que ninguém conhecia, era Sónia (Sófia Semiónovna,
Marmeládovna), filha de Katerina Ivánovna, que lhe veio agradecer a ajuda que
Raskólnikov dera para o funeral do pai, e a convidá-lo para o banquete em
homenagem do pai. Pulkhéria Aleksándrovna e Dúnia conversam sobre Lújin de modo
depreciativo, considerando-o um bisbilhoteiro. Raskólnikov pede para ter uma
conversa a sós com Sónia, e faz-lhe perguntas sobre Porfiri Petróvitch, que é o
procurador do caso do assassinato de Aliona e Lisaveta. Quer saber como está a
investigação. A seguir tenta recuperar à pressa o anel que a mãe lhe oferecera
e o relógio de prata que fora do pai, que tinha penhorados. Se elas dessem pela
sua falta ficariam indignadas.
Raskólnikov
vai com Razumíkhin a casa de Porfiri Petróvitch, que lhe parece bem-disposto, e
o informa que para ele recuperar os seus objetos tem de fazer um requerimento
ao juiz de instrução, e estranha ele vir tão tarde tentar recuperar o seu
espólio. Zamiótov está também ali presente. A seguir divergem a conversa sobre
um artigo que Raskólnikov escrevera num semanário, em que dividia os homens em
vulgares (ordinários) e invulgares (extraordinários), defendendo a tese de que
os segundos tinham o direito de eliminar os parasitas da sociedade, qual
Napoleão Bonaparte, que para restabelecer determinada ordem na Europa levou à
morte milhares de pessoas. Razumíkhin ficou indignado com esta ideia. Zóssimov
ria-se. Isto deu pano para mangas para uma longa conversa sobre o tema. Porfiri
Petróvitch ligava mais o crime a problemas sociais, e a certa altura chegou a
pôr como suspeito Raskólnikov. Ora Razumíkhin, que se tinha indignado com a
tese deste, estava agora ainda mais indignado por colocarem o seu amigo como
suspeito daquele crime.
Já
regressados aos quartos que Pulkhéria Aleksándrovna e Dúnia tinham alugado a
Bakaléev, Razumíkhin continuou a refutar os argumentos de Raskólnikov.
Conversam sobre Porfiri e Zamiótov. Raskólnikov na discussão tenta arranjar
razões para a existência daquele crime, como para se justificar a si próprio.
Razumíkhin ao fim achou que ele falara demais, e alertou-o para ter cuidado com
o que dizia, porque Porfiri não era o parvo que muitos pensavam. Raskólnikov
sai dali perturbado, e para piorar as coisas encontra um estranho na rua que diz
para ele, de modo acusatório: «Tu és o assassino». Isto perturba-o, e entra em
depressão. Tentara justificar para si próprio o seu ato, mas não o terá conseguido.
E nessa noite tem um sonho aterrador, um desconhecido está ao seu lado, parece
persegui-lo. Pergunta-lhe o que ele quer e ele diz que é Arkadi Ivánovitch
Svidrigáilov.
IV
PARTE
Raskólnikov
é visitado, pois, por Svidrigáilov, que lhe vem falar em casar com a sua irmã,
Advótia Románovna. Claro que ele é de parecer desfavorável, e a conversa gira à
volta deste tema. Apesar da negativa, que este ouve sem surpresa, propõe dar
20.000 rublos à irmã, e confessa que a falecida mulher, Marfa Petrovna, também
lhe tinha deixado 3.000 rublos em testamento. Tem uma conversa depressiva, fala
em fantasmas. Ele sonha com a mulher, parece estar alterado. Toma-se de alguma familiaridade
com Raskólnikov e diz que os dois são da mesma laia. Afiança que não agoira bom
casamento da irmã com Piotr Petróvitch Lújin. Com a chegada de Razumíkhin acaba
esta conversa.
Quando
Svidrigáilov saiu, Razumíkhin perguntou-lhe quem era. Ele disse-lhe que era um
proprietário rural que queria casar com a sua irmã, dando-lhe outros
apontamentos sobre o caso. Mas o que Raskólnikov queria saber mesmo era o
resultado dos contactos dele com Porfiri, embora tivesse de ir ao encontro da
mãe para estar presente na reunião. No corredor dão com Lújin, que já tinha
vindo. Estão presentes na sala Raskólnikov, Razumíkhin, Piotr Petróvitch Lújin,
Pulkhéria Aleksándrovna e a filha, Advótia Románovna. A reunião corre mal a
Lújin, que pensava que com o seu dinheiro conseguiria ter na mão aquela
família. É desrespeitoso com Dúnia e aborrece a mãe, que o quer dali para fora.
