MIGUEL DE CERVANTES
D.
Quixote de La Mancha
Bela tradução de José Bento
RELÓGIO D`ÁGUA EDITORES (2007)
O HOMEM
Miguel de Cervantes Saavedra, romancista, dramaturgo e poeta castelhano,
terá nascido em 29 de Setembro de 1547, em Alcalá de Henares. Era filho de um modesto
cirurgião que chegou a ser preso por uma dívida de jogo. Também ele não ia
fugir ao infortúnio, a sua vida social foi um autêntico fracasso. Em 1569 foge
para a Itália depois de ter ferido o seu contendor num duelo. Por esta altura começa a escrever
poesia. Alista-se ali nas forças que ali estavam a ser organizadas por D. João de
Áustria contra os turcos e toma parte na Batalha de Lepanto, sendo ferido na
mão esquerda, da qual perde mobilidade. E deste acidente em defesa da fé de que
tinha muito orgulho, ainda houve quem lhe chamasse maneta. Em 1575 ao
regressar a Castela é aprisionado por corsários sedeados em Argel. Tenta várias
vezes a fuga, sem êxito, acabando por ser sujeito a uma prisão mais rigorosa, só
sendo resgatado cinco anos depois. De 1581 a 1583 está em Lisboa, onde espera
obter um lugar na corte espanhola, então sedeada nesta cidade. Vai escrevendo
peças de teatro, mas não tendo conseguido o que pretendia, regressa a Castela em
1584. Tem uma relação com Ana Franca, uma senhora casada, de quem tem uma
filha, e casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, muito mais nova do que
ele, indo viver algum tempo na povoação de La Mancha. Em 1587 é nomeado comissão
real e encarregado da recolha de trigo e azeite para a "Armada Invencível", e
acabada esta missão torna-se colector de impostos. Não era fácil a função que
exercia, e em 1597 é preso em Sevilha depois da falência de um banco onde
depositara dinheiro à sua confiança, e mais duas vezes terá sido por se atrasar
na prestação de contas. No ano seguinte sai da prisão e morre Ana Franca, mãe
da sua filha, Isabel de Saavedra. Refugiado na escrita, em 1605 faria sair o
primeiro tomo de D. Quixote de La Mancha.
Em 1613 adere à Ordem Terceira de S. Francisco. Era uma forma de estar mais
integrado na Igreja e protegido do Tribunal do Santo Ofício. Não fora o único
escritor do seu tempo a fazê-lo. Talvez para se redimir de qualquer falta de
juízo escreve Novelas Exemplares, para
além de outras obras, e em 1615, depois de um auto anónimo ter dado
apocrifamente continuação às aventuras de D. Quixote, publicou o segundo volume
(Segunda Parte) de D. Quixote de la
Mancha, onde dá esta personagem como morta e acabada para aquelas
aventuras. Morreu em Madrid em 16 de Abril de 1616.
A OBRA
A obra
de Miguel de Cervantes é constituída por poesias, novelas e peças de teatro,
sendo que D. Quixote de la Mancha foi
aquela que lhe deu mais notoriedade. Leiam-se as principais:
- La Galatea (novela) (1585)
- Los Tratos de Argel (peça de teatro)
(1582)
- Numancia (peça de teatro) (1585)
- D. Quixote de la Mancha, Primeira Parte
(1605)
- Novelas Exemplares (1613)
- Viagem ao Parnaso (novela) 1614)
- Oito Comédias e Oito Entremezes (1615)
- D. Quixote de la Mancha, Segunda Parte
(1615)
- Os Trabalhos de Persiles e Segismunda
(1616).
O ROMANCE
D. QUIXOTE DE LA MANCHA (DOIS VOLUMES)
PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES
Para guia
do leitor há três personagens que dominam D.
Quixote de la Mancha. Existem algumas que estiveram muito ligadas a D.
Quixote, como a sua governanta e a sobrinha, a mulher de Sancho Pança, Teresa Pança
(embora tenha outros nomes), o padre (cura) Tomás, o barbeiro Nicolau, e ainda
o Bacharel Sansão Carrasco. As restantes, ainda que possam ter maior ou menor
intervenção, são ocasionais. E não podemos deixar de referir o Rocinante, um
cavalo cuja bravura e agilidade ombreavam com o de Alexandre Magno. Essas três
personagens são:
D. Quixote de la Mancha: Um tal Alonso Quixada ou Quesada, um fidalgo
que vivia com uma governanta e uma sobrinha numa aldeia da Mancha, uma região a
sul de Madrid, que resolve armar-se cavaleiro andante como o nome de D.
