PÚBLIO VIRGÍLIO MARO
A Eneida
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA (3ª
EDIÇÃO)
Tradução da versão francesa e nota
introdutória de Cascais Franco
O
HOMEM
Públio
Virgílio Maro (Marão) nasceu em 15 de outubro de 70 a.C. em Andes, perto de
Mântua, na antiga Gália Cisalpina, e faleceu em 21 de setembro de 19 a.C., aos
cinquenta anos, em Brundísio (Brindes), um porto do sul da Itália. Sobre estes
factos ainda se fazem algumas objeções. Julga-se que é originário de uma
família de latifundiários, estudou em escolas de Cremona, Medilano, Roma e
Nápoles, provavelmente direito e retórica, mas também filosofia, história e
ciências da natureza. Viveu num período conturbado de guerras entre César e Pompeu,
assistindo ao assassinato de César em 44 a.C. Parece que chegou a exercer
advocacia, mas a breve trecho começou a interessar-se mais pela escrita. Entre
42 e 40 a. C. teve de se afastar de Mântua, onde possuía propriedades, devido à
guerra civil. Para escrever A Eneida vai à Grécia em 27 a.C. colher elementos.
Ele tinha como seu patrocinador Caio Cílnio Mecenas (70 a.C. – 8 a.C.), que também
apoiou Horácio e Propércio. Adoece na Grécia em Megara e regressa à Itália na companhia do
imperador Octávio Augusto, que também o apoiava neste seu desiderato de escrever
uma obra de cariz imperial. Contudo, morreria pouco depois, ao aportar a
Brindes, sem tempo para lhe dar uma última revisão. O seu túmulo, ou o que resta dele, está em Nápoles.
A
OBRA
Entre
outras obras menores, cuja autenticidade se discute, Públio Virgílio escreveu:
– As Bucólicas ou Éclogas,
em número de 10, influenciadas por Teócrito, versando temas rústicos,
campestres, pastoris, como se a cidade já o cansasse.
–
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor, Caio Cílnio Mecenas, com
influências de Hesíodo e Lucrécio, dentro do mesmo desiderato, pretendendo
fazer uma apologia da natureza e da vida rural.
–
A Eneida, de que vamos tratar mais
pormenorizadamente.
ALGUMA
MITOLOGIA LIGADA A ESTA EPOPEIA
O livro perde um pouco para leitor
moderno, que ignora a mitologia greco-romana. Estas figuras, quer pelo seu
passado, quer pelos seus laços de família, davam muita coloração à obra. Vejamos
algumas personagens importantes, a quem se referem alguns dados, sempre
insuficientes para a uma leitura profunda deste livro:
Entre
os Humanos:
- Acates: fiel amigo de Eneias
- Acestes: rei mitológico da
Sicília
- Ajax: Grande herói troiano
- Amata: esposa de Latino. Quer que
a filha, Lavínia, case com Turno, seu sobrinho
- Andrómaca: viúva de Heitor
- Anquises: pai de Eneias
- Arrunte: assassino de Camila,
vingado por uma ninfa
- Ascânio: o filho de Eneias e de
Ceúsa
- Camila: filha do rei dos voscos,
amazona heroína, protegida de Diana
- Caronte: o barqueiro dos
infernos, carrega a alma dos mortos na sua barca no Rio Estige
- Cassandra: filha do rei Príamo,
irmão de Heitor e Páris, que profetizou a destruição de Troia
- Cérbero: o porteiro dos infernos
- Dédalo: construtor do labirinto
de Creta, pai de Ícaro.
- Dido: rainha de Cartago,
simboliza Cleópatra. Suicida-se ao ver partir Eneias
- Eneias: o protagonista da
epopeia, piedoso e corajoso, muito responsável, capaz de se comover. Representa
as virtudes da cultura helénica
- Evandro: filho de Hermes e de uma
ninfa, emigrado grego. Rei dos árcades, ligado ao palatino romano, uma das sete
colinas de Roma
- Heitor: herói troiano, filho de
Príamo
- Heleno: filho de Príamo, esposo
da viúva de Pirro
- Ilioneu: porta-voz de Dido
- Jarbas: um dos pretendentes de
Dido
- Laconte; adivinho troiano que
prevê a perfídia do cavalo
- Latino: rei, filho de Fauno, pai
de Lavínia, vai ligar Eneias à fundação de Roma.
