XAVIER MARÍAS






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 JAVIER MARÍAS
Assim Começa o Mal
Tradução de Paulo Ramos
ALFAGUARA (2015)


O HOMEM
            Xavier Marías Franco nasceu em 20 de Setembro de 1951, em Madrid. É originário de família ligada à cultura. O pai, Julián Marías Aguilera, era filósofo, e é sobrinho e primo respectivamente de Jesús Franco e Ricardo Franco, ligados ao cinema. O seu pai tinha sido preso e foi perseguido pelo regime franquista, e proibido de ensinar em Espanha. Esteve exilado nos Estados Unidos, leccionando no Wellesley College, em Massachusetts, Estado onde passou parte da sua infância. Desde cedo se interessou pela escrita, começando por traduzir guiões para filmes. Em 1970 publicava Los Dominios del Lobo, queria afirmar-se como autor. Licenciou-se em Filologia e Letras na Universidade Complutense de Madrid em 1973. De 1983 a 1985 leccionou Literatura Espanhola e Teoria da Tradução na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Depois, em 1984, ainda voltou ao ensino no Wellesley College de Boston, nos Estados Unidos, e mais tarde, de 1987 a 1992, na Universidade Complutense de Madrid. Foram-lhe atribuídos inúmeros prémios literário, tantos que não os vamos enumerar, eles já prestigiam mais as organizações que os atribuem do que a ele próprio, que é um escritor firmado mundialmente, e eles nem são o mais importante, Leão Tolstoi, Franz Kafka, James Joyce, Robert Musil, Jorge Luís Borges, e tantos outros, não precisaram de prémios para serem verdadeiramente grandes no mundo campo literário. Em 2006 foi nomeado para a Real Academia da Língua Espanhola. E a propósito, não devia ter ele já recebido o Prémio Nobel da Literatura?


A OBRA
            A obra de Xavier Marías é rica, vasta e variada, conta de mais de uma dúzia de romances, contos, artigos, ensaios, traduções importantes para a Língua Castelhana. Deles destacam-se aqui apenas alguns romances, como introdução para um melhor conhecimento deste importante autor:
            Los Domínios del Lobo (1971)
            El Monarca del Tiempo (1978)
            O Homem Sentimental (1986)
            Todas as Almas (1989)
            Coração tão Branco (1992)
            Teu Rosto Amanhã (dividido em três partes) (2002-2007)
            Os Enamoramentos (2011) (considerado para já a sua obra-prima)
            Assim Começa o Mal (2014)


O ROMANCE Assim Começa o Mal

            PRINCIPAIS PERSONAGENS
            Eduardo Muriel, um realizador de cinema, de bigode fino, à Errol Flyn, alto, apenas com um olho azul na cara, o esquerdo, que via pelos dois, usando pala. Havia nele um lado melancólico e misantrópico que contornava realizando cinema, tendo encontros e jogatanas frequentes com os seus amigos. Fumava muito. Tinha no início do livro à volta de cinquenta e cinco anos, e era já calvo e muito conversador.  
            Beatriz Noguera: Mulher de quarenta e poucos anos, ainda vaporosa, quase da altura do marido, que com saltos altos suplantava. Tinha um rosto simpático, de pessoa que não precisava de qualquer apoio psicológico, grandes seios, muito sensual. Todavia, que era maltratada pelo marido, de quem tinha um filho e duas filhas. Sentia-se desvalorizada, deprimida, mais do que uma vez tentara o suicídio. Enganava o marido com vários homens. Teve um triste fim.
            Jorge Van Rechten: Pediatra formado à pressa durante o franquismo, forte, louro, de dentadura deslumbrante, que se aproveitava das mulheres e das filhas dos republicanos, dos dissidente e exilados, era o que se dizia. Todavia, tinha ajudado muita gente durante o regime, era mesmo considerado afável, civilizado e solidário. Era de ascendência holandesa, mas tão espanhol como Manolete.
            Francisco Rico: Homem ligado ao cinema, à volta dos quarenta anos, com uma carreira de erudito. Era professor em Barcelona, mas muito pedante, andava a pavonear-se por toda a Europa. Convivia muito com o casal Muriel e tinha escapadelas com Beatriz, era o que pensava o marido. 
            Alberto Augusto Roy: Mais baixo que Beatriz, com quem às vezes ficava a medo, receando que interpretassem mal aquela proximidade. Tinha um ar professoral, uns olhos verdes, que escondia atrás de uns óculos de tartaruga, e lábios grossos, algo mouriscos.
            Doutor Carlos Arranz: Médico pediatra que nos tempos do franquismo se aproveitava, das mulheres e até filhas dos republicanos.
            Doutor Vidal: pediatra cuja família tinha sido vítima do franquismo, que tinha um ódio de morte a Van Rechten, e dele dizia mal a torto e a direito.
            Célia: Funcionária do Ministério do Interior com quem Juan fizera uma viagem de táxi e lhe dera referências sobre Van Rechten
            Susana: Filha mais velha de Beatriz e Muriel, muito parecida com mãe, com quem Juan veio a casar.
            Alícia: Filha segunda de Beatriz e Muriel
            Tomás: filho mais novo de Muriel
            Flávia: Empregada dos Muriel, muito ligada à família.