Razumíkhin convida-o a sair.
Piotr
Petróvitch Lújin, que se fizera do nada e gostava de se admirar a si mesmo,
acumulara dinheiro e queria agora casar com uma mulher jovem e submissa, que o admirasse
e servisse. Dúnia sente-se culpada por ter sido aliciada por dinheiro e
abraça-se à mãe convulsionada. A seguir os quatro começam a falar da oferta
generosa de Svidrigáilov e do testamento de Petrovna. Esta conversa de repente
indispõe Raskólnikov, que se mostra depressivo, saindo sem se despedir de
ninguém. Razumíkhin vai atrás dele para o demover, já que se tratava de um
assunto de grande importância para a sua família, mas nada o deteve, algo de
terrível o fez fugir dali.
Raskólnikov
sente-se perdido e vai a casa de Sónia, enteada de Katerina Ivánovna. Precisa
de desabafar com alguém o peso que lhe vai na consciência. Perante a miséria
dela, empurrada para a prostituição, que de certa maneira se compara com a sua,
fala-lhe da parábola de Cristo e Lázaro de Betânia, aquele a quem o Divino
Mestre ressuscitara de entre os mortos. Com isto parecia estar à procura de
impossíveis, de desfazer o que estava feito. Confessou-lhe que agora só ela o
poderia compreender, e que no dia seguinte lhe contaria quem matara Lisaveta,
que lhe dera uma Bíblia. Para azar seu, ao lado da espelunca dela, Svidrigáilov
tinha alugado um quarto.
Quando
no dia seguinte, pelas onze horas, Raskólnikov ia ser ouvido pelo juiz de instrução,
Porfiri Petróvitch, estranhou que demorassem tanto tempo a chamá-lo, dada a
importância do seu caso. Por fim o juiz lá o chama, mas tem um discurso
tortuoso, arrastado, meloso. Excede-se em amabilidades, mostra-se miudinho e
insinuoso para o amedrontar, para depois talvez lhe fazer uma pergunta fatal,
que o faria cair nas suas mãos. Porfiri revelou-lhe mesmo em pormenor os
contornos rebuscados da sua própria personalidade para justificar o seu
comportamento. Com tantos malabarismos de linguagem, Raskólnikov enerva-se e
diz que não admite insinuações. Porfiri acusa-o mesmo de ser ele o assassino.
Raskólnikov está fora de si e pega no boné para sair do gabinete, mas ao
aproximar-se da porta, ela está fechada, Porfiri tinha previsto tudo. Ele sente-se apanhado.
Acontece,
porém, para surpresa geral, que quando Porfiri se preparava para mandar entrar
alguém, porventura para o acusar irrefutavelmente, apareceu alguém a
confessar-se culpado daquele crime –, era um tal Nikolai. O seu aspeto é de
alienado. Uma escolta tinha-o trazido ali. Raskólnikov rejubilou em silêncio,
daquela estava safo, pensou logo em ir até casa de Katerina Ivánovna para
assistir ao funeral. Um indivíduo que Porfiri tinha escondido numa sala ao lado
para o acusar veio depois desculpar-se, a causa disso tinha sido um
ressentimento por ter sido maltratado pelos guardas. Porfiri ouviu a confissão
de Nikolai à frente de Raskólnikov, e não teve outro remédio senão pedir-lhe
desculpa e mandá-lo embora.
V PARTE
Piotr
Petrovitch Lújin sente-se deprimido depois daquela conversa com Dúnetchka
(Dúnia), e Pulkhéria Aleksándrovna. Teve vários aborrecimentos e ficou bastante
arrependido de ter contado o desfecho daquele encontro com o seu amigo Andrei
Semiónovitch Lebeziátnikov, antigo companheiro de quarto e ex-tutor. Vai a casa
dele, que nesse dia não saíra, e os dois falam sobre o banquete fúnebre em casa
de Katerina Ivánovna. Bem, dali a pouco estão a discutir sobre as suas relações
com mulheres, sobre Katerina Ivánovna e Sófia Semióvna, ridicularizando
Raskólnikov. Outros temas que afloram são o casamento natural, banquetes
fúnebres e sobre ter filhos. Lújin parece-lhe pouco preparado para lidar com
mulheres, e Lebeziátnikov tem com elas uma relação viciada de adulterações.