Quixote de la Mancha. Montado no Rocinante, que não passava de uma pileca, mas
resistente e resignado, lá vai ele para as suas aventuras, por duas vezes
acompanhado por Sancho Pança. A loucura de que era acometido devia-se aos
milhentos livros de cavalaria que leu, assim o consideraram os seus amigos e
familiares. Atrás de si deixara um grande amor, uma mulher de uma beleza sem
par, por quem valia a pena combater, a Dulcineia de Toboso. Apesar de erudito e
até inteligente, o seu pensamento ficava alucinado quando lhe vinham os temas
de cavalaria à cabeça, que como encantavam o seu mundo, recuperando a lucidez
quando se afastava destes assuntos. Talvez não acreditando muito nos livros de
cavalaria, ele quis por uma vez realizar de facto os seus ideais. Era alto e
magro, grisalho, com um olhar longínquo, Sancho Pança designara-o Cavaleiro da
Triste Figura, mas ele mais tarde foi também chamado o Cavaleiro dos Leões, por
os ter desafiado com êxito na sua jaula. Mais que louco ele é um visionário impenitente,
com uma imaginação tão forte que lhe transforma o sonho em realidade.
Sancho Pança: o companheiro fiel de D. Quixote a partir da segunda saída, proclamado
seu escudeiro, e que atraiu para estas aventuras com a promessa de ainda lhe conceder
o governo de uma ilha. Baixo, gordo, atarracado, tinha a fama de comilão e ser
muito agarrado ao dinheiro, embora não o devamos levar a mal, já que tinha mulher
e filhos a sustentar. Andava no seu jerico, o Ruço, que, com uma grande
paciência que só ele poderia ter, o levava para todo o lado. Embora Sancho
Pança considerasse o seu amo como tendo por vezes o juízo inquinado, também ele
era desprovido de uma grande inteligência, e de modo permanente – era ingénuo,
um pouco parvo e interesseiro. A sua presença no romance é muito importante
para pôr em contraste a figura de sonhador e fantasista de D. Quixote com a sua
própria figura, mais realista, tocada de senso comum.
Dulcineia de Toboso: àquele que era dona da vontade de D. Quixote,
porventura a mulher mais bela de todo o Orbe. Tinha que haver uma mulher, uma
paixão para quem valesse a pena lutar, mostrar as suas qualidades de cavaleiro,
e ali estava ela, a Dulcineia de Toboso. Mas ela era mais imaginária que real,
não tendo naquele momento qualquer dama a quem estivesse ligado, D. Quixote foi
recuperar uma sua antiga paixão, em Adonza Lourenço, uma camponesa feia,
disforme e não muito inteligente, que guardava porcos. Porém para ele era uma
perfeição que só os poetas da altura poderiam descrever, com cabelos de ouro,
sobrancelhas em arco-íris, olhos de sol, lábios de coral, dentes de pérola e
pescoço alabastrino, de uma beleza sem par. Por várias vezes é chamada à acção
no romance, para enlevo de D. Quixote e deleite do leitor.
UM RESUMO DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA
I Volume (Primeira Parte)
O
primeiro volume é constituído por cinquenta e dois capítulos e quatro partes. Designam-no
como Primeira Parte, quando ele é constituído por quatro partes. E também não
nos parece correcto chamar Segunda Parte ao II Volume, porque se fôssemos a ser
rigorosos este seria a Quinta Parte. Dentro deste raciocínio a primeira parte
deste volume consta dos primeiros oito capítulos, quando, em La Mancha,
o ainda Alonso Quixana vivia com uma sobrinha e uma governanta, e depois de ler
milhentos livros de cavalaria se deixou toldar por eles. Enfeitiçado por esse mundo
maravilhoso, cheio de encantamentos, quis tornar-se cavaleiro andante de todas
essas histórias, o mais ousado, o mais corajoso, o mais famoso e generoso de
todos os tempos e lugares, e resolve sair de sua casa combater as injustiças da
Terra, na defesa das donzelas desprotegidas, órfãos abandonados, viúvas
desvalidas, não temendo gigantes, dragões ou mesmo exércitos! Para o efeito foi
buscar uma velha armadura do seu bisavô, a que acrescentou uma viseira de
papelão, aparelhou o seu velho cavalo a que deu o pomposo nome de Rocinante, e
auto-designou-se D. Quixote de la Mancha. Como não podia deixar de ser, ia
enamorado da sua dama, que lhe daria alento para propósitos tão audaciosos. Ele
não a tinha, mas inventou uma, a tal Adonza Lourenço, camponesa feia, desajeitada
e analfabeta, guardadora de porcos, que conheceu na sua
