JOÃO DE MELO





JOÃO DE MELO
Gente Feliz com Lágrimas (524 p.)
DOM QUIXOTE (1988)

    

 


     Este romance já foi muito criticado e comentado, mas não é demais voltar a falar dele, porque embora muito premiado ainda paira sobre o seu espectro a sombra de uma distância abstrusa. Julgo que ele não se integra plenamente na cultura do regime, pois infringe as regras, ultrapassa as convenções, passa por temas desabituados da literatura, glosa matérias que talvez não devam ser recomendadas às criancinhas. Parece que alguns, que se julgam os génios destes tempos, ignorando que a verdadeira genialidade estará em quem tenha criado esta sementeira de estrelas que vemos à noite no firmamento, ainda lhes custa a aceitar,  embora lhe teçam envergonhados encómios, que este é, a vários títulos, um dos mais importantes romances da Língua Portuguesa.


Um vista de Nordeste, nos Açores, onde se inicia a ação do livro

     A obra está dividida em cinco livros, se lhe quisermos ignorar o Livro Zero. O Livro I retrata a vida de Nuno Miguel nos Açores até aos dez anos, no seio de uma família de pai tirano e mãe passiva, quase inexistente, e muitos irmãos e irmãs, como ele também sujeitos à tutela violenta do pai e às condições de miséria que então se vivia. Neste livro a história é contada na primeira pessoa, mas por três elementos da família, técnica já empregada por Oscar Lewis em Sociologia nos Estudos de Caso, permitindo que vejamos o percurso daquela família a partir de três narradores: disponhamos de três ópticas diferentes. Ler esta parte, talvez a mais importante, é também um exercício de lucidez, como que a reconhecer que há outras facetas da realidade, construída a partir de uma verdade que não é só nossa. O trecho é atravessado por uma torrente caudalosa de lirismo, recorrendo-se muito a imagens tiradas do mar, da natureza, da bíblia: espaços que terão marcado o autor.
     O Livro II regressa à terceira pessoa do singular, é centrado na personagem principal, retrata a vida de Nuno Miguel no seminário, com todos os seus ingredientes pesados, muito normalizados, repressivos, próprios das instituições totalitárias daquele tempo, ainda mais do que as de hoje, porque tinham o seu fulcro na Ditadura. A personagem é colocada num universo austero, onde quase tudo é proibido: falar alto é proibido, rir é proibido, ser feliz é proibido. Cultiva-se a dor de estar vivo. A liberdade é rateada ao corpo, que não lhes pertence, cercado de uma muralha de portas fechadas, e também ao pensamento, que tem muitíssimos espaços interditos. A sua alma não tem asas, está prisioneira de si própria. E é a partir da puberdade que os seminaristas são mais vigiados, já que o provincial quer saber se eles têm mesmo vocação para o sacerdócio, ou se andam ali para concluir de borla o curso dos liceus. É uma situação dramática, pois aos dezasseis anos, mesmo sem ter vocação, muitos não estão preparados para enfrentar o mundo, e vêem naquela saída como um grande falhanço da sua vida.  
     A passagem por seminários foi algo de marcante neste país em determinada época, a inspirar belos romances na Literatura Portuguesa. É algo que ainda precisa de um estudo aprofundado, e há aqui matéria de interesse para investigar. Alguns, ao saírem da instituição sentiam-se proscritos, revoltados, desiludidos, e depois deixavam morrer em si o Deus que lhe impuseram, tornando-se cépticos, ou mesmo ateus confessos. Contudo, outros, sentindo naquela saída a dor de um parto, voltavam-se para a vida com uma outra fé, que conseguiram ir mantendo. Há entre os dois extremos, naturalmente várias cambiantes. Mas no geral saíam todos de lá com uma alma agigantada por grandes inquietações, uma rígida disciplina, aturados estudos, longas reflexões. Claro, cada um com a sua verdade, fruto das circunstâncias, portanto mais psicológica que lógica. João de Melo da a sua.
     No Livro III, Nuno Miguel (o menino que quem os demais desdenhavam e o pai batia, porque não tinha muita força, e sequer jeito para as coisas do campo, que tinha, pois, mais cérebro que músculo, e é a prova provada que a  inteligência supera a força), segue, já entrado na idade até ao Canadá, para ver pela última vez a mãe, que está moribunda, é a sua Morta, e vai encontrar toda uma família transposta para aquele imenso país à procura dos Dolas, do dinheirinho, sentindo-se um tanto espúrio. Família que consegue fugir à miséria das Ilhas, mas que ainda não está completamente integrada, usando cada vez mais palavras inglesas no meio do Português, que a segunda geração já está a esquecer. 
     O Livro IV capta a versão de Marta, mulher de Nuno Miguel, sobre este e a relação entre ambos, que ele por vezes rebate, ressurgindo por entre as suas intervenções, como para justificar-se. Há aqui ainda um  contraditório. E o Livro V é o regresso deste à Ilha, para ir ver a casa dos pais, vazia de toda uma família, em diáspora pelo mundo, mas que apesar de vazia e em ruína, está cheia de alma, tomada de um sentimento de grandiosidade infinita, impagável. Possui algo de sagrado. Por isso ele a herdou e não a vende, embora não saiba o que fazer com ela.
     Quem queira dizer mal deste romance poderá acusá-lo de ter uma estrutura demasiado complicada para ser percebido por todos; que, indo de fórmula em fórmula, através dos seus livros, perde alguma unidade formal; que o autor leva o realismo a extremos de se tornar, se não obsceno, pelo menos chocante, tétrico em demasia, e descaradamente autobiográfico. Mas, contra estas críticas poderá argumentar-se que a sua estrutura, sendo complexa é fácil de perceber; que formalmente o romance é mesmo assim, polifónico; que os desequilíbrios que se verificam, traduzem, no fundo, o peso que a vida teve na personagem, naturalmente muito mais poderoso na infância. E, quanto ao realismo excessivo, que alguns dizem mágico, o autor limita-se a descrever a nua e crua realidade, que, sendo por vezes agreste, pungente, aflitiva, ridícula, nem por isso deixa de ser matéria que não se deva exposta e questionada. Por último, o facto do romance ter muito da vida do autor é um desafio que ele quis correr para conseguir tirar mais espírito ao mundo que o rodeia, e que é vulgar na maioria dos autores, sobretudo nas obras iniciais, e não só. Cito o caso de Hemingway, que quando casou certa vez, no contrato de casamento constava uma cláusula que o proibia de referir-se à sua vida privada em livros futuros, expondo a esposa, tal a sua tendência para se revelar.
     Gente Feliz com Lágrimas é um romance com uma força expressiva difícil de igualar. Só com uma componente autobiográfica ele poderia ter ido tão longe e tão profundamente nos relatos que faz. João de Melo que não fique agastado por o colarem demasiado a esta obra, porque vale mais um excelente romance que cem medianos, se há matemática para isto. É uma obra que retrata magistralmente toda a saga de uma família, e a inquietude de um homem num determinado tempo: tem muito a ver com os Açores, e também com este país de emigrantes: tem muito a ver com a Humanidade. Ganhou prémios, foi adaptada à televisão e ao teatro. É, em suma, um romance poderoso, com muita energia e originalidade: comoventes. Nas suas numerosas páginas, o autor ultrapassa amplamente os horizontes da trivialidade, escrevendo, quase sempre em alta intensidade, indo, com rara clarividência até ao interior da vida, tomado pela ternura e pavor que as coisas lhe inspiram, aqui e ali por escadas miríficas de uma enlevada e profunda poesia.

          03/2011 Martz Inura