JAMES JOYCE
Gente de Dublin
Tradução de B. de Carvalho
Colecção Mil Folhas (2004) (160 p.)
O
HOMEM
James
Augustine Aloysius Joyce nasceu em 02 de Fevereiro de 1882 nos arredores de
Dublin. A sua família, da classe média, era católica, e matriculou-o numa
escola jesuíta. Porém, foi afectada por dificuldades económicas e ele teve que
sair e frequentar escolas mais modestas até o inscreverem na recém-criada "University College Dublin". Gostava de música e até cantava bem, era tenor. Acabou por
se formar em 1902 e emigrou para Paris a fim de cursar medicina. Porém a mãe
morreu, voltou à Irlanda e esta ambição esfriou. Era um rebelde, bebia muito e
chegou a ser preso por má conduta. Por fim acomodou-se, casou, e em 1904 seguiu
para Trieste a fim de leccionar Inglês. Mas aqui também iria ter dificuldades, de
imediato não encontrou lugar naquela cidade e teve que ir para Pola. Desta
estadia fez amizade com alguns dos seus discípulos, entre os quais, Italo
Svevo. Em 1906 seguiu para Roma com a sua mulher. Entre 1915 e 1919 viveu em
Zurique. Regressa a Paris em 1920, onde encontrou amigos como Ezra Pound e Harriet
Shaw Weaver. E mais do que estes, Eugene e Maria Jolas, senhora que,
vendo as suas qualidades de escritor, começou a ajudá-lo economicamente,
permitindo que ele se dedicasse a tempo inteiro à escrita. Com o estalar da
Segunda Guerra Mundial partiu para Zurique. Por várias vezes voltou a Dublin,
algumas das quais para tentar publicar os seus primeiros livros, que estavam a
ser recusados. De formação jesuítica, saiu zangado daquela instituição, porém, nunca
negou a importância que ela teve na sua formação. Ainda não sei o que os jesuítas
fazem a estes moços, que também em Portugal, e só para citar um exemplo, Afonso
Costa, que também andou nos jesuítas, de repente passou a ateu e republicano, e
com tal animosidade contra a Igreja Católica que como chefe de governo chegou a
acabar com o feriado de Natal, que passou a ser o Dia da Família. James Joyce
abandonou a fé católica, era um livre-pensador, mas os seus estudiosos dizem
que frequentava a igreja, como para se tentar reconciliar, e os seus livros,
com muita influência de S. Tomás de Aquino, são de um escritor católico. A sua
saúde era precária, sofria do estômago, tinha graves problemas de visão e seria
um tanto esquizofrénico: Foi isso que Carl Jung disse à sua filha, Lúcia,
quando ele a foi tratar à Suíça. Enfim, era uma pessoa não totalmente reconciliada
consigo mesma. O seu estado de saúde piorou. Com uma úlcera perfurada, e pela
segunda vez. tenta ser tratado em Zurique, mas o caso complicou-se, faleceu a
13 de Janeiro de 1941, tinha 48 anos.
A
OBRA
A obra de James Joyce não sendo
muito vasta teve uma enorme influência na literatura do século XX. Ao
estruturar o processo narrativo da “Corrente de Consciência”, ele facultou
instrumentos para que muitos outros autores viessem a repudiar o realismo, o
dadaísmo e o surrealismo, criando novas correntes de escrita. Para além da sua
obra póstuma, constituída sobretudo por cartas e escritos diversos, James Joyce
deixou-nos:
- Música de Câmara
(poemas, 1907);
- Dubliners, Gente de Dublin (colecção de contos, 1914);
- Retrato do Artista quando Jovem
(romance, 1916)
- Exilados (Peça de teatro, 1918);
- Ulysses (romance, 1922);
- Collected
Poems (poemas de
1936, que inclui toda a sua poesia publicada);
- Finnegans Wake (romance, 1939).
Os seus livros, em especial os seus romances, eram obras complexas, inovadoras, original. Daí ter tido dificuldade em publicar os seus livros. Morreu com o desgosto do seu Finnegans Wake não estar a ser
compreendido pela crítica. De facto, o livro chega a fundir as próprias palavras, recorre a mais do que um língua, é quase um livro de ensaio: experimental. Tive de o comprar na versão inglesa por não o encontrar em Português. Não imagino como poderá ser traduzível sem lhe alterar o sentido. O génio de James Joyce não foi reconhecido em vida.