            RESUMO DO ROMANCE
I
O romance começa por apresentar a história de Eduardo Muriel e de sua mulher, Beatriz Noguera, dissertando sobre o seu casamento infeliz, pondo como questão o número de seres humanos que tomam como pai aquele que não é seu pai, e por irmãos aqueles que só o são pela metade. Numa altura em que ainda não havia divórcio em Espanha, Juan de Vere foi encarregado por Muriel de investigar as possíveis relações de Van Rechten com sua mulher. Estávamos em Madrid, por volta de 1980. Muriel temia existir algo de grave, de escabroso na vida da mulher, e queria que ele a investigasse, tinha a ver com uma traição. Porém, Muriel, como que tinha pejo em revelar a Juan as suas suspeitas mais profundas, tal a baixeza do delito que era preciso aclarar. Juan tinha de ter pontas por onde começar a investigação, e então começou por o sondar se seria um caso relacionado com a guerra civil, mas ele negou, embora tudo então tivesse um pouco a ver com aquela guerra, que marcou de modo indelével os espanhóis, embora agora governasse Adolfo Suárez. Bem, depois de muito escabulhar lá conseguiu saber que o caso tinha a ver com amantes e com o médico pediatra Jorge Van Rechten.

II
            Estas revelações deixaram Juan de Mere pasmado, pois o pediatra parecia-lhe um dos homens mais rectos, justos e gentis que conhecera, impróprio de quem andava já na casa dos cinquenta anos. Muriel insinuava que ele tinha sido indecente com mais de uma mulher, e que devia ser por ele que devia começar a sua investigação. Ele era realizador de cinema, andava por vezes longe de casa, e desconfiava da sua mulher, Beatriz Noguera, o que o deixara atónito, pois ela parecia-lhe uma senhora muito respeitável. De qualquer modo, era sabido que ele como pediatra devia ter estado muito próximo dela, e quando mais nova é uma mulher mais tentadora será. Estavam em casa e viu-a certa vez em frente do quarto do marido com uma camisa bastante vaporosa, como que para o ir impressionar, que ele rejeitou, falando-lhe de Roy e de Rico. Deu para perceber que ela queria um pouco de sexo, ou pelo menos algum afecto, que não existia nele. Muriel e Beatriz tinham quartos separados e casas de banho privativas. Beatriz pediu-lhe para ele lhe abrir a porta do quarto, o que ele só fez depois de muita insistência e discussões desagradáveis, vendo-a com um só olho, não lhe recusando um abraço, mas mandando-a embora, que desaparecesse, que queria dormir, tanto mais que Juan estava ali em casa. E injuriou-a, chamando-lhe baleia, ficando lá dentro a fumar, tentando recuperar alguma serenidade.
III
            Os Muriel, apesar daquelas zangas, davam jantares e pequenas festas lá em casa. Ele era realizador de cinema, tinha relações profissionais e de amizade com muita gente, e a mulher também o acompanhava nestas andanças. De entre os seus amigos contava-se Francisco Rico e Roy, de quem suspeitava terem relações carnais com a sua mulher. Rico, no impedimento de Muriel, prestava-se às vezes a levar Beatriz ao teatro, a um museu, a um concerto –, entre os dois devia haver uma simpatia recíproca. Nas instruções que Muriel dera