- Lauso: filho de Megêncio, morto
por Eneias na batalha do Lácio com o pai
- Lavínia: filha do rei Latino e de Amata, pretendida por Eneias e Turno
- Menelau: rei de Esparta, marido
de Helena
- Messapo: guerreiro de Turno, domador
de cavalos
- Mezêncio: rei etrusco, pai de
Lauso. É morto por Eneias
- Mnesteu: guerreiro da confiança
de Eneias
- Niso e Euríalo: amigos homo,
natural naquele tempo, que tentam avisar Eneias e morrem
- Palante: filho de Evandro, aliado
de Eneias, morto por Turno
- Pigmaleão: irmão de Dido
- Pirro: rei de Epiro e da
Macedónia, ligado às vitórias ruinosas
- Polidoro: filho de Príamo e de
Hécuba
- Príamo: rei de Troia. Teve várias
mulheres. Pai de Heitor, Páris, Polidoro, de Creúsa...
- Turno: rei dos rútulos (túrdulos),
filho de Dauno e de uma ninfa. É o chefe dos exércitos contra Eneias, protegido
de Marte. Representa as virtudes do povo latino.
- Siqueu: esposo de Dido, morto por
Pigmaleão
- Ulisses: Odisseu, principal herói
da Odisseia de Homero
Entre os deuses e semideuses:
- Alecto: deus da fúria, das
maldições
- Apolo: deus da
beleza e do Sol, filho de Zeus e de Leto; irmão de Artemisa e Atena
- Circe: deusa que com um feitiço transforma os homens em animais
- Diana: filha de Júpiter e Latona,
deusa da lua e da caça, protetora da amazona Camila
- Éolo: o deus dos ventos, a ter em
conta na terra e nos mares
- Fama: deusa do boato, da difusão dos
acontecimentos
- Fauno: rei mítico do Lácio transmutado
em deus
- Juno: mulher de Júpiter, ligada à
Itália e a Cartago. Mãe de Marte, inimiga de Eneias
- Júpiter: o pai dos deuses, apaziguador,
deus do poder e do raio rápido
- Juturna: deusa protetora de Turno,
por quem intercede a Juno
- Mercúrio: o mensageiro dos deuses,
da comunicação
- Neptuno: o deus dos mares e das
tempestades, irmão de Juno
- Polieno: ciclope, filha de Etna
- Saturno: deus do tempo, expulso
do céu. Refugiou-se no Lácio, está muito ligado a Roma
- Sibila: sacerdotisa feiticeira,
semideusa que residia em Cumas e leva Eneias aos infernos
- Vénus: a deusa da beleza e do
amor, mãe de Eneias. Quer a paz nas terras italianas
BREVE
RESUMO
Livro
primeiro – A chegada de Eneias a Cartago
Virgílio evoca a grandeza dos feitos
do seu herói, Eneias que vem para o Lácio fundar uma cidade, e para ali traz
os seus deuses, de onde sairá a raça latina. Eneias, depois da tomada de Troia
pelos gregos, abandona a cidade com a sua frota, passa pela Sicília, e entra no
mar alto. Intervêm aqui os deuses, e assim será durante todo o livro. Juno,
esposa de Júpiter, para castigar os furores de Ajax, lança o fogo rápido de seu
marido e dispersa a armada. Vale a Eneias Vénus, a quem ele pede ajuda. Éolo, deus
dos ventos, serena as águas e ele vai aportar a Cartago, grande porto africano,
onde a rainha, Dido, o recebe principescamente. Durante a estadia, Eneias vê
representações murais da Guerra de Troia, o que o comove. A rainha, entretanto,
começa a apaixonar-se por ele…
Livro
segundo – O saque e a ruína de Troia
A rainha Dido pede a Eneias que lhe
relate a queda de Troia. Ele enaltece a grandeza do reino de Príamo, a
majestade dos seus palácios, a coragem dos seus heróis, e refere-lhe o episódio
do Cavalo de Troia, que os gregos deixaram falsamente como despojo de guerra, e
que os troianos trouxeram para a cidade como troféu, mas que vinha
traiçoeiramente cheio de guerreiros escondidos no seu ventre. Enquanto os troianos
festejavam a falsa vitória com grandes banquetes, eles saíram do ventre do
cavalo, abriram as portas da cidade e incendeiam-na. Valeu-lhe Vénus, sua
mãe, que o mandou procurar o pai, a mulher e o filho, e o mandou abandonar a
cidade. Porém, já não encontrou viva a sua mulher Creúsa, que tinha feito uma
profecia.