juventude, e a quem passou a designar por Dulcineia de Toboso, a mulher mais
bela e recatada do mundo, por quem valia a pena lutar, sofrer todos os
tormentos para merecer o seu acolhimento. É nesta parte que consegue ser armado
cavaleiro, o que consegue pedindo a um estalajadeiro que o aloja, e que a tal
acede para contornar a sua mais que evidente insanidade mental, e assim evitar
males maiores. Um tal feito é conseguido por D. Quixote de la Mancha depois de
enfrentar como adversários uns comerciantes completamente atónitos, que o
acabaram por moer de pancada. Vem a seguir para casa para ser tratado, onde o esperam
a sobrinha e a governanta, que com o padre Tomás e o barbeiro Nicolau o tentam
acalmar, resolvendo todos queimar uns tantos romances de cavalaria, que seriam a
causa de todo aquele delírio. O critério da escolha, a cargo do padre e do
barbeiro foi complexo, não evitando que grande parte daquele espólio fosse parar
à fogueira. Porém, D. Quixote de la Mancha recuperou forças e logo tratou de
convencer um ingénuo mas bonançoso vizinho para o acompanhar em mais um das
suas sortidas como escudeiro, com a promessa de o fazer conde ou sacristão, e
possivelmente lhe doar o governo de uma ilha. É no final desta parte que vai
enfrentar os moinhos de vento, que toma por gigantes, para surpresa de Sancho
Pança, que não vê ali mais que moinhos, e leva uma panada na cabeça com uma
vela que derrubou a cavalgadura e o partiu todo, aquietando-o por uns tempos.
A
segunda parte é mais calma, trata do seu encontro como o bravo biscainho, em
que ainda levou umas boas bordoadas, e quando se viu com um bando de iangueses,
porventura galegos, e com uns cabreiros, em que levou sempre a perder, divagando
depois sobre um conto da pastora Marcela. A terceira parte já maior e começa
com uma aventura com os iangueses, ficando ele, bem como Sancho Pança, e até o
inofensivo Rocinante, todos muito mal tratados. Ao Sancho Pança custou-lhe
aquela carga de pancada, mas a D. Quixote até lhe pareceu natural, próprio das aventuras
e desventuras de um cavaleiro andante, consciente de quem vai à guerra dá e
leva. A seguir vão parar a uma estalagem, a quem D. Quixote toma por castelo. Numa
saída que faz vai encontrar um funeral, que ele confunde com um exército, onde
pensa realizar façanhas jamais pensadas ou contadas. As pessoas tomando-o por
diabo em figura de gente fugiram pela serra fora, amedrontadas e espavoridas,
não sem que alguns ainda lhe mandassem umas amêndoas à cabeça, com que lhe
partiram três ou quatro dentes. Tendo perdido Sancho Pança os alforges,
seguiram pelas serras cheios de fome a abrir caminho, encontrando a seguir um
barbeiro com uma bacia reluzente à cabeça, que D. Quixote tomou por elmo de
Mambrino, e a quem facilmente desbarata, fazendo-o fugir aterrado por aquelas
serras abaixo. Encontra a seguir uma escolta real de quadrilheiros, que levam os
condenados às galés, onde se descreve o engraçado episódio em que ele, depois
de os ouvir e certificar-se que estavam todos inocentes e eram vítimas de
grandes injustiças, não obstante o poder da guarda, os consegue libertar com a
enorme confusão que criou. Segue depois para a serra Morena, onde acaba por ensimesmar-se
e fazer uma penitência como prova do seu grande amor por Dulcineia de Toboso, enviando
Sancho Pança a casa dela com uma carta atestando o seu tão subido amor, que
afinal nem chegou a levar, e nem ele a tinha acabado de escrever. É então que vêm
ali o padre e o barbeiro com o propósito de o convencer a regressar, terminando
aquela sacrificada penitência, já que a Sancho Pança faltam argumentos.
A quarta
parte é ainda maior que as precedentes. O padre Tomás e o barbeiro Nicolau
conseguem trazê-lo para a estalagem, embora com dificuldade, e é onde o enredo
se complica. Estão ali para além do estalajadeiro e da estalajadeira, a sua
filha e a criada Maritornes, o casal D. Fernando e Luscinda, o casal Cardénio e
Doroteia, que no meio de uma história narram a sua própria vida como casais
desavindos. Segue-se uma autêntica novela, a história do Curioso Impertinente, que ao fim o cura se recusa a creditar,
porque “se a verdade é fingida, o autor a fingiu mal, porque não se pode
imaginar um marido tão estúpido”, mas que nem assim nos deixámos de rir. D.