Era
difícil precisar os motivos do banquete fúnebre de Katerina Ivánovna: Talvez o seu
amor ao marido, mas mais ostentar uns restos de orgulho que tinha perante os
seus vizinhos miseráveis, mostrando que afinal ainda era alguém. Ficou
indignada por não ver ali Lújin, Lebeziátnikov e Petróvitch, ela queria
mostrar-se aos grandes. Apareceram lá uns polacos famintos com quem não
contava. Mantém uma conversa animado com Amália Ivánovna Lúdwigovna, também
chamada Lippevechsel e Pávlovna, que lhe alugava um quarto miserável. Ela
pretendia também demonstrar perante ela que não era nenhuma desgraçada. A
conversa azeda-se e a senhoria sai dali indisposta. Entretanto, chega Piotr
Petrovitch Lújin.
Lújin
viera a este banquete, não por honra de Marmeládov, mas mais por despeito de
Raskólnikov, que lhe recusara a irmã. Momentos depois surgia também à entrada
Andrei Semiónovitch Lebeziátnikov. Lújin disse que vinha ali resolver um
assunto premente, dirigiu-se a Sófia Ivánovna (Sónia) e acusou-a de lhe ter
roubado 100 rublos. Ela nega, e até põe para fora os bolsos, mas eis se não
quando de um deles sai um maço de notas com o dinheiro. Ele acusa-a logo,
apresentando como testemunha Lebeziátnikov. Porém, este, viu o logro, fora o
amigo que pusera lá o dinheiro, e com Raskólnikov desmascara-o. Pouco depois aparece
ali Amália Ivánovna a querer expulsar Katerina Ivánovna do quarto que lhe tinha
alugado. Katerina Ivánovna, meia-tresloucada, sai dali deixando os dois filhos
mais pequenos a cargo de Poletchka, a filha mais velha. Raskólnikov, depois de
ter uma discussão acalorada com Lújin volta para junto de Sónia, a quem tenta
confortar.
Com
os convidados já saídos do apartamento de Katerina Ivánovna, Raskólnikov foi ao
quarto de Sónia ali bem perto. Ela estava-lhe muito agradecida por ele ter
intercedido por si. Começaram a falar. Ele tinha-se prometido revelar quem
matara Lisaveta. Fora ele, mas apenas queria matar a velha agiota, Aliona
Ivánovna, armado em Napoleão, aquela morte de Lisaveta fora um acidente. Ela
fica estupefacta. Têm a seguir uma longa conversa. Ele dá-lhe para o facto uma
explicação social, e a seguir uma explicação psicológica. Sónia pôde
compreender a miséria a que pode cair um ser humano, e para ela a solução agora
era entregar-se à justiça –, aceitar a penitência. Ele tinha dúvidas, mas
talvez tivesse de ir parar aos trabalhos forçados expiar o seu crime.
Entretanto, bate à porta o libertino Lebeziátnikov.
Andrei
Semiónovitch Lebeziátnikov aparece lá a dizer a Sónia que a sua mãe foi a casa
de Semion Zakháritch, não o encontrou e veio meio doida ou embriagada. Não
sabem o que fazer dela. Sónia e Raskólnikov vão para lá. Ela anda com os filhos
pela rua, Pólia (Poletchka), Kólia e Lénia. Saíram os três, mas Raskólnikov,
depois de ter sido aborrecido por Lebeziátnikov regressa ao seu cubículo.
Aparece por ali logo a seguir a sua irmã, Dúnia, que não acredita que ele tenha
cometido o crime de que o acusam. Dmítri Prokófitch (Ramuzíkhin) tinha-lhe explicado
tudo. Vai-se embora e chega a seguir Lebeziátnikov de novo a dizer que Katerina
Ivánovna anda pela rua, bate numa frigideira e obriga as crianças a dançar.
Raskólnikov e Lebeziátnikov vão para lá. Katerina Ivánovna parece estar louca.
Um homem deu-lhe 3 rublos. Duas crianças fogem, seguidas pela mais velha. A mãe
persegue-as, mas não tem pernas para elas, cai e magoa-se na cabeça. É levada
para o quarto de Sónia, onde esta se dedica à prostituição. Tem a tísica,
vomita sangue e acaba por morrer. Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov aparece a
seguir lá por casa para acudir a tanta miséria, pagando o funeral e
encaminhando as crianças para instituições de assistência. Não se sabia com que
intenções. Tem uma conversa com Raskólnikov, em que lhe dá conta que descobriu
o seu segredo, pois alugou um quarto ao lado de Sónia e ouviu as revelações que
ele lhe fez.