O
LIVRO Gente de Dublin
Razões
para escolher esta obra
James Joyce é o escritor muito engrandecido
nos meios literários. Revolucionou a forma narrativa, abriu mais as portas ao
modernismo. É, de facto, muito original, mas temos de analisar se o seu
conteúdo, o que de realmente vivificante se extrai da leitura dos seus livros,
é assim tão enriquecedor. Talvez o estejamos a sobrevalorizar, e a este exagero
não é estranho ao imperialismo da cultura anglo-saxónica, que tem processos de
legitimação cultural capaz de se impor às literaturas menos poderosas. Ainda
bem que não temos de prestar vassalagem a ninguém para o estarmos aqui a pôr
nos píncaros da lua. Foi tal a divulgação e os encómios que deram à sua obra que
na juventude acabámos por comprar parte dos seus livros, até o Finnegans Wake, na sua versão em Inglês,
por não haver edição em Português, passando por outros, que talvez não lhes
ficassem a dever nada. Isto não tira que sob o ponto de vista formal, o autor,
levando o mais longe possível a escola literária «Corrente de Consciência», não
tivesse uma enorme influência na literatura ocidental, que se estende até ao
presente.
Inicialmente pensámos em falar de Ulisses (1922), a sua obra-prima, um
calhamaço enorme. O livro tem como herói Ulisses, da Odisseia de Homero, e consta das viagem e encontros de Leopold Blum
em Dubin, no decurso de um único dia, 16 de Junho de 1904, Já o lemos, e com
muito custo chegamos ao fim, depois de algumas interrupções. O livro,
aparentemente tem uma estrutura caótica. Cada capítulo do livro utiliza uma
técnica diferente de modo a conseguir uma certa correspondência entre os seus
personagens e os da Odisseia. Ao
longo da narrativa ele vai introduzindo enigmas, que talvez todo o tempo do
mundo não chegue para solucioná-los. É preciso ter muita memória e conhecer bem
a Odisseia, a cultura e a mitologia
gregas para o ler. Com muita dificuldade e só através de mecenas conseguiu
editar este livro, que esteve proibido nos Estados Unidos por causa das suas
obscenidades. Não sei se com várias leituras um vulgar leitor consiga chegar ao
sentido último do livro, e nós com tantas solicitações de momento, podemos não
voltar a lê-lo tão cedo, pelo menos na sua totalidade, ainda que esteja cheio
de contornos capazes de nos inspirarem novas formas de narrativa. O autor
pretendeu que, através de múltiplas percepções da realidade, e ao longo do
tempo, se chegasse a uma mais exacta reprodução da vida. Não seria a melhor
escolha para quem quisesse começar a ler James Joyce.
Retrato
do Artista Quando Jovem está ali na prateleira, é autobiográfico,
deixámo-lo lá. Outro livro por quem tanto esperámos foi o Finnegans Wake (1939), na nossa juventude sempre ouvimos falar dele
como o espécime máximo do modernismo, um vértice da cultura literária difícil
de compreender, e só ao alcance das grandes inteligências. Era tão estranho e
tão complexo que parecia intraduzível, daí não se encontrar à venda nenhum
exemplar em Português. Mas isto não nos demoveu, fomos à cidade do Porto
comprá-lo a numa livraria inglesa na língua original, e aí provarmos daquele “elixir
excelso”. Quando nos pusemos a ler vimos a dificuldade da sua interpretação, a
narrativa não era cronológica, estava cheia de pequenos entre trechos e dava-se
ao luxo de amalgamar várias línguas. Só mais tarde soubemos pelos admiradores
deste autor que fazer uma sinopse deste livro seria quase impossível, por mais
que se trabalhasse nela seria sempre incompleta. James Joyce quis levar nesta
sua obra ao limite extremo da escola literária “Corrente de Consciência”, de
que já se fez referência atrás quando se falou de William Faulker. Trabalhou
nele durante alguns anos. A sua narrativa é descontínua, as personagens vistas
de diversos prismas, o seu enredo esbate-se no meio da treva. O livro tem
vários níveis narrativos, requer portanto uma múltipla interpretação,
retratando perante nós o pesadelo que é a vida. É, pois, um campo aberto do
experimentalismo literário, onde leva ao limite a inovação estética e linguística, quem quiser investigar processos narrativos tem
aqui muito material. Apesar de quase intragável tem o seu lado desafiante. E
não vou dizer muito «mal dele» para não desagradar aos especialistas deste tipo
de literatura. Acabamos por não escolher também este livro, todavia temo-lo na
estante, e ainda iremos lá voltar para pescarmos mais qualquer coisa. Para
estas páginas optámos por escolher o Dublines,
Gente de Dublin (1914), uma boa
introdução para ir mais longe neste autor.