Quixote faz importantes discursos sobre as armas e letras, e pede para que seja
contada a história do cativo, que não é senão outra novela autobiográfica sobre
a prisão do autor em Argel. Aconteceu depois que a D. Quixote deu um ataque de
fúria quando estava a dormir, porventura a sonhar, e que, tomando-se do seu
chuço furou uns odres de vinho tinto que ali havia, inundando o quarto, numa
grande batalha em defesa da princesa Micomicoa, de um reino onde Sancho Pança
ainda esperava receber um condado. Quem não gostou nada disso foi o
estalajadeiro, que não queria ficar com aquele prejuízo. É no XXXVI capítulo
que os dois casais se reconhecem, no meio de desesperado desmaios e prantos, e
D. Fernando, que andara com Luscinda, reencontra Doroteia, e Cardénio
reencontra Luscinda, que desfeiteara. Mas a história ainda se vai complicar mais
com a chegada do barbeiro a quem foi roubada a bacia, a pretexto de ser o elmo
de Mambrino. Como se não bastasse esta confusão chegam os quadrilheiros da
Santa Inquisição para prenderem D. Quixote, acusado de libertar os presos
condenados às galés (galeotas). O padre e o barbeiro tentaram-nos convencer da
sua insanidade mental, mas a eles isto não convenceu, “tinham de o levar ao tribunal
ainda que fosse mil vezes para eles o libertarem uma”. A custo o conseguem
convencer a sair dali, levando-o algemado num carro de bois, que depois
libertaram para mais dissabores, a que não faltou uma procissão, a que ele agitadamente
acometeu, sobre o pretexto de libertar a imagem que vinha no andor. Por fim lá
chegaram a casa, para consolo da sobrinha e da governanta. A mulher de Sancho
Pança estava à espera que ele trouxesse grandes riquezas. Ele disse que não,
mas que trazia muitos valores, que se eram grandes ou não ela não os via. Depois
se saberá que trouxe cem escudos, abarbatados de maneira pouco própria na Serra
Morena. Mas a fama dos nossos heróis já ia longe, não só no espaço como no
tempo, pois que numas ruínas da ermida que ali estavam a reconstruir foram
encontrados pergaminhos com versos castelhanos onde estavam descritas a formosura
de Dulcineia de Toboso, a figura do Rocinante, a fidelidade de Sancho Pança, e
mesmo epitáfios e sepultura da grande figura que foi D. Quixote de la Mancha,
estando ele vivo.
II Volume (Segunda Parte)
O
segundo volume do D. Quixote de la Mancha,
até pelo título é ligeiramente diferente do primeiro, Miguel de Cervantes em
vez de fidalgo tratou-o por cavaleiro. Este tomo trata da terceira saída de D.
Quixote, que começa cerca de um mês depois de ter terminado a segunda, mas que
ele publicou apenas em 1615, apesar de pelo meio aparecer uma continuação apócrifa
das aventuras de D. Quixote, feita por um autor anónimo. Miguel Cervantes,
tendo verificado o êxito desta obra, para que este segundo tomo não desmerecesse
o primeiro e não o repetisse, dedicou-lhe bastante tempo de concepção e
aprimoramento. Estruturalmente este tomo deixa se ser constituído por partes,
mas apenas por capítulos, mais pequenos – setenta e dois. E formalmente o tema
é tratado de uma forma mais estreita, os nossos heróis tornaram-se mais
experientes e avisados, não se alargam por grandes loucuras. O autor, sabendo
que estas personagens eram já muito conhecidas, deu-lhes vida própria, fazendo com
que fossem recebidas com o garbo e distinção de pessoas já famosas, como se
fossem reais. Algumas personagens (fictícias) aparecem mesmo a explorar as
paranóias cavaleirescas de D. Quixote e a sandice de Sancho Pança.
Este
segundo volume começa, pois, com um prólogo em que denuncia um tal Fernandez de Avellaneda, natural de
Tordesilhas, que, explorando o êxito do primeiro volume (Primeira Parte) de D. Quixote de la Mancha publicou sob o
anonimato a continuação apócrifa das suas aventuras, ainda para mais tratando-o
por maneta. Mas Cervantes, se se mostra indignado com este aproveitamento, até
parece gozar com a situação e corrige a própria versão apócrifa, servindo-se
das suas ideias, multiplicando o ridículo de tudo aquilo. Todavia não está
satisfeito com aquele aproveitamento, e parece escrever este volume, para ele
Segunda Parte de D. Quixote de la Mancha,
para assim rectificar a situação e repor a verdade dos seus heróis, atestando
que esta parte “é cortada pelo mesmo artífice e do mesmo pano que a primeira, e
que nela dá D. Quixote aumentado, e, finalmente morto e sepultado, para que
ninguém mais se atreva a levantar-lhe novos falsos testemunhos”.