Livro
terceiro – As viagens de Eneias
Eneias continua a sua narrativa,
falando da dispersão do povo do reino de Príamo pelo Mediterrâneo. Ele oferece
sacrifícios a sua mãe, Dioneia, e aos seus deuses protetores. Conta as suas
desventuras e as suas escalas na Trácia, no norte da Grécia (hoje
correspondente a parte da Bulgária), em Creta, onde corre rumores que Indoneu
foi destronado. Intervém Apolo, e ruma à Sicília, mas no mar alto defronta-se
com grandes tempestades. Por sorte vão parar a uma ilha, onde pastam manadas de
bois, e agradecem a Júpiter. Ele queria ir para a Itália, mas tão cedo não chegará
lá, devido à cólera dos deuses. Fala-lhe de como conheceu Andrómaca, viúva de
Heitor, e como se deu a morte do seu pai, Anquises. Depois de tantas provações,
termina aqui o seu relato.
Livro
quarto – Dido
Dido mostra a cidade de Cartago a
Eneias. Ela simboliza Cleópatra e o Oriente. Conjugam-se aqui as forças de Juno
e de Vénus a estimular aquele amor. Dido convida Eneias a fazer uma caçada por
terras da Líbia, está apaixonada por ele. Perdem-se numa caverna após uma
tempestade e é lá que fazem amor. Mas nem todos os deuses estão de acordo com
aquela união. De Eneias espera-se grandes desígnios, e a isso é instado por
Mercúrio, mensageiro dos deuses, que o chama à razão, lembrando-lhe a inadiável
viagem para o Lácio, onde devia fundar a cidade que substituiria Troia. Eneias
dá ordens secretamente para preparar a sua frota, mas Dido pressente que ele a
quer abandonar sem nada dizer e interpela-o. Este sofre por ter que a
abandonar, mas a isso é obrigado pelos deuses. Dido sentiu-se desprezada e vilipendiada
ao ver partir os troianos. É tomada de uma loucura que a vai levar ao suicídio.
Livro
quinto – Os jogos fúnebres
Eneias resolve partir com a sua
frota, já no mar alto pode ver vestígios da pira funérea elevando-se do palácio
de Dido. Entretanto, nos dias seguintes aproa a uma ilha onde se ergue uma alta
montanha, e lá celebra a morte de seu pai, Anquises, falecido há um ano. Há uma
regata de navios e outras competições guerreiras, integradas nas cerimónias
fúnebres. Cloanto é proclamado vencedor por Eneias, recebendo como prémio a
coroa de louros, três novilhos à sua escolha, vinho e um grande talento de
prata. Ainda há discussões sobre a justeza do prémio. O venerável Eneias
consegue apaziguar os ânimos e prossegue com a sua frota, que Palinuro dirige
em fila cerrada, cumprindo as promessas de Neptuno, deus dos mares. Mas pouco
depois sente que a sua nau flutua ao acaso, sem piloto. Palinuro pela sua
imprevidência vai jazer ignorado no areal de uma ilha.
Livro
sexto – A descida de Eneias aos infernos
Depois de ter partido daquela ilha,
Eneias faz escala em Cumas de Eubeia, terra do lendário Dédalo, construtor do
labirinto de Creta. Ali vai consultar uma sacerdotisa de Apolo, chamada Sibila.
Ele está assoberbado por um sonho, não sabe o rumo que deve dar à sua vida, e
pede para descer aos infernos e pedir conselho ao seu pai, Anquises. Obtém a
permissão dela depois da mesma se defrontar com os seus delírios. Ela segue com
ele na barca de Caronte, explicando-se algumas particularidades daquele mundo
subterrâneo. Ali encontra muitos amigos e até inimigos. Este episódio da descida ao
mundo dos mortos é inspirado da Odisseia. Dido está ali com o seu primeiro
esposo, mas mantém-se muda. É o pai de Eneias que lhe faz importantes
revelações, profetizando o grande destino que lhe está reservado e o futuro
glorioso de Roma. Anquises faz sair o filho e a Sibila pela porta de marfim,
onde estão seus companheiros, dirigindo-se a seguir para o porto de Caeta.