VI PARTE
Arkadi
Ivánovitch Svidrigáilov pagou o enterro e internou as crianças em instituições,
usando os 10.000 rublos que possuía. Para quem o conhecesse parecia um pouco
desprendido da vida ou tinha algo mais sinistro em vista. Ao enterro assistem
Sónia e Raskólnikov que se amparam um ao outro. Razumíkhin vem ali visitar o
seu amigo, dar-lhe o seu apoio, e conta-lhe que a irmã, Dúnia (Advótia
Romanóvna) recebeu uma carta de Andrei Semiónovitch Lebeziátnikov, que a deixou
muito perturbada. Raskólnikov fica desvairado, teme que ele anda a fazer
chantagem com ela e só lhe apetece matá-lo a ele e a Porfiri Petróvitch. Está
neste dilema quando recebe em casa Porfiri, que o vem visitar para fumar um
cigarro com ele. Bem, mandou-o sentar amavelmente.
Porfiri
Petróvitch inicia um discurso amigável, de quem vem ali para o ajudar. A certo
ponto até dá impressão que se vai mostrar arrependido por o ter considerado suspeito.
Raskólnikov ouve-o intrigado. Mas eis que a certo ponto ele muda a direção do
seu discurso e acusa-o de ser ele o autor daquele crime. Considera que a sua
confissão está a ser trabalhosa, mas que o vai deter brevemente. Diz que Nikolai,
o falso culpado, é um indivíduo doentiamente que se quer autoflagelar,
assumindo toda a culpa dos pecados do mundo. Aconselha-o a fazer uma confissão
espontânea quanto antes, porque com isso vai ter atenuantes, pois ainda tem
muita vida pela frente. Raskólnikov mostra-se incrédulo, mas ele dá-lhe no máximo
dois dias para ele refletir sobre o assunto.
Raskólnikov
sente-se encurralado e precisa de desabafar com alguém. Receia que Svidrigáilov
soubesse de facto o seu segredo e já o tivesse revelado. Dúnia e Razumíkhin já
deviam também estar na posse dele. Vai encontrar-se com Svidrigáilov numa casa
de pasto rasca, quer tirar-se de dúvidas. Da conversa que mantém com ele dá
para perceber que está perante um depravado sexual, um crápula, um indivíduo
sem escrúpulos. Sabe que uma jovem de 14 anos se terá deitado a afogar por
causa dele. Contudo, Svidrigáilov diz-se descendente de uma família nobre, prestara
serviço na cavalaria durante dois anos e casara com Marfa Petrovna. Raskólnikov
não está a obter qualquer resultado conclusivo sobre o que pretendia saber e
fica mais tranquilo. Talvez ele não o tivesse denunciado.
Svidrigáilov,
já um pouco bêbado, revela-lhe um pouco da sua vida. Ele era um batoteiro e
esteve preso por dívidas. Fora Marfa Petrovna, que por amor o resgatara da
prisão. Mas ele era demasiado fogoso e ela era mais velha do que ele, e fizeram
um acordo sexual entre os dois, pondo alguns limites à sua infidelidade. Conta-lhe
com foi em sua casa a relação com a sua irmã, Advótia Romanóvna, dos recursos
que utilizara para a seduzir, mesmo fazendo-lhe ciúmes com as outras criadas, e
em vão. Parece mais conformado. Confessa que agora até tem uma noiva de 16 anos
com quem vai casar. De repente sai dali de casa e Raskólnikov vai atrás dele,
pois sabe que ele continua a ter planos e intenções para com Dúnia.
Não
o larga, e depois de alguma conversa acaba por confirmar que ele está na posse integral
do seu segredo. Ele escuta às portas. Já o deve ter revelado à irmã, mas não o
quer confirmar perante si. Diz-lhe que não deve preocupar-se com isso, ou então
que dê um tiro nos miolos. Svidrigáilov toma um coche para sair dali, e mais à
frente paga ao cocheiro, sai e volta para trás. Ele tinha combinado naquele
local um encontro com a irmã, Advótia Romanovna. Depois de a encontrar segue
com ela um bom bocado até ela dizer que dali não passava. Ele que dissesse o
que tem a dizer. Svidrigáilov argumenta que aquele encontro não era para se ter
na rua, e vão para casa de Sónia (Sófia Semiónovna). Mas ela não está. Seguem
então para o alojamento que alugou à senhora Resslich, mesmo ao lado. Já lá
dentro, Dúnia recusa-se a acreditar nas suas acusações, mas ele faz-lhe uma
descrição completa do crime –, da maneira como a ouvira da sua boca, revelada
no quarto ao lado, onde morava Sónia. Discutem, e ela diz que ele envenenara
Marfa Petrovna, que não quer nada com ele. Svidrigáilov tenta forçá-la. A casa
está vazia, Sónia não está nem o Kapernáumov. Ela trazia uma pistola e perante
as suas arremetidas tira-a da bolsa e dispara um tiro contra ele. A bala apenas
lhe passou de raspão nas têmporas, fazendo um ferimento leve. Ele continua as
suas ameaças e desafia-a a disparar à vontade contra ele. Ela dispara então outro
tiro e a pistola encrava. Desesperada, deita a arma fora. Svidrigáilov avança
então para ela, abraça-a, e pergunta-lhe se ela algum dia o amará, ao que ela responde
que não. Dececionado, deixa-a fugir. Ele amava verdadeiramente aquela mulher, a
ponto de se deixar matar por ela.