Breve
resumo de Gente de Dublin
Gente
de Dublin contempla quinze contos, e este livro inclui apenas dez, todavia,
esta selecção é suficiente para se ter uma ideia de como James Joyce escreve
nesta fase, e o que há a extrair desta obra. Trata-se do seu segundo trabalho, datado
de 1914, com a modesta aparência de contos, a quem não foi facilitada de início
a publicação. O autor confessou certa vez que este livro era um capítulo da
história do seu país, e que tinha escolhido Dublin como seu cenário, por lhe
parecer o centro da paralisia. Nota-se aqui atoardas de revolta contra aquela
sociedade, mais sobretudo contra a abulia dos seus habitantes. E mais à frente
diz que iria apresentá-la segundo quatro aspectos: infância, adolescência,
maturidade, vida pública, e nesta ordem. Há uma quase pungente nostalgia no
livro, um confronto difícil ente o sonho e a realidade. São estes os dez contos
seleccionados:
- Eveline é uma jovem de
dezanove anos que tem um trabalho miserável num armazém e vive com o pai e um
irmão, Harry, quase sempre trabalhando na província, num ambiente familiar onde
ainda tem receio das violências do pai. O seu namorado Frank é marinheiro e
está agora em Melburne. Daqui a dias estará em Dublin, e tinha-lhe proposto
fugir com ela para a Argentina. Ela acedeu ao convite, embora este fosse um
acto temerário, o que iriam dizer depois dela? Mas pareceu-lhe ser a decisão correcta,
a sua vida ali era vazia e sem sentido, e aquele podia ser o seu caminho para a
sua emancipação. A mãe já tinha morrido, e sempre tivera uma vida apagada à
volta do pai, de quem ela agora tratava e entregava o salário. À hora combinada
segue até ao porto, o navio está ali à espera dela com o seu amado Frank, sim, estava,
mas ela à última hora sentiu-se marrada ao chão com o peso do passado, e recusa-se
a embarcar. Moral: Este conto
pretende denunciar o peso demasiado que as pessoas dão ao passado, ao ponto de
imobilizar o presente. Ela tinha ali a oportunidade de iniciar uma nova vida e
desfrutar de um grande amor, mas não teve forças para se libertar do pai,
apesar de ele ser violento, e do irmão, algo ausente. O passado imobilizou mais
uma vez o presente.
-A pequena nuvem. Chandler
sentia-se um inútil em Dublin. Ia encontrar-se com o seu velho amigo Gallaher,
um homem que tinha sucesso em Londres. Em casa ficava-se a memoriar os livros que tinha pelas
estantes. Era tímido, se conseguisse escrever todos os seus pensamentos num
livro talvez os homens o escutassem. Vai ao encontro do amigo e cada passo que
dá parece aproximá-lo de Londres. Encontra-o num bar onde bebem whisky. Ele era um provinciano, a maior
viagem que fizera fora à ilha de Man. Chamavam-lhe Pequeno Chandler, por ele
parecer mais pequeno do que o que era, sim, era isso, ele era pequeno, ou
melhor, de vistas curtas. Confessa que tinha casado e já tinha um filho, mas
Gallaher diz que não tenciona para já casar, «tem de ficar um bocadinho gasto
primeiro». O Pequeno Chandler vem para casa esmagado pelo sucesso do amigo, que
é um homem vivido, a escrever nos jornais de Londres. Esqueceu-se de comprar o
que a mulher lhe tinha pedido numa loja e foi ela mesmo fazer a compra. Fica em
casa a tomar conta do filho, mas a criança chora, ele nem sequer saber tomar
conta dela, como a mulher constata e censura. Todos estes pequenos eventos lhe
fazem corroborar que a sua vida é estúpida. Então, «uma doce melancolia tomava
conta dele e sentia como era inútil lutar contra a sorte». Moral: O Pequeno Chandler sente-se frustrado com a sua vida, tem
receio de escrever a poesia que tem na cabeça, e não ousa sequer ler os poemas
dos livros que possui à esposa. Desculpa-se perante o amigo dizendo que está
casado e já tem um filho. Ele pensa que o seu insucesso se deve a não sair de
Dublin, contudo, nada fez ali para mudar este estado de coisas. Sim, ele é o Pequeno
Chandler, incapaz de mais altos voos, prisioneiro da uma vida inútil, subjugado
a um fatalismo que não existe.