ao jovem de Mere, dissera-lhe que Rico, que era quinze anos mais novo do que ele, o vira sempre como seu professor, contudo, referiu-se à mulher como Rica, sendo ele Rico. E voltando a falar dele tempos depois, disse que o vira uma vez  numa exposição de quadros com uma atriz, verificando que ele tinha um olhar de lascívia sobre as mulheres. É aqui que o autor se detém a desenvolver as teorias que pretendem provar a inexistência de Shakespeare. Os Muriel tinham três filhos: Susana, ainda jovem, a cópia da mãe, Alícia, mais nova, de doze anos, e Tomás, ainda pequeno, de oito. Neles só viu aparências da mãe. Havia por lá Flávia, uma empregada que os apoiava. Beatriz Noguera tivera uma infância na América, o pai fora exilado pelo regime de Franco, e fora para os Estados Unidos, onde chegou a dar aulas no Wellesley College de Massachusetts. Beatriz viveu sempre um pouco entregue a si mesma. Assoberbado com o cinema, Muriel negligenciara a mulher, que andava com Rico e com Roy, admirava o escrito Juan Benet, e Juan começou a espiá-la, para assim conseguir dados sobre o que lhe pedira o marido.  Há uma conversa de Glória, cunhada dela, por ter estado casada com Roberto Muriel, irmão do marido, que morreu num desastre com uma loura francesa que nunca souberam quem era, mas que tudo levava a crer ser sua amante. Ela soube da maneira hostil como Eduardo Muriel a tratava, e antipatizava com ele, e disse-lhe para o ameaçar com o divórcio.

IV
            Juan de Mere começa a seguir Beatriz e certo dia verificou que ela entrou para o Santuário da Virgem de Darmstadt, fica intrigado e tenta saber o que ela lá foi fazer. Aproximou-se, a curiosidade foi mais forte do que ele, e conseguiu ver numa janela que alguém lhe estava a dar empurrões, talvez lhe estivesse a bater, mas vendo melhor verificou que a estava a possuir, sem sequer lhe tirarem uma peça de roupa, era uma “rapidinha”, quase sentiu vergonha ao vê-la lá dentro através da janela. Mas urgia saber quem lá estava e subiu a uma árvore, podendo certificar-se que era Van Rechten que estava com ela. Por azar, apareceu cá em baixo uma freira e teve de lhe dar explicações. Fora uma relação de curta duração. O homem parecera-lhe eufórico, explosivo, era daqueles a quem cada encontro sexual é contabilizado como uma condecoração. Beatriz pouco depois saía e ele não foi atrás dela. Continuou com as suas vigias, e dias mais tarde voltou-a a vê-la em lugar suspeito com as meias rasgadas e a saia descaída, este homem porventura fora menos cuidado com ela que Van Rechten. Viu-a de seguida entrar numa loja de modas, saindo de lá já impecável. Há um novo dele encontro de Juan com Muriel, que insiste que se imiscua mais na vida de Van Rechten, que se faça mesmo convidado para as suas noitadas, a fim de que ele se revele, mas não lhe conta nada das aventuras que viu à mulher. Juan estava satisfeito com o seu trabalho, não vivera na abundância, fora sempre muito livre, o seu pai, o mais que conseguiu foi ser cônsul em Frankfurt. Tinha-se acabado de formar, e trabalhava para um realizador de cinema, sentindo-se cada vez mais integrado na família Muriel