Arkadi
Ivánovitch Svidrigáilov segue dali para uma tasca, e depois para um parque de
diversões, onde paga as despesas a dois escrivães que ali estão. A seguir passa
por casa de Sónia e dá-lhe dinheiro. Quando a Raskólnikov, avisa-a que ele só
tem duas soluções: ou dar um tiro na cabeça ou ir para o castigo. Passa por
casa da sua noiva de 16 anos a despedir-se, dizendo que vai para a América.
Anda desnorteado. Segue para um hotel onde lhe servem vitela e chá. Nota um
barulho estranho no quarto e verifica que é uma criança que anda fugida da mãe,
com medo que ela lhe bata, depois de ter partido uma chávena. Adormece-a na sua
cama. Sai dali desvairado até chegar a um passeio de madeira afastado. O lugar
é sossegado. Está apenas lá um homem, que com o seu capacete na cabeça lhe
lembra Ulisses. Aquele pergunta-lhe o que ele quer dali. Ele responde-lhe que
vai para a América. O homem adverte-o que ali não era sítio para nada. Svidrigáilov
diz que aquele é um bom lugar, pega na pistola que tinha recolhido de Dúnia, e
dá um tiro nas têmporas. Ele não falha.
Dmítri
Prokófitch (Ramuzíkhin) tinha alojado a mãe e a irmã de Raskólnikov num
apartamento de Bakaléev. Era ele que agora velava por elas. Raskólnikov foi lá
ter a casa, mas só encontrou a mãe, que o recebeu com muita alegria e
apreensão. Estavam os dois à espera que Porfiri passasse por lá. Ao sair de
casa dá com Dúnetchka, ela e Sónia estavam com medo que ele se matasse. Ele,
contudo, confessa ter a sua fé, e como que manifesta até um certo orgulho por
ter cometido aquele crime. A irmã não está de acordo. Diz para ela não vir
atrás dele, que Ramuzíkhin irá tomar conta delas. Ele tinha 24 horas para
decidir. Está revoltado contra tudo e contra todos. Mas tem de ser assim. Bem,
20 anos de opressão talvez o façam ter juízo.
Quando
Sónia entrou no seu quarto estava a escurecer. Estava apreensiva, tal como
Dúnia, temia que ele se suicidasse. Por fim, Dúnetchka não aguentou mais e
foi-se embora. Pouco depois chegava Raskólnikov. Vinha com baixa-estima, mas
não se tinha suicidado. Sónia ficou aliviada. Vem ali buscar uma cruz que ela
tinha, para lhe dar sorte. Segue para a esquadra fazer o que tinha a fazer.
Quer falar com Zamiótov, mas ele não está, tem de falar com Iliá Petróvitch,
aliás “O Pólvora”. Conversam os dois um bocado, mas Raskólnikov não encontra pé
para lhe confessar o crime, assim de chofre. É então que ele o informa que Lebeziátnikov
se tinha suicidado. Era dos que não suportavam um passado tão pesado. Da sua
boca não sai nada e acaba por se levantar da cadeira e sair. No pátio encontra
Sónia. Ela tinha-lhe dito para ele assumir a sua cruz. Então, de repente
confessa para quem ali estava que fora ele que matara Aliona Ivánovna e
Lisaveta Ivánovna e lhes ficara com o dinheiro. Iliá Petróvitch estava no local
e pegou no caso.
EPÍLOGO
O
processo arrastou-se por nove meses. Ele foi por fim condenado. O tribunal
ouviu as provas, que o réu não negou, e às vezes até se comprazia em as
evidenciar. Mas alguém se encarregou de o defender. As atenuantes foram as
seguintes: desvarios mentais temporários; a sua natureza hipocondríaca; não se
ter aproveitado do roubo; viver na altura uma péssima situação económico. E
ainda havia outras situações que o beneficiaram, embora legalmente não fossem
atenuantes: Foi testemunhado perante o tribunal que ele ajudou um estudante
tísico e pobre, e depois o pai, até ele falecer; e no decorrer de um incêndio
pavoroso salvara duas crianças.