Livro
sétimo – A chegado ao Lácio
Eneias segue com a frota para o
Lácio, aproveitando as brisas favoráveis. Ali reina o velho rei Latino, filho
de Fauno e de uma ninfa, que o recebe com uma consagração a Hércules. Faz com
ele uma visita à cidade do Tibre numa demonstração da sua grandeza, e consulta
oráculo seu pai, que o aconselha a dar a filha, Lavínia, em casamento a Eneias.
Mas nem todos estarão de acordo, Juno evoca Alecto para provocar a guerra entre
os laurentinos (latinos) e os troianos, dificultando a união que daria origem à linhagem
do Império Romano. Entretanto, Vénus suplica a Vulcano, seu esposo, proteção
para Eneias, para que lhe forje um escudo forte como o de Aquiles da Odisseia
de Homero. Ilioneu e Latino conferenciam. Mas o rei dos túrdulos, Turno,
pretendente de Lavínia, declara guerra a Latino e consegue uma aliança com os
volscos, chefiados por Camila. Há nesta parte uma grande intervenção dos deuses, deste
Júpiter a Juno, Diana, Baco e Minerva. E no terreno grandes movimentações de
tropas. O próprio Turno avança nas primeiras filas para a batalha.
Livro
oitavo – Evando, o escudo de Eneias
Eneias quer a paz, procura evitar um
conflito armado. Mas tem inimigos como Turno, rei dos túrdulos, e Amata, tia
deste e esposa de Latino, que se opõem. Eneias consegue uma aliança com Evandro,
filho de Hermes e de uma ninfa, descendente de arcádios, e ainda o apoio dos
etruscos. Por sua vez, Vénus pede a Vulcano para mandar aos seus ferreiros fazer
uma armadura a toda a prova para Eneias. Evandro faz um festim em honra dos
seus anfitriões nos bosques sagrados, mas intervém Palante, seu filho, que
interrompe a cerimónia solene, pegando num dardo contra os teucros (troianos). É
então que Eneias dirige ao rei palavras amigáveis, dizendo que eles são
originários de uma mesma família, e deste modo consegue restabelecer a concórdia. Turno,
aproveitando a ausência de Eneias assalta o acampamento troiano. Evandro
conjuga os seus contra Turno. Há aqui uma evocação dos deuses e de Augusto César
e António.
Livro
nono – Ataque ao acampamento troiano, Niso e Euríalo
Enquanto Latino e Eneias
confraternizam, Turno, chefe dos túrdulos, reúne o escol dos seus exércitos e cerca
o acampamento troiano. Os teucros olham-nos inquietos dos seus redutos. Junto
de uma porta está Niso, e seu fiel companheiro Euríalo. Eles tentam avisar Eneias
desta perfídia e acabam por ser mortos. Muitos guerreiros de Turno transpõem os
fossos e há grande mortandade. Túrdulos e volscos atacam encarniçadamente o
acampamento. Há aqui a intervenção de heróis de ambos os lados da contenda,
muitas táticas de guerra antiga aplicadas. Porém, Marte intervém a favor dos
latinos. Os troianos fogem cheios de pavor, mas havendo o rumor do massacre das
suas tropas, o chefe Mnesteu e o impetuoso Seresto ocorrem com as suas forças e
rechaçam o ataque dos túrdulos. Turno tem de fugir e cai armado ao Rio Tibre,
tendo de nadar com dificuldade para o seu acampamento.
Livro
décimo – Façanhas e morte de Palante, de Lauso e Mezêncio
No Olimpo, Júpiter convoca então um
concílio dos deuses. Há interferências opostas de Juno e de Vénus, entre
outras. Turno, o rei dos túrdulos, neto de Saturno, volta a tomar a iniciativa,
mata Palante filho de Evandro numa sangrenta batalha, e com os rútulos assalta
o acampamento de Eneias, onde causa grande mortandade. Os seus guerreiros tentam
ainda queimar as embarcações troianas, mas graças a Neptuno estas são
transfiguradas em ninfas marinhas, e assim se salva a frota. Há muitos heróis
mortos de ambos os lados. Por momentos Eneias afasta-se de Turno, e depois
aproxima-se. Júpiter tenta equilibrar o combate, que estava agora a pender para
os teucros de Eneias, mandando para a frente o bravo Mezêncio, rei dos etruscos,
pai de Lauso, que se bate com bravura, mas sucumbe com seu filho à espada de
Eneias.