V
            Juan de Mere estava feliz por ter arranjado aquele emprego, mas não lhe agradava a índole do trabalho de que foi incumbido. Se por um lado simpatizava com Beatriz, por outro, não odiava por ali além Van Recht, que até tinha fama de depois da guerra civil ter sido solidário com muita gente. Conforme pedido pelo seu mentor, Juan começou a andar mais à noite com Van Rechten, e teve oportunidade de comprovar que ele tinha pouco respeito para com as mulheres, revelando uma grosseria que o incomodava. Num certa noite entra com ele numa sala de jogo, em que o chegou a substituir, e quando saiu de lá de táxi com uma tal Célia, funcionária de num ministério, falou com ela demoradamente, ficando admirado quando ele se referiu ao médico como sendo um “porco”, termo que se costuma usar para homens que que se aproveitam das mulheres tímidas, ou mesmo das jovens, das educadas, que querem evitar o horror do escândalo. Ele tinha vinte e três anos, e não a conseguiu conquistar. Em casa, o relacionamento de Muriel com Beatriz mantinha-se em lume brando, ela era a mãe de seus filhos, mas pouco mais do que isso, e ele não tinha renunciado a encontros com outras mulheres, andava na casa dos cinquentas, portanto, mais velho dez que Beatriz e Rico, e mais novo que Rechten, que andaria pelos sessenta anos. O doutor Van Rechten, pudera comprovar, não era nada inibido nas suas relações com mulheres, e por aquele tempo, no Verão, a vida nocturna era intensa em Madrid, chegando a haver engarrafamentos na cidade em plena madrugada. Muriel nas conversas que tinha com Juan insistiu para que se gabasse das suas façanhas sexuais, para que ele também revelasse as dele. 

VI
            Muriel começa a ficar cansado com aquela investigação e a pensar mais no filho e sobretudo nas filhas, enquanto Juan continua a tirar nabos da púcara de Van Rechten, chegou mesmo a vangloriar-se de uma amiga imaginária lhe ter feito um felácio, mostra-se mesmo ordinário, dizendo-lhe o médico que umas mulheres era mais putas que outras. Juan chegou mesmo a sugerir-lhe, ou indagar-lhe, que ele devia garantir assistência médica vitalícia às que fossem para a cama com ele. Van Rechten afirmara que nada lhe dava mais prazer de quando elas resistiam, e foi isto que Juan foi dizer a Muriel, que andava distraído nas suas filmagens, coadjuvado por Herbert Lom. Gostava que lhe contassem mexericos, de saber das aventuras eróticas do seu produtor, Alan Powers, deliciavam-se a conversar de mulheres e das suas fraquezas, ou as deles mesmos. Juan consultou a internet par saber mexericos, ligados ao cinema, à política e ao meio literário, estava bem documentado sobre esta matéria. Explorou o caso Kennedy e o caso Profumo. De facto, sem sexo não havia vida. Muriel continuava interessado em que Juan mantenha as suas pesquisas enquanto anda atrás de Alan Towers, todo servil, para se afirmar como realizador de cinema,

VII
            Muriel anda todo entusiasmado no cinema com as suas realizações, e Beatriz anda mais triste à volta do filho e das filhas. Uma noite durante as rodagens está programado um jantar importante, e Beatriz afasta-se dali em direcção ao Hotel Wellington, foi mesmo Juan que o confessou ao marido, que estranhou a sua ausência naquele momento. Alarmados, Muriel, Juan e Van Rechten correm para o hotel, é Rechten quem chega primeiro. Os dois sabiam que ela era propensa ao suicídio, e receavam o pior. Entram pelo hotel à pressa, abrem a porta do quarto com uma chave-mestra, mas a da casa de banho está fechada e têm de a arrombar, ela tinha cortado os pulsos e está a esvair-se em sangue. Van Rechten faz tudo o que pode para a salvar. A seguir chega uma ambulância. Conseguem-na salvar. e depois deste incidente Muriel pede a Juan para acabar com aquela investigação ao seu amigo Rechten, que afinal já tinha feito tanto por ele. Conta-lhe então o episódio da morte do filho Javier, morto de meningite aos dois anos às suas mãos. Muriel descai-se em dizer que as traições da mulher têm a ver com uma mentira antiga, e não quer que ele prossiga coma a investigação.  