-Casa de hóspedes, Mrs.
Mooney casara com um dono de um talho, mas o homem começou a beber e não
demorou a que se separassem. Ela, com o resto de dinheiro que pudera tirar do
talho criara uma casa de hóspedes e lá se ia aguentando. Tem por casa uma filha
vistosa, Polly, que tenta proteger de maus partidos. Aparece por lá um cliente,
Mr. Doran, a arrastar-lhe a asa, ela viu bem. Tinha trinta e quatro ou trinta e
cinco anos, não podia invocar a sua imaturidade para se aproveitar de uma jovem
de dezanove, «abusara da ignorância e falta de experiência de Polly: era
evidente». Tinha que haver uma reparação, e «a única reparação para a sua filha
era o casamento». Ia-se ficar por aqui para remediar as coisas. Ele era
empregado no escritório de um comerciante de vinhos, tinha um emprego estável e
razoavelmente bem pago, pareceria uma boa oportunidade para lhe impingir a
filha. Mas era evidente que se estava aproveitar de um incauto, pois ele não
tinha ido mais longe do que entrar numa ou duas cenas de beijos com ela. Mandou
a empregada chamar Mr. Doran à sua presença, tinha a certeza que o iria vencer,
isto é, convencer. Certo domingo de manhã ele lá apareceu. Passara pelo irmão
de Polly, Jack Mooney, que uma vez por muito pouco ameaçara morder a garganta a
alguém que desdissesse da sua irmã. Polly estava no quarto a alindar-se, estava
nervosa, chorava de emoção. E pouco depois é chamada pela sua mãe. Polly
mostra-se confusa mas a mãe insiste: «Vem cá, querida, que Mr. Doran quer falar
contigo». Moral: A pensão ou aquela
casa de hóspedes é um microcosmo de Dublin, ali também se ensaiam estratégias
de sobrevivência, com as variantes de pressão social e hipocrisia reinantes,
onde a falsidade e o egoísmo estão presentes. O casamento pode ser um processo
de elevação social. A mãe quer desquitar-se da filha e casá-la bem. Não só
Polly é impingida a Mr. Doran, como este é empurrado para ela, cumprindo-se as
regras implacáveis e hipócritas daquela sociedade.
- Graça Divina, Mr. Kernan
tem um acidente em frente de um bar, cai e perde os sentidos, dois homens tentam
ajudá-lo. Aparece depois o gerente, que, face à sua lividez chama a polícia.
Parece claro que se trata de um alcoólico a arrastar-se pelas ruas até cair e
morder a língua. Um desses bons samaritanos é Mr. Power, que o leva a casa,
onde constata a pobreza material e cultural ali manifestas, que já se estende
aos filhos. Dois dias depois os amigos vêm vê-lo a casa e, depois de muitos
conselhos propõe-lhe que participe num retiro espiritual (católico). Ele é um
convertido recente ao catolicismo, mas não muito entusiasta. Os amigos pensam
que esta será a melhor ajuda para ele abandonar o alcoolismo e endireitar a sua
vida. Deixaram-no em casa com a mulher, prometendo-lhe que o iam ajudar a
conseguir a reforma. Falam de religião, de catolicismo e protestantismo. Mr.
Kernan diz: «Não tenho assim tão má opinião dos jesuítas… É uma ordem educada.