Livro
undécimo – Funerais dos guerreiros, façanhas e morte de Camila
Há uma espécie de trégua. Os
troianos conseguem vencer a batalha, fazendo um acordo com os latinos. Eneias
insta dar sepultura aos seus companheiros, entre eles o seu amigo Palas, por
quem está condoído. Também Lauso e Mezêncio, aliados de Turno, tinham
perecido naquela batalha. Entretanto, entre os túrdulos reina grande agitação,
eles não aceitam a derrota. Há reuniões, disputas e discussões sobre o que fazer. Dances
propõe um combate singular entre Turno e Eneias para terminar o conflito e
evitar mais mortes, que não se chega a realizar por entretanto terem chegado as forças de Eneias, que são
de imediato enfrentadas pelos volscos, chefiados pela amazona Camila, que morre gloriosamente
nesse combate. Com os seus exércitos derrotados, Turno foge, sendo perseguido
pelas forças de Eneias.
Livro
duodécimo – O combate de Eneias e Turno. Vitória de Eneias
Turno é forte e determinado, e ainda se recompõe.
Vê alguma fraqueza no exército de Eneias e tenta a sua sorte. Amanta, sua tia,
mãe de Lavínia, chora a sua velhice ao ver tanta miséria à sua volta. Ele instiga a que se
continue a luta. Neste comenos encontram-se, digamos, os três réis: Latino, com o seu
carro puxado por quatro cavalos; Turno, cingido por uma coroa de ramos dourados;
e Eneias, deslumbrante sob o seu escudo de Vulcano. Eneias e Latino restabelecem
um acordo. Turno não o aceita e semeia a morte e destruição em seu redor.
Eneias é ferido, mas Vénus cura-o com os seus unguentos. Júpiter insta Juno a
não apoiar tanto Juturna, irmã de Turno, para se acabar com aquela guerra. Ela
também aspira a paz, e aceita, na condição de os latinos manterem a sua língua
e os seus costumes, não se tornarem teucros. Há finalmente um combate singular
entre Turno e Eneias. Júpiter vai ser o fiel da balança desta luta. O combate inicia-se, e o poderoso Turno cai finalmente por terra, dobrando os
joelhos, é morto por um golpe de Eneias.
AS
PRIMEIRAS ESTROFES COMPARADAS COM OUTROS LIVROS
Primeiras
estrofes de A Eneida em Latim
Arma
virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam
fato profugus Lauiniaque venit
litora,
multum ille et terris iactatus et alto
vi
superum, saeuae memorem Iunonis ob iram,
multa
quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque
deos Latio; genus unde Latinum
Albanique
patres atque altae moenia Romae.
Tradução
para Português das primeiras estrofes da Eneida
(Evocação
dos feitos romanos)
As armas canto e ao varão que,
fugindo das praias de Troia,
Por injunções do Destino se instalou
primeiro na Itália,
Nas praias de Lavínio. E a impulso
dos deuses por muito
Tempo por mares e em terras vagueou
sob as iras de Juno,
Sustentando guerras sem fim para lançar as bases da Cidade,
E os deuses trazerem ao Lácio o
começo da gente latina
Dos pais albanos primevos dos altanados muros de Roma.
Os Lusíadas
de Camões, primeiras estrofes
(Evocação
dos feitos portugueses)
As armas e os Barões assinalados,
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força
humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
A Divina Comédia,
de Dante, primeiras estrofes
(Descida
aos infernos, também verificada na Eneida)
Do meio do caminho da nossa vida,
Eu me achei por uma selva escura
Porque a direita via era perdida,
Ah, só dizer o que era é coisa dura
Esta selva selvagem, áspera e
forte,
Que de temor renova à mente a
agrura!