Do I ao
VII capítulo D. Quixote recupera energias, a sobrinha e a governanta tratam
dele. Entretanto tem acaloradas conversas com os amigos e trava conhecimento
com o Bacharel Sansão Carrasco, que se diz admirador das suas façanhas, e de
quem se torna amigo. E quando ninguém o espera é tomado pela ideia fixa de
iniciar mais uma saída, a terceira. O padre e o barbeiro tentam demovê-lo, mas
sem sucesso, perante o desespero da governanta e da sobrinha, que temem o pior
daquelas saídas. Por fim vem o próprio Bacharel Sansão Carrasco, a pedido das
duas, fazer mais uma tentativa para o dissuadir daquela loucura, na esperança
de que, sendo amigo dele e admirador, tenha mais êxito que os primeiros, mas também
ele vai fracassar neste objectivo. D. Quixote e Sancho Pança começam a
conferenciar, e já ninguém os poderia deter de mais uma saída, perdendo-se os
dois por esse mundo de Deus. Um dia ao anoitecer, sem que ninguém os visse, ali
vão eles a caminho da aldeia de Toboso, onde D. Quixote esperava encontrar a
sua Dulcineia. No livro se conta o que ali ocorreu.
Não o
tendo conseguido deter ali em casa, já depois dele ter saído, o Bacharel Sansão
Carrasco ainda vai antepor-se perante ele, armado em o Cavaleiro dos Espelhos, desafiando-o
para um combate em campo aberto, pensando que através deste desaire o fizesse
voltar para casa, onde melhor podia cuidar da saúde e da fazenda. Anda com ele
disfarçado no bosque, e, apesar de ser apelidado de valente pelo seu
antagonista, não se preparou como devia para defrontar a fúria D. Quixote, sendo
atirado ao chão pelo braço forte deste, e, em vez de o fazer voltar para casa,
mais o incentivou a prosseguir naquela grandiosa aventura de cavalaria. Com
isto vai do capítulo XII ao XVII, e mais se avolumou no capítulo seguinte,
quando ele se quis defrontar os leões de um circo, que, cansados da viagem e
cheios de fome, nem se dignaram vir cá fora desfazê-lo em pedaços, não obstante
as jaulas tivessem sido abertas, já que ele era um magricela ossudo, sem
qualquer odor estimulante que lhes despertasse o seu apetite.
Por esta
altura já D. Quixote de la Mancha era uma figura muito conhecida, a sua fama espalhava-se
pela Terra como erva em terreno fértil, e foi parar a casa de D. Diogo de
Miranda, que, conhecendo as suas façanhas lhe deu hospitalidade, e com quem ele,
a esposa e as criadas se acabaram por divertir, entrando numas tantas aventuras
cavaleirescas, que não agradaram a todos, e obrigaram uma vez o seu cura a
aborrecer-se e regressar à sua residência, quando lhe foram beijados uns
sapatos. A partir desta casa, que ele tinha como o castelo do Cavaleiro do
Verde Gibão, envolveu-se em dezenas de aventuras, como a do pastor enamorado, a
do desencanto de Dulcineia de Toboso, a da aia Dolorida, até à vinda do cavalo
Cravilenho, tendo pelo meio outras tantas, que o melhor mesmo é lê-las, para se
divertirem pela maneira inteligente e ajuizada como são encarados por D.
Quixote, e ler os diálogos cheios de sabedoria que ele trava com Sancho Pança.
Esta saga vai do capítulo XVIII ao XLI.
E
chega-se finalmente ao momento em que D. Quixote vai recompensar o seu fiel e
esforçado escudeiro Sancho Pança, contando com a ajuda do Conde D. Diogo de
Miranda, concedendo-lhe o governo de uma ilha. Antes de tomar posse, o
previdente e precavido D. Quixote, ciente da mais que sabida e reconhecida
ingenuidade de Sancho Pança, para não dizer idiotice, vai dar-lhe uma série de conselhos
valiosíssimos para governar aquela ilha, designada de Baratária. Claro, não
podia ser muito cara, e que bem podiam servir, se soubéssemos fazer dela uma boa
síntese, para distribuir pelos homens que gerem o destino do mundo, que bem
precisados estão. “Infinitas graças dou ao céu, Sancho amigo, que primeiro que
eu me tenha encontrado com alguma sorte, te tenha cabido a ti receberes e
receberes e encontrares ventura. Eu, que se tivesse tido sorte propícia já te
teria dado a paga dos teus serviços, começo agora a melhorar a minha situação,
e tu, antes de tempo, contra a lei do decurso razoável do tempo, vês-te
premiado pelos teus desejos”. É assim, desta forma solene, que ele vai começar
a sua prelecção, que é longa e sábia. O seu governo tem uma história rica e
divertida, digna de ser contada, que vai do capítulo XLII ao capítulo LIII, tem
de ser o leitor a fazê-lo, para não perder pitada do que ali se diz, embora
desde já se possa garantir que exerceu um governo com muito brio e ponderação.