VIII
            O autor procura relativizar a moral, reduzindo a vilania daqueles actos, num mundo em que há os telemóveis, a televisão e a internet, outro tipo de relações. Muriel teve que ir a Barcelona, e sabendo que Beatriz estava em casa a convalescer, veio ali em visita o professor Rico e brinca com o seu acto falhado, rindo-se da sua ineficácia. Juan viu então quão pouco amor havia à volta dela, e quase lhe apareceu abraçá-la. Van Rechten vem ali mudar-lhe os pensos, e ela está a melhorar. Juan dorme ali em casa, não querem que ela fique sozinha e tente acto semelhante. Uma noite Juan verifica que ela veio à cozinha, demora ali bastante tempo e ele começa a pensar o pior, receia mesmo que ela esteja ali a tentar enforcar-se. Levanta-se da cama e vai ver o que se passa. Conversam e bebem um whisky com qualquer coisa, e ela acaba por salienta o facto dele a ter salvo. É então que têm uma conversa mais demorada sobre as razões que a levaram àquela tentativa de suicídio, que tinha a ver com o ódio que o marido lhe tinha. A senhora estava em trajes menores e Juan foi atraído pela sua sensualidade, ela não era a verdadeira gorda, o saco de farinha, o saco de carne, só sebo, foca ou sino de El Álamo, como o marido a tratava. O divórcio era algo que ela já tinha pensado, pois estaria para breve a sua legalização em Espanha. Ele aproximou-se mais dela, quando foi ao frigorífico, tocando-lhe mesmo levemente, como que a protege-la. Quando ele a questionou sobre aquele ódio, ela falou-lhe de uma mentira antiga, mas nada importante, depois de já terem perdido um filho. Ele estava cheio de desejo, que se sobrepôs ao respeito que lhe tinha. e aproximou-se ainda mais dela, afinal tinha-lhe salvo a vida, ela própria o testemunhou. Quando ele lhe procurou a boca para a beijar ela ofereceu-lhe o pescoço, nada de beijos, e foi então que a conduziu para o se quarto e ali celebraram o acto sexual com toda a perfeição. Mas houve um facto que o deixou assustado –, ele ouviu no corredor passos apressados, seria a filha dela, Susana, já casadoura?  

IX
            Juan pôs-se a pensar no facto e sentiu-se desgostoso, como a culpar-se do seu vil acto, aproveitando-se da fragilidade de uma mulher sofredora, sendo tão porco como os outros homens que andavam à volta dela, segundo as palavras que ouvira a Célia. “Assim começa o mal”, parafraseou Shakespeare numa das suas peças. Daquela noite ficou aquela recordação, aquele ressentimento. Muriel vem de Barcelona e as suas relações com Van Rechten voltam à normalidade, pede mesmo a Juan para pensar noutro emprego, Não queria mais pôr em dúvida a idoneidade de um homem solidário e compadecido como Van Rechten. Juan estava já muito ligado àquela família e olhava para Flávia e para as filhas, a fim de verificar se via alguma alteração no seu comportamento, suspeitava que alguma delas teria presenciado a sua relação com Beatriz, quando se lembrou dos passos que ouvira no corredor.
Juan encontra-se pouco tempo depois com o doutor Vidal num restaurante, que lhe conta as privações que a sua família passou com o franquismo –, a memória daquele tempo ainda estava muito fresca na sua cabeça. Juan procura saber dele informações sobre  Arranz e Van Rechten, e tomara conhecimento de muitas das suas vilezas, do modo apressado como passou a exercer medicina, e do divisionismo que ainda existia em Espanha. Passados tantos anos da guerra civil, ainda havia crimes de que não queriam falar, tão repugnantes eram. O pediatra Rico falava o pior que podia de Van Rechten, tinha-lhe um ódio de morte, havia ali velhos ódios herdados da guerra civil que se recusavam a morrer. Confessou-lhe então que havia um aproveitamento sexual de Arranz e Van Rechten das mulheres e até filhas mais velhas dos republicanos, que as chegavam a trocar, isto era uma nova forma de humilhar os vencidos. Juan de Mere ficou indignado com o que ouviu do doutor Vidal. Numa saída que teve e a seguir com Van Rechten, que podia ser a última, deu-lhe mesmo a entender a sua vilania, chegando a revelar-lhe que o vira no Santuário de Darmstadt, covil de pessoas ligadas a Pinochet. Este mostrou-se muito zangado, questionando-o sobre o que andava por ali a dizer, quando tudo já estava esquecido.