Túmulo de Públio Virgílio Maro em Nápoles
MODESTO
COMENTÁRIO SOBRE ESTA OBRA
A
Eneida é uma epopeia, em que Virgílio vai enaltecer a coragem, a bravura e as
virtudes do povo romano, seguindo o exemplo da Odisseia de Homero, que o fez em relação aos gregos. Ela reúne em
si um ideal político, uma conceção de vida, digamos mesmo, que o esplendor de
uma nova civilização. É composta de doze cantos, ou livros. Foi uma obra naturalmente incitada por Caio Cílnio Mecenas, e encomendada
pelo imperador Otávio Augusto (27 a.C. – 14 d.C.), a quem Virgílio dedicou
todo o seu génio. Porém, adoeceu na Grécia, onde foi fazer as suas
investigações históricas, tendo de regressar à Itália com o imperador, onde morreu pouco depois
em Brindes (Brindisi), um porto no sul da Itália. Não dispôs do tempo que
queria para apurar esta obra, embora trabalhasse nela durante doze anos. Mesmo
assim, escrita em Latim clássico, ela tem uma clareza e uma veemência inigualáveis. Foi
publicada em 19 a.C. Por conseguinte é uma obra póstuma.
Virgílio Maro pretende com esta obra
descrever a fundação da cidade de Roma, enobrecer a origem do povo latino, enaltecer
os ideias sublimes daquela altura. Ele queria, enfim, refinar os espíritos dos seus contemporâneos, e agigantar o génio dos romanos para que estabelecessem o seu império. E tinha matéria para isso,
pois Roma já há muito tempo que imperava nestes confins do mundo antigo. Ele
próprio vai associar as vitórias antigas às coevas, glorificando os heróis mais
recentes. Por outro lado, ao tentar recuperar um passado ilustre e heroico para
cidade, como que vem certificar que ela tem uma raiz antiga e nobre, não
precisa da grandeza grega, de todo o seu fulgor civilizacional para se afirmar
ao mundo. Roma tem os seus deuses, os seus valorosos reis e imperadores, um
grande destino a prosseguir, legítimas pretensões a criar valores de natureza universal.
A
Eneida está escrita com uma rima própria das línguas com declinações, que
não precisam de rimar para serem cantáveis. Possui uma métrica de seis grupos
de três sílabas, sendo duas breves e uma longa, um hexâmetro que produz em
Latim a sonoridade da própria da epopeia, cheia de ação heroica, de grandiosidade,
onde há uma intervenção divina. É um monumento à Língua e à Cultura latina, e
veio a inspirar o pensamento romano, de onde hoje grande parte da humanidade
recebe o seu alfabeto e até ideias, que eles herdaram em parte dos gregos,
e que então fixaram, deixando para nós a sua filosofia, o seu sentido prático, a sua disciplina,
a sua ciência. Tenta enaltecer também os feitos dos romanos do seu tempo. A partir do IV
canto a ação é relatada como se estivesse no presente.
Para os leitores atuais, A Eneida é uma obra de muito difícil
leitura, pois só ao fim de muitos estudos poderão impregnar-se da história e mitologia romanas para a perceber melhor. No seu tempo, e mesmo centenas
de anos depois, com os dados daquela civilização ainda do domínio do povo, esta
obra era rica de significado para quem a lesse, os seus deuses e heróis
ainda eram bem conhecidos da tradição, ainda que não acreditassem neles, faziam
parte da sua história, quando mesmo do seu folclore. E ela escrita em Latim
clássico tem outra ênfase. Eles liam este livro como uma obra-prima, primacial,
o seu conteúdo era algo maravilhoso. Acreditavam nela como hoje as novas
gerações acreditam nas alegorias que para aí se escrevem e vendem aos milhares,
dando origem a filmes, que enchem as salas e cinema.
Públio Virgílio
Maro prima-nos aqui com uma obra monumental, utilizando uma linguagem de estilo grandioso Apesar de tratar da guerra,
da violência, da perfídia, já tenta incutir nela uma boa dose de humanidade, de
piedade, de justiça, de coragem e valentia, mas também de nobreza de caráter.
É um livro que enaltece o heroísmo, mas repudia os horrores da guerra. Os seus
heróis têm uma moral, não só os homens mas até os deuses são muito humanos, e a Eneias move-o a piedade, a brandura, apesar de tudo. É um livro que
traz subjacente uma procura de paz, que é, afinal o que de mais útil pode
proporcionar uma guerra. A este desígnio não é alheio “A Paz Romana”, que predominou
por algum tempo no Mediterrâneo sob o Império de Roma. Trata-se de uma obra matricial. Sem A Eneida não haveria A Divina Comédia de Dante Alighieri, pelo menos como
a conhecemos (1304-1321), nem Orlando
Furioso de Ludovico Ariosto (1516), nem Os
Lusíadas de Luís de Camões (1572), nem o Paraíso Perdido de John Milton (1667).
13/02/2018
Martz Inura
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