Foi
para a prisão, algures na Sibéria. Sónia acompanhou-o. Na prisão, apesar de
estar a ser protegido, mantinha-se alheado e abúlico. Não se dava com ninguém. Ele
imaginava que eles o desprezavam pela sua ignomínia. Acusavam-no de increu. Era
mesmo hostil para Sónia, que o visitava sempre que podia. Aos presos, que
conheciam o gesto de generosidade de Sónia, indignava-os a sua ingratidão. Ela
era admirada por todos, e muitos familiares dos presos recorriam a ela para lhes
ficar com as suas coisas e até dinheiro, que ela depois lhes entregava. Razumíkhin
e a irmã casaram-se. A mãe morreu pouco tempo depois dele ali ter chegado.
Por
fim adoeceu, vai parar à enfermaria dos presidiários. Leva consigo o evangelho.
Ele estava doente, não pelos horrores da prisão, pela má comida, pelos
trabalhos forçados, pela cabeça rapada, pela roupa feita de retalhos; ele
estava doente da alma, ferido no seu orgulho. Sónia, só por duas vezes
conseguiu o foi visitar à enfermaria, dada a restrições que havia. Num dia de
visita Sónia não apareceu, mandou saber dela e recebeu um bilhete escrito a
lápis a dizer que tinha estado de cama, mas já estava melhor. Poucos dias
depois ela vai visitá-lo ao trabalho. Ele ajoelha-se aos seus pés e beija-os.
Chora convulsivamente. Parece, enfim, ter-se reconciliado consigo próprio e ver
o erro em que estava a lavrar. Foi liberto ao fim de sete anos e seguiu com ela
iniciar uma nova vida, que poderia ainda dar muito que falar.
APRECIAÇÃO
GERAL
Trata-se
de um romance psicológico, quase policial, com muita crítica social, algumas incursões
filosóficas, já com raízes existencialistas. O seu enredo é passado em
Petersburgo por volta de 1830, e o livro lançado ao público em 1866. A
narrativa, forte e vigorosa, é capaz de intimidar o leitor, que pode ser tocado
pela angústia da personagem principal. Dostoiévski, estando apenas a iniciar a
segunda parte do século XIX, mas já em plena maturidade, é capaz de nos narrar
os factos com uma profundidade surpreendente, analisando-os sob vários prismas,
de uma forma inovadora, surpreendente. Muitas personagens deste romance, para
além do jovem estudante Raskólnikov, estão retratadas de modo a que ainda hoje se
possa fazer um exame ao seu comportamento, de modo a nos permitir explicar a
razão dos seus procedimentos e desvarios. Ele foi capaz de impressionar os
intelectuais daquela altura e os que seguiram, até hoje – escritores,
psicólogos, filósofos –, trazendo até nós uma obra de referência da
modernidade, que é conveniente ler para enriquecimento da nossa formação
intelectual e moral – humana. O facto de os russos dar nomes diferentes às
pessoas, conforme o seu grau de parentesco ou confiança, faz com uma prévia
passagem pela lista das personagens torne a leitura do livro mais fácil e
aliciante.
A
trama do romance foi bem estudada, uma tal proliferação de pormenores de
diversa ordem não poderia ser feita de improviso. Em muitos aspetos tem algo de
autobiográfico. O caso é complexo e repulsivo, o autor não se vai contentar com
uma mera descrição dos factos, quer chegar ao mais fundo da questão. Isto vai ter
de ser feito por fases:
1º:
O criminoso vive um período de grave carência económica, está alojado num
quarto miserável que nem sequer consegue pagar. É obrigado a abandonar os
estudos, a vender alguns dos seus bens e a penhorar outros. É um revoltado
contra aquela sociedade.
2º.
Ao seu lado vê pessoas sem escrúpulos prosperarem à custa da miséria alheia. Um
tal sentimento de revolta cria em si um complexo de superioridade moral –, ele
julga-se um ser invulgar, extraordinário, no direito de eliminar uns tantos inúteis,
exploradores do sistema, para fazer avançar o mundo, como um dia o fez Napoleão
Bonaparte.
3º:
A seguir começa a gizar-se no seu pensamento a forma de levar a efeito as suas
pretensões, de modo a não ser descoberto. Mas o caso não é fácil. Está
mergulhado numa trama de contradições, muito nervoso, com algo de perverso e
louco a norteá-lo. É preciso coragem para empreender aquilo.
4º.
Um tal ato tem de ser programado com grande rigor e cautela. Há muitas
condicionantes a dificultar-lhe a ação: encontrar a vítima sozinha, ter acesso
ao machado sem ninguém saber. Por fim a ocasião proporciona-se, sai como se aquilo
fosse apenas um ensaio, até que comete o crime a sangue fio, com uma motivação
algo mística.