Chega-se
por fim àquela que pode considerar com a última parte, em que Sancho Pança, um
tanto desiludido, deixa o governo da Ilha de Baratária para voltar às aventuras
com D. Quixote. Depois de mais uma acção generosa de D. Quixote na defesa da
aia D. Rodrigues e dos sucessos que teve com Altisidora, criada da duquesa,
parte em direcção a Barcelona, onde, já o conhecia dos livros, é recebido por
D. António, e lhe dá guarida na sua casa, permitindo que ele prossiga ali com
as suas façanhas. Porém, em casa receavam pela sua saúde, e tendo-o localizado,
o Bacharel Sansão Carrasco foi mais uma vez no seu encalço para o convencer a
regressar. Sabendo que as suas palavras avisadas não iriam sortir efeito, tentou
criar uma situação que o levasse a retroceder. Disfarçado em O Cavaleiro do
Bosque, o Branca Lua, vai ali desafiá-lo para um combate, e agora, mais bem
preparado do que na primeira vez, consegue bater D. Quixote, fazendo
enfraquecer o seu propósito de continuar aquela aventura. Este, desiludido com o seu desaire
perante o Cavaleiro do Bosque, resolveu fazer-se pastor e seguir a vida de
campo. E com isto acabou por regressar com Sancho Pança para a sua aldeia, onde
foram recebidos festivamente. Foi grande a comoção de Teresa Pança ver chegar o
marido, e muita a alegria da governante e sobrinha por receberem em casa D. Quixote.
O Bacharel Sansão Carrasco também estava lá para as apoiar naquele
acontecimento.
Mas a
idade não perdoa, ao fim de algum tempo D. Quixote adoece e chega ao fim dos
seus dias, quando menos se esperava. Chamam o médico, mas o seu pulso está
enfraquecido, "mais se lhe trate da alma que do corpo", que tem o fim à vista. É
então que volta ao seu verdadeiro juízo e reconhece o malefício da leitura dos
abomináveis livros das cavalarias”, que leu em prejuízo de outros que melhor
lhe podiam encher a alma. Manda chamar um confessor para se confessar e um escrivão
para lavrar o seu testamento. Sancho Pança ainda insiste em que continue a
viver, “porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é deixar-se
morrer sem mais nem menos, sem ninguém o matar”, mas já não estava nas mãos
dele continuar a viver. Quer ficar para a posteridade como Alonso Quixano o
Bom, e que a história dos seus feitos não seja reconhecida senão a vinda de
Cide Hamete Benengeli, que ele considera como o seu biógrafo oficial. Depois de
algumas palavras azedas contra o escritor fingido e tordesilhesco, que se
atreveu a falar de si “com pena de avestruz grosseira”, despede-se de todos com
um voto de “Saúde e Adeus”.
ESTILO LITERÁRIO
O
Primeiro Volume (Primeira Parte) é maneirista, cheio de ênfase, de
artificialismos, de dramatismos. Pretende subverter os ideais do Renascimento, está
muito focado na espiritualidade, com uma rigidez quase mimética da realidade,
para lhe dar uma visão de si mais interior, mais humana, na procura de uma
realidade que encante e assombre. O livro é atravessado de ambiguidades, com
situações deformadas e exageradas, que o autor procura dar veracidade,
atribuindo-as a encantamentos vistos e sentidos por D. Quixote, e só por ele. A
sua visão do mundo é mais intimista, aqui se retratam muitas paixões, que vão
sendo feitas e desfeitas, mais que no segundo volume, mais voltado para o
exterior, para o divertimento. Estruturalmente este tomo compõe-se de quatro
partes. A sua linguagem é hiperbólica, encantatória, prolixa em adjectivações, e
a acção é reforçada por vezes com mais de uma forma verbal. Vejamos alguns
exemplos: – No capítulo IV, páginas 61, escreve: “A importância está em que,
sem vê-la, haveis de acreditar, confessar, afirmar, jurar e defender…”.