X
            Juan de Mere está pronto para fazer as suas revelações a Muriel, mas isto já nem é urgente, e nem ele as quer tomar conhecimento delas. Constata então que ainda estão vivos os velhos ódios entre franquistas e republicanos, será preciso talvez mais uma geração para que se desvaneça, Não faltam acusações verdadeiras ou falsas de uns a outros, mais aos franquistas, que ficaram no poder. Mas ele próprio se sente impuro para acusar alguém, também ele, envolvido na mixórdia da vida, acabou por cometer erros graves. O mundo está cheio de Eduardos, Beatrizes, Van Rechtens e Célias. Juan começou a meditar no velho ódio que o Doutor Vidal tinha a Van Rechten, talvez ele estivesse a exagerar, e aquele encontro que teve no Santuário de Darmstadt talvez devesse ficar na esfera do privado, a sua gravidade tinha expirado. A recordação daquela relação íntima que ele próprio tivera com Beatriz ainda o mortificava. Não era mais do que os outros. Juan ainda tentou dizer qualquer coisa a Muriel sobre o assunto, afinal tinha de haver alguma justiça no mundo, mas ele tinha-se desinteressado pelo caso, foi o que disse. Em Espanha, como em todo o mundo, metade dele está cheio de faltas, e não se pode pôr toda esta gente na prisão. O melhor é esquecermos e começarmos tudo de novo, sem ódio nem perseguições. Juan de Mere não gostou do modo paternalista como foi tratado. Condenou-o mesmo por lhe chamar gorda, foca, sino de El Álamo, e foi então que Muriel se descoseu em falar dela, da sua infância na América, no pai homossexual, expulso do ensino, de como ela lidara com ele até à morte, da sua vida com os tios em Espanha, quando veio casar com ela, sendo dez anos mais velho. Entretanto, pareceu-lhe ver um busto atrás do vidro a escutar as suas conversas, seria o de Beatriz. Depois da morte do pai ela mandara dizer que ia regressar à Espanha para casarem, porém, ele já tinha outra paixão, enviara-lhe mesmo um telegrama a pedir para não vir, que esperasse por uma carta mais pormenorizada que iria receber a seguir. Mas ela veio à mesma, e ele, sabendo da sua situação precária foi buscá-la ao aeroporto. Estava linda, e teve de desfazer a anterior relação com muito dolo. A carta dizia que não a amava, mas não a enviou. Depois vieram os filhos, a situação desvaneceu-se. Mas viviam em quartos separados, tinham uma relação distante. Beatriz abriu então a porta e olhou para ele como para recuperar aquele amor antigo, mas ele mostrou-se esguio, fazendo um gesto de repulsa. Aquela relação tinha fracassado.   