5º.
Surge a ressaca do ato. Ele bem tenta convencer-se que aquilo não foi um
crime, mas não consegue. Torna-se necessário fazer a justificação perante si
mesmo daquele ato para tornar menos doloroso o arrependimento, enfim, aparece a
religiosidade. Aquilo terá sido uma tentação do diabo. Um evangelho
passa pelas suas mãos, talvez ali consiga a redenção.
6º.
Mas, vejamos, ele não tem estofo moral para aguentar na sua consciência um
crime tão repugnante. Além disso, tinha pensado em matar Aliona, e acabara por matar
também Lisaveta. Entra em depressão, fica doente, fecha-se ao contacto com as
pessoas, tem um comportamento inexplicável.
7ª.
Segue-se a fase em que começa a sentir-se acossado pela justiça. É chamado à
esquadra da polícia, treme de medo, mas afinal foi por não ter pago uma letra.
Depois é chamado assassino por um desconhecido na rua, e mais tarde acusado por
um inspetor, mesmo sem ter provas contra ele. Fica tão descontrolado que desmaia.
8º.
Mais tarde vem a parte da confissão. Ele não aguenta mais sofrer sozinho o peso
daquele crime, e começa por tentar confessá-lo a uma pessoa da sua confiança,
que como ele vive uma situação de miséria, é Sónia. Ainda assim, tem de o fazer
por fases. Talvez ela, que já passou por tantas humilhações o possa compreender
e partilhar consigo aquele sofrimento.
9º
Por fim começa a sentir-se encurralado pelas autoridades. Apesar de haver um
autor confesso, cada vez se avolumam mais as provas contra si, e já não pode
guardar mais aquele segredo, que o mantém livre, mas não deixa viver em paz, e
vai confessar o seu crime na esquadra perante Iliá Petróvitch, e da maneira mais
espalhafatosa, à frente de toda a gente.
10º:
Chega finalmente o julgamento, que ainda demorou nove meses, em que se deu como
culpado perante o tribunal, não mistificando os factos, em que é condenado.
Torna-se necessário expiar o crime, fazer a necessária penitência. A sua
confissão espontânea, umas tantas atenuantes e ações beneméritas do seu passado
fizeram com que a pena lhe fosse reduzida a sete anos de prisão.
11º
Por último, o cumprimento da pena numa prisão da Sibéria, na qual o criminoso
sente que certa maneira vai pagar uma dívida à sociedade, e assim se redimir:
sofrer o castigo. Mas, mesmo lá ele não se reconcilia logo consigo próprio. Não
aceita ser olhado como um reflexo da sua ignomínia. Só quase ao fim pôde ver a
grandeza do amor de Sónia e ganhar ânimo para recomeçar a sua vida.
No
romance são deveras interessantes as justificações que Raskólnikov dá para o
crime: as primeiras, de natureza sociológica (ligadas a questões sociais), as
segundas, de natureza psicológica (ligadas à idiossincrasia do criminoso), e as terceiras
de natureza filosófica (analisando as suas razões mais profundas). (Ver II
Parte, capítulo 4).
As
razões sociológicas prendem-se com a situação de miséria que ele estava a
viver, humilhado por toda uma sociedade. A mãe mandava-lhe algum dinheiro,
ainda que com um sacrifício enorme, mas que não era suficiente para o manter em
Petersburgo a estudar. As explicações que Razumíkhin lhe arranjara eram
ocasionais e escassas. Para sobreviver, ele teve de vender os livros de estudo,
e a própria mesa em que estudava. Depois chegara ao cúmulo da miséria, ao empenhar
um anel que a irmã lhe oferecera, e um relógio de prata que fora do pai.
As
razões psicológicas prendem-se com o vulcão de frustrações e revoltas que
começaram a fermentar dentro de si, perturbando-lhe a mente. As dificuldades
que sabia viver a mãe para o manter a estudar, tendo ele já desistido; a
situação de impotência que ele sentia face à velha agiota, Aliona Ivánovna, que
no fundo fazia o seu papel de prestamista. Era insuportável a humilhação de
estar a viver toda aquela mentira, com a família a passar mal, e ele com a vida
destruída. O sentimento de inferioridade que sentia perante circunstâncias tão
aviltantes era insuportável. Então ele foi à procura de uma maneira de transpor
todas estas frustrações, invertendo a inferioridade em superioridade.