E julgo que fazem bem». Há uma combinação para os amigos se encontrarem no
Mac`Auley. Bebem ali uma garrafa de whisky
especial e falam, claro, da igreja, do papado, da possível união da igreja
latina com a grega, da infalibilidade do Papa. Por fim lá vão para a igreja
jesuíta onde vai falar um tal padre Purdon. Ele fala do arrependimento, da
admissão das nossas culpas, da faculdade de todos os pecadores poderem alcançar
o perdão pela graça divina, mas parece que ninguém o leva a sério. Moral: A graça divina pode-nos salvar,
desviar dos maus caminhos, mas a palavra “graça” pode ter muitos sentidos,
também quer dizer apostar na educação, cada um tomar o propósito firme de se aperfeiçoar
e pugnar por si próprio.
- O bazar, um rapaz, a que
não é referido o nome, vivia em casa dos seus tios perdida no meio de uma rua
sombria e nostálgica. A casa tinha pertencido a um padre que ali falecera. Quando
os dias do ano ficaram mais curtos entretinha-se a ver pela janela a rmã de
Mangan, que vinha ali chamar o irmão para o chá. O rapaz deleitava-se a vê-la. A
sua figura esbelta e misteriosa enchia a sua alma de encantamento. Um dia
chegaram à fala e ela sugeriu-lhe que fosse ao bazar Araby, onde estavam à
venda coisas fantásticas. Na sua imaginação exacerbada ele ficou a delirar, e
respondeu-lhe que um dia ainda iria lá e talvez lhe trouxesse qualquer coisa.
Quando chegou a casa teve que aguentar a conversa da sua velha tia que coleccionava
estampilhas, alertando-a para a necessidade de ainda ir fazer uma compra ao
bazar Araby. Quando o tio chegou o rapaz pediu-lhe o dinheiro mas o tio
mostrou-se escuso, aquelas não seriam as horas indicadas para ir fazer compras.
Porém a tia intercedeu e ele lá lhe deu o dinheiro. Foi até ao bazar, ainda
teve que andar pelas ruas. Quando lá chegou, quase no fechar de portas, foi uma
rapariga que o veio atender. Ela perguntou-lhe se queria comprar alguma coisa,
mas ele ficou tão tolhido com a sua aparição que disse que não vinha comprar
nada. Paralisado, limitou-se a admirar tudo o que via e ouvia. Ele queria comprar
qualquer coisa para a irmã de Mangan, mas de tão tímido e abúlico ficou ali
espantado, até que as luzes fecharam e ele teve de regressar a casa, vendo-se
como uma criatura guiada e escarnecido pela própria vaidade. Moral: É a história de um primeiríssimo
amor, com aquele encanto celeste que ele tem. Mas era preciso dar um passo, ir
ao bazar fazer uma compra para a irmã de Morgan, porém o rapaz uma vez chegado
lá inibe-se, não tem rasgo para fazer a compra e dar prossecução ao seu amor. Mais
uma vez é a falta de acção, de coragem, de rasgo criativo que faz perder a
vida.
- Depois da corrida. Há uma
corrida de automóveis em Dublin, um ramo em que o pai de Jimmy Doyle, um
açougueiro bem sucedido, tem investido bastante. Ganhou a equipa germânico-belga,
muito aplaudida, bem como os segundos e terceiros, de naturalidade francesa. Ao
fim comemora esta corrida em casa num opíparo jantar com um amigo francês,
André Rivière, um pianista Húngaro, Villona, a que se junta o inglês Routh. Os
pais querem ver o seu filho bem vestido naquele evento, sentem-se felizes ao
vê-o rodeado de tanta opulência e notoriedade. Após o jantar vão dar uma volta
por Dublin, e é então que o americano Farley os convida para irem até ao seu
iate, onde passam o resto da madrugada a jogar às cartas a dinheiro. Jimmy Doyle sente-se inebriado no meio daquela
festa. «Não sabia quem estava a ganhar mas sabia que estava a perder. A culpa
era sua, porque muitas vezes confundia as cartas». Moral: os irlandeses às vezes são um
tanto provincianos, deixam-se entusiasmar com que o é estrangeiro e menosprezam
o que é seu. Não vêem as coisas com a necessária agudeza e acabam por ser os
últimos.