XI
            [O leitor pare aqui, por favor, vá primeiro ler o livro, que lá está tudo mais explícito…] A vida não é para sempre. Uns tempos depois viu Muriel chorar Beatriz no cemitério de La Almudena em Madrid, as lágrimas caiam-lhe pela cara abaixo, não eram postiças. Beatriz tinha tido um acidente com uma Harley Davison contra uma árvore, morrera ali instantaneamente. Para os filhos a versão que iria ser dada é que fora um acidente, mas para os mais velhos, que conheciam o seu passado, com várias tentativas de suicídio, ela tinha-se matado. Havia ali umas tantas pessoas pesarosas, mas muito mais hipocrisia à volta. Beatriz Noguera queria ter ido para um Lugar, ou melhor, para um Tempo que jamais se vê, ou alguém poderá ver. Juan estava destroçado, Muriel nunca lhe tinha falado em duas tentativas de suicídio. Facto impressionante, Juan vai uns dias depois manifestar os seus pêsames a Muriel, que os aceitou, tendo então confiança suficiente para lhe perguntar, cheio de nostalgia, como se ela tivesse sido uma grande mulher: “Sabes que ela morreu grávida?». Juan mostrou-se curioso de quanto tempo estava, seria de dois meses, e não era de Muriel, foi o que ele lhe disse. Juan nem lhe ousou fazer mais qualquer pergunta, ela podia estar grávida dele próprio. Tentou afastar-se daquela história, passou a ver Muriel de tempos a tempos, soube que casou de novo, e isto era como enterrar mais Beatriz. Foi mesmo ver um filme dele, que era agora académico, assim o confirmara o professor Rico.
Todavia, a vida tem destas surpresas, estava ele a ver televisão, quando foi surpreendido com a notícia da sua morte por enfarte. Foi a correr para o cemitério de La Almudena no dia seguinte. Estava ali Susana, que olhava à volta, e logo que o viu o foi buscar, levando-o pela mão para perto do caixão, onde estavam Alícia, Tomás e Flávia, e a própria viúva. Mas a vida faz-se de acontecimentos. Passados tempos ele casa-se com Susana, que era a cópia da mãe, Beatriz Noguera, que sempre admirou como mulher. Tiveram duas filhas, mas ele agora punha-se agora a pensar na criança que Beatriz levara consigo para a morte, que teria sido meia-irmã da sua mulher, e enteada, que por sua vez seria madrasta dela, e a criança que tivesse nascido teria sido para além de sua filha, sua cunhada, e as filhas que tivera de Susana seriam agora suas irmãs e sobrinhas. Aquela sua falta com a sogra fora imperdoável, aquilo era de dar um homem em doido. Por vezes Juan e Susana ficavam sentados um ao lado do outro, mergulhados num profundo silêncio, e ele como que suspeitava que era seria aquela pessoa, cujos passos ouvira no corredor, quando ele estivera com a mãe, porventura sofrendo do ciúme de ser preterida por ela. Olhavam então um para o outro sem dizerem nada. Que vida esta, cheia de coisas mesquinhas! Nada de palavras.  


            BREVE COMENTÁRIO SOBRE O ROMANCE

            Trata-se de um romance pós-realista, que utiliza normalmente uma linguagem solta e elegante, fluída como a água de um rio que corra para o mar. Recupera os fantasmas da guerra civil em Espanha com uma grande riqueza de pormenores, agora passados mais de quarenta anos sobre o fim da mesma, com o caudal de consequências que aquela transporta –, uma herança histórica de carga negativa de que as pessoas procuram não falar, mas de que ainda não se esqueceram, proliferando pelas suas memórias. O enredo gira à volta de uma infidelidade que o autor trata com toda a sua carga sensual e trágica, de forma vigorosa e original, demonstrando que assim começa o mal. Outros autores grassaram o tema, poderemos citar Flaubert com Madame Bovary, Dostoiévski com O Eterno Marido, Tolstoi com Ana Karenina, D. H. Lawrence com O Amante de Lady Chatterley, Eça de Queiroz com O Primo Basílio, Machado de Assis com Dom Casmurro, Jorge Amado com Dona Flor e os Seus Dois Maridos, mas Javier Marías pode ombrear com todos eles no tratamento esmerado, embora diferenciado, que dá aqui a este tema.