Capítulo XVIII, página 167: “endireitar justiças e a reparar ofensas”. Capítulo
XXII, página 195: “nesta seriíssima, altissonante, minuciosa, doce e imaginativa
história”. Capítulo XXV, página 227: “mostrou a sua prudência, valor, valentia,
sofrimento, firmeza e amor…”. Capítulo XXIX, página 284: “como pediam e
pintavam os livros”. Capítulo XLVI, página 458 “tenho por certo e por
averiguado”. E então mais à frente, na página 459, quando D. Quixote vitupera
Sancho Pança, usa nada mais nada menos que dez termos, “Oh vilão, velhaco,
malcriado, destravado, ignorante, língua de trapos, desbocado, atrevido,
murmurador e maldito”. E dito naquele contexto diverte-nos.
No
segundo volume (Segunda Parte), publicado dez anos depois, o autor deixa de
dividir o livro em partes, aumenta-lhe os capítulos, que são mais pequenos, e
escreve com mais elaboração. Os limites impostos à acção, que no primeiro volume
eram amplos, permitindo um grande espaço para a liberdade e para o devaneio,
aqui são mais estreitos. É de estilo barroco, embora não muito distante do
primeiro, sobretudo nas primeiras páginas. Entre o maneirismo e o barroco não
há muitas diferenças, são uma continuação um do outro, só mais recentemente, e
sobretudo nas outras artes se tem dado autonomia aos dois. É contudo
perceptível que este volume valoriza-se mais o exterior, as aparências, o
espectáculo, a D. Quixote é-lhe dada hospitalidade, e ele entra nela, fazendo
rir os seus anfitriões, como estando a representar perante eles uma peça de
teatro. Mas a linguagem continua hiperbólica, com muitos floreados, reforçando
a acção e a adjectivação, que só se torna mais sóbria mais para o fim. Vejamos mais
alguns exemplos: – Capítulo X, página 585: “sendo de um cavaleiro andante, por
força havia de ser grandíloqua, alta, insigne, magnífica e verdadeira”. E na
página 587: “há diferentes opiniões como há diferentes gostos”. Capítulo X,
página 627: “embora com este medo e receio”. Capítulo XVII, página 683: “haverá
que não te sejam apropriados e convenientes”. Capítulo XVIII, página 688:
“falou-me de rara habilidade e subtil engenho”. Capítulo XXXI, página 783: “que
plenamente reconheceu e acreditou ser cavaleiro”. Capítulo XL, página 848: “de
muito bom grado e com a maior satisfação”.
Em ambos
os volumes, mas mais no primeiro, há uma enorme distorção da realidade, como
quando D. Quixote toma as pás de um moinho de vento por lanças, ou como quando num
rebanho de carneiros vê um exército, ou ainda quando toma as casas por
castelos, e assim por diante. E até uma distorção no tempo, como por exemplo, quando
no fim do primeiro volume os nossos heróis chegam à aldeia e descobrem uma
caixa com “pergaminhos escritos com maiúsculas romanas, mas em versos
castelhanos, que continham muitas das suas façanhas” sob os alicerces de uma ermida
que estavam a erguer (página 506), portanto, num tempo remoto em que nem sequer
os nossos heróis ainda tinham nascido. A situação é surrealista, a sua fama não
se estendia só ao futuro, mas ao passado! Nos dois volumes Cervantes utiliza a
terceira pessoa, para dar mais distanciamento e um ar histórico à narrativa,
usa uma linguagem hiperbólica cheia de provérbios, comparações, metáforas e
antíteses para realçar a acção, vários modelos narrativos com outras tantas
perspectivas da realidade, ainda que mais no segundo volume. Nos diálogos
serve-se frequentemente no estilo oratório, sobretudo nos conselhos e
reprimendas de D. Quixote a Sancho Pança.
UM COMENTÁRIO GERAL
D. Quixote de la Mancha é a última machada nos romances de cavalaria,
os best-sellers daquele tempo, que
hoje ninguém lê, assim como nos ideais da Idade Média. E aparentemente Miguel
Cervantes parece ter um propósito contrário, mas é tão agigantado o seu esforço
em os reabilitar que facilmente eles caem no descrédito e no ridículo. E tenha
esta obra um efeito cómico, seja capaz de nos divertir, que possui um conteúdo
muito mais abrangente, ela contém muita e sábia descrição social, que nos
permite conhecer melhor a sociedade daquela época, inclui um estendal imenso de
saborosos provérbios, ouvidos sobretudo da boca de Sancho Pança, utiliza
latinismos apropriados, que ainda hoje ficam bem no texto, e é sublimada por
deliciosos poemas. Finalmente contém incursões históricas e literárias eruditas,
que se estendem da antiguidade clássica até ao período da literatura cavaleiresca.