- A terra, Maria é uma
mulher simples e modesta, que irradia boa disposição, na noite Halloween,
depois de ter colaborado numa festa de beneficência numa instituição
protestante que abriga mulheres em dificuldades, regressa à noite a casa de Joe
Donnely, um homem de quem ela cuidou quando era criança. Durante o trajecto
adquire alguns bolos e doces para a família de Joe, apanha um táxi, e sente-se
tão empolgada com os comentários agradáveis que ouve de um seu acompanhante que
se esqueceu da encomenda no carro. Só em casa de Joe Donnely, e durante a festa,
Maria notou que se esquecera da encomenda, ainda tentou disfarçar aquele
esquecimento, mas era óbvio: tinha-se esquecido dela no caro. Tentam
reconfortá-la, mas ela ficou triste. Quis recordar Alphy, o irmão de Joe, de
quem também cuidou quando era pequeno, mas Joe não gostou desta lembrança. Indiferentes
a esta altercação as crianças riam felizes. A festa prosseguiu, e durante os
jogos à Maria saiu-lhe o livro de orações, que, para Mrs. Donnel queria dizer
que ela iria para um convento. Insistiram por fim que Maria cantasse. E ela
começou: «Sonhei que vivia em salas de mármore/com vassalo e servos a meu
lado/e de todos os que ali se reuniam/eu era a esperança e o orgulho/…»,
estrofe que ela repetiu por engano. Moral:
Estamos na presença de uma mulher serena e pacificadora, que se esqueceu sempre
um pouco de si para se dedicar aos outros. Mas ela também já teve os seus
sonhos, que hoje vê frustrados. É uma mulher no fundo sofredora, talvez tivesse
de ter feito mais por si no passado.
-
Embriaguez. Num escritório de
advocacia, um dos sócios, Mr. Alleyne, chama à atenção a um seu funcionário de
nome Farrington, que tinha tido até ali um desempenho exemplar e está a falhar
na simples tarefa de fazer a cópia de uma carta. Foi prevenido que se não a
acabasse o trabalho até ao fim do dia seria substituído. Enquanto é repreendido,
mentalmente faz planos para ir passar a noite a beber com os seus amigos. Dá
uma volta para se recompor e quando regressa à secretária sente-se incapaz de
terminar o trabalho. Ouve mais recriminações do patrão, que fala com uma cliente,
Miss Delacour, o que o deve ter despeitado, e responde-lhe com insultos. É-lhe exigido
então que se retrate, que peça desculpa, caso contrário será despedido. Porém ele
está-se nas tintas e dirige-se para um bar, pelo caminho penhora um relógio, e chegado
lá bebe rapidamente uma cerveja. Pouco depois encontra-se ali com três amigos a
quem conta a façanha: desancara num dos patrões. Bebem muito, metem-se com as
mulheres, há gastos de dinheiro que ele não pode acompanhar. Vão de um bar a
outro. Por fim Farrington é convidado para uma meça de força de braços (Arm
Wrestling). Ele está eufórico, não tem medo de ninguém, mas acaba por perder.
Quando chega a casa a mulher não tinha a comida feita, notando a falta um dos
seus filhos prontificou a ir fazê-la. Porém o lume estava apagado, e o pai, sob
o pretexto do filho ter deixado apagar o lume pôs-se a bater nele
desalmadamente. Aí o filho grita, ele sabe como elas lhe doem: «Oh pai… Não me
bata. Eu rezarei… eu rezarei uma Avé-Maria por si se não me bater… Eu rezarei
uma Avé-Maria». Moral: Um homem
deixa-se aprisionar por uma vida rotineira e estúpida, nada faz para sair da
mediania onde caiu. Acaba por se tornar um alcoólico, começa a perder qualidades
e a gastar mal o seu dinheiro. Vai acabar por ser despedido. E quando chega a
casa, a um filho que apenas o queria ajudar põe-se a bater nele como um ser
desnaturado. A criança, perante a dor que está ou irá sentir grita para ele
aflitivamente. Vou traduzir de outra maneira: Paizinho, não me bata, que eu rezarei uma Avé-Maria por si! Que
mais teria aquela criança para lhe dar em troca? É o que leva a embriaguez.
- Um caso doloroso. Mr.
Duffy tinha uma vida rotineira. Era um tanto solitário, não tinha companheiros
nem amigos, não gostava da desordem, quer física, quer mental. Não costumava