            A narrativa inicialmente é lenta, reflexiva, o que se aceita, pois nem tudo na vida começa com uma explosão, pode até parecer um prólogo para um romance policial que ele vá escrever, e na verdade, trata-se de uma investigação ao comportamento impróprio, ou mesmo libertino de Van Rechten, que depois Juan de Mere, a quem Eduardo Muriel encarregou desta missão, estende a outras personagens, chegando a descrever as relações íntimas com que se depara, excedendo para alguns puristas da moral o mínimo aceitável de palavras indecentes que poderia usar, pondo a descoberto pormenores perfeitamente dispensáveis, mas que dão força e veracidade ao romance. Daí que este livro não se recomende a toda a gente. Por vezes o autor alonga-se em descrições políticas, só aparentemente secundárias, e engorda muito o livro a falar de cinema, que poderá não agradar a muitos leitores, focalizados que estão no enredo, e outros também poderão não aprovar a maneira como explora tanto o sexo no livro, repisando escândalos à maneira de Jackie Collins, mestra da literatura cor-de-rosa. Para esses, Marías não é económico nas palavras a tratar destes temas, podia ser mais comedido, mais subtil.

Bem, não se pode agradar a todos. O livro tem um conteúdo bastante rico, e episódios caricatos imperdíveis, como aquele em que Van Rechten e Beatriz vão ter um encontro íntimo na capela da Virgem de Darmstadt, não podiam escolher para o seu acto um lugar mais adequado à hipocrisia do mundo, bem profano, cometendo um sacrilégio à maneira do Marquês de Sade. E aquela estratégia depravada de Van Rechten de auscultar as pacientes aproximando-se com olhares libidinosos, passando as mãos acidentalmente por zonas exogéneas, que algumas mulheres por medo se recusavam a condenar, e outras por pudor se faziam distraídas, pois ficavam na dúvida de as mãos de um médico estarem santificadas pela ciência. E aquela colagem hipócrita e oportunistas das pessoas ao esquerdismo e republicanismo depois da morte de Franco, fazendo-se crer revolucionários de sempre, opositores declarados ao regime desde a primeira hora, dissidentes incontroversos do franquismo, e até vítimas inocentes da repressão do regime, quando muitos beneficiaram até como ele, e notoriamente não se opuseram à sua violência como deviam e podiam, enfim, um pecado que também em Portugal muitos cometeram quando se deu o “25 de Abril de 1974”.  

            Assim Começa o Mal é um grande romance, é incontestável, com a componente política do pós-franquismo ainda a assombrar a mente dos espanhóis daquela época, a tentar libertarem-se, ainda que vagarosamente, de ódios antigos, que era preciso esquecer, para a vida voltar à normalidade, pois haveria pouco inocentes daquele conflito. Possui uma análise social com algum refinamento, sobretudo focada na classe médica e no meio cinematográfico, com um final empolgante, com um suspense em espiral, ainda que incluindo pormenores mórbidos e sórdidos da vida das personagens, mas impressionantes, digo mesmo que comoventes. Na sua estrutura tem algo de autobiográfico, daí a veemência com que está escrito. É um livro efervescente de vida e intriga, formalmente simples, mas bem organizado, de escrita primorosa, bem dentro da Literatura. Acusam-no de fugir à realidade espanhola, de ser um tanto estrangeirado, sim, é evidente que se cola aqui e ali à literatura inglesa, e até alemã, sei lá, a outras, mas estamos num mundo cada vez mais global, tornado pequeno à nossa observação, ele é um romancista experimentado, passou por muitas leituras, não se lhe recuse o direito de ser um escritor universal.


16/05/2018
Martz Inura




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