No D. Quixote de la Mancha por vezes
ficamos intrigados, não sabemos se das coisas que são ali ditas emana uma
sabedoria que só pode ser concebida e abarcada por gente lerda das ideias, ou
se as idiotices que estamos a ler são pensadas por alguém com uma mente obtusa que
nos obrigue a pensar duas vezes para chegarmos à sua compreensão, e por vezes é
isto que nos faz rir, tratando o autor de coisas sérias. Estamos perante a
comédia, a farsa, um mundo encantado e delirante que nos atrai e diverte, mesmo
o que é estúpido é raciocinado e dito com muita inteligência. No meio da
fantasia e do sonho, e também da idiotice, da amargura e do desaire, usando uma
linguagem simples, uma fluidez admirável, Miguel Cervantes consegue fazer-nos
reflectir, obrigando-nos a rir da vida de então e das suas próprias misérias,
que ainda têm muito a ver com as de hoje.
Embora
não o esperássemos, trata-se de uma obra de matriz cristã e católica. O autor,
seja ele um homem crente, não quer pisar o risco do seu livro ser indexado e não
ser publicado. As personagens são devotas e respeitam os limites da fé
estabelecida. A época não permitia muitas veleidades aos autores. Daí talvez
ele se ter ligado a uma ordem religiosa, onde teria mais cobertura moral. Contudo,
a fé que ele ali professa, antes de ser uma apologia fanática do catolicismo, é
de uma ingenuidade a rondar a inocência, cheia de ternura e bonomia, que perante
tantos disparates nos mantém o sorriso da boca. A obra propaga ideais de uma
grande humanidade, que ainda que nos despertem o humor, inspiram tolerância, e são
de uma generosidade e sapiência a toda a prova, como aquela de que se investe
D. Quixote contras as injustiças do mundo, autopromovendo-se como o defensor de
donzelas ameaçadas na sua honra, dos órfãos abandonados, das viúvas
desprotegidas.
Por um
estranho artifício que ele chama encantamento, Miguel de Cervantes parece fazer
um apelo à nossa imaginação para transformarmos o feio em belo, a tristeza em alegria, o injusto em equitativo, o fraco em forte, o frágil em grandioso.
Desta forma talvez possamos suportar melhor as injustiças e contrariedades do
mundo, como o fez o próprio autor, e contra as quais D. Quixote travou no ocaso
da sua vida uma luta heróica, na crença de as ter superado, sem desânimos, perseverante, não obstante os seus sucessivos desaires e as várias cargas de
pancada que apanhou, que encarava como uma contingência da sua condição de
cavaleiro andante – o admirável seria que passasse ileso por tais cometimentos.
E o autor consegue este efeito com grande engenho e de forma graciosa, cheio de
ironia.
As aventuras
de D. Quixote são apresentadas como verdades históricas rigorosas e insofismáveis,
quando fantasiam a mais pura ficção dos livros de cavalaria, já desacreditados,
e os nossos heróis são retratados como os mais corajosos, os mais valentes, os
mais famosos de todo o Orbe, ainda que tomados pela loucura e idiotice
desatinem a todo o momento e venham a descambar de desaire em desaire. O nosso
Cavaleiro de la Mancha, já às portas da morte, para garantir que a sua história
não seja deturpada, estabelece que a fiabilidade dos seus feitos só seja
reconhecida a Cide Hamete Benengeli. Tal era a sua preocupação quanto à verdade
dos factos! Miguel Cervantes, na sua simulada obsessão de traduzir com
exactidão os grandiosos feitos de bravura e longanimidade de D. Quixote dá
evidências de examinar com grande minúcia as suas fontes, que reputa de muito
fundamentadas e criteriosas, e isto é mais um motivo para nos divertir.
No fim
do segundo volume (Segunda Parte), de forma mais acentuada quando entra em
Barcelona, a fantasia exaspera-se e invade o reino da realidade. As próprias
personagens saem do romance, adquirem vida própria para se reencontrarem no
meio das pessoas, onde já são mundialmente conhecidas e reconhecidas, como o
foram em Portugal, em Valência, Barcelona, e seriam na França, na Inglaterra, e
a seguir por toda o Orbe. A brincar que o diga Miguel Cervantes parecia antever
já o elevado destino desta obra, e aquilo que dizia em ficção já o sabia de
facto. Estamos perante uma obra, das mais traduzidas do mundo, porventura o
maior romance de todos os tempos, cuja actualidade se mantém, continuando a inspirar
muitos autores. D. Quixote parece querer investir-se de qualidades épicas na
defesa da verdade e da justiça, chamando à tolerância, pugnando pelo
enobrecimento da mulher. No seu sentido mais profundo não será louco, mas um
visionário, loucos serão aqueles que desistiram de lutar por um mundo melhor, amuralhado
no conforto dos seus interesses mesquinhos.
3/7/2016
Martz
Inura
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