As
razões filosóficas têm a ver com o modo como ele tentou superar aquele
sentimento de inferioridade. Ele era especialmente dotado e sensível. Para ele as pessoas dividiam-se em ordinárias (comuns), que eram
dominadas pelas outras; e extraordinárias (invulgares), capazes de inovar, de
eliminar as ordinárias para fazer avançar o mundo, tal como Napoleão Bonaparte o
tinha feito. Com este propósito aquele general e estadista levara à morte
milhares de pessoas, e era considerado um herói, não um criminoso. Ora ele
tinha de se atrever a matar Aliona Ivánovna, uma pessoa ordinária, parasita da
sociedade, para se afirmar a ele próprio que era um ser extraordinário, e assim testar os seus princípios . Matei,
simplesmente, matei por mim, justifica-se ele a páginas 393. Na sua ideia a
sua natureza invulgar dava-lhe direitos de dominação sobre as pessoas vulgares.
Outro
aspeto que o autor desenvolve no romance com grande riqueza de pormenores é o
da dualidade do ser humano, que, enfermando de desvios psicológicos, possuindo instintos
primários, apesar do livre arbítrio que dizem possuir, por vezes é mais influenciado
pela afetividade do que pela racionalidade, sendo capaz do melhor de do pior. Perante
circunstâncias extraordinárias ele é capaz de ultrapassar a realidade,
excedendo-se a si próprio, enveredaando pela irracionalidade. Esta dualidade é patente em diversas personagens,
mas mais evidente em:
Rodion
Románitch Raskólnikov, que é capaz de matar com uma machadada na cabeça duas
pobres mulheres, uma velha agiota, mas que tinha uma fé, era diligente e até
prestável para muitas pessoas carenciadas de dinheiro; e outra ainda jovem,
completamente inofensiva, bondosa e trabalhadora. Por outro lado, é patente que
é uma pessoa sensível à pobreza e à injustiça, que ajudou um colega tísico na
universidade e o próprio pai deste, até ao seu falecimento, que cometeu um ato
de coragem e abnegação de salvar duas crianças num pavoroso incêndio. Dá todo o
dinheiro que recebeu da mãe para ajudar a família Marmeládov, caída em desgraça
quando aquele faleceu.
Arkadi
Ivánovitch Svidrigáilov, socialmente um parasita,
batoteiro e agressivo. Bate nas pessoas, e mesmo na mulher, Marfa Petrovna, de
quem se suspeita ter envenenado. E sexualmente é um depravado, quer ter várias
mulheres, suspeita-se que seja pedófilo, diz que «gosta muito de crianças», e uma
jovem de 14 anos deitou-se a afogar por não ter suportado a violência dele. Por
outro lado, paga o enterro de Katerina Ivánovna, providencia, com custos para
si, que os filhos dela sejam internados em instituições. Dá dinheiro a Sónia e
a Advótia Ivánovna para melhorem as suas vidas. Tem um gesto de generosidade
para com uma criança fugida da mãe, que deitou na sua cama e aconchegou. Não
lhe fez mal. Quase se deixou matar por amor por Dúnia. E, por fim, com um
desgosto de amor, não consegue aceitar a sua própria perversidade e se suicida,
como para cortar o seu mal pela raiz.
Não
é um livro que nos vá deixar ao fim muito felizes, dado o tema hediondo que
trata, mas é uma obra literária capaz de nos pôr a refletir por muito tempo,
fazendo-nos ver como afinal a vida pode ser tão complexa e intricada, permanecendo
ainda um mistério. O romance, para além do drama que nos descreve, é um
estudo criterioso sobre a problemática que envolve um crime, recriando o
ambiente social do criminoso, desenvolvendo a psicologia que o levou a cometer um
tal ato, até à investigação judicial, ao julgamento e cumprimento da pena. O
autor teve uma vida temperada pelo sofrimento, peregrinara muito pelos meandros
do espírito, que o levou à fé cristã. Raskólnikov, o protagonista deste
romance, também pediu ao fim o Evangelho para tentar a sua redenção. Crime e Castigo é, pois, um romance policial,
mas também um estudo psicológico aprofundado, uma ampla análise social daquele
meio, a que está subjacente uma crítica, um estudo filosófico sobre a existência
do ser humano. Ele não se contenta em descrever o crime e mostrar como vão
chegar ao culpado, ele vai tentar chegar à génese daquele ato repugnante, e a
partir dali parte à procura das suas mais complexas motivações e efeitos, explorando
as suas diversas variáveis, até chegar ao seu desfecho. E sempre perpassado
pelos temas que o marcaram, e afetavam a população russa daquele tempo: a
pobreza e a miséria endémicas, as doenças, as famílias desestruturadas, a avidez e a
hipocrisia, o sadismo e o masoquismo, a
fuga para o suicídio. Enfim, um extraordinário romance de Fiódor Dostoiévski.
Martz
Inura
2/8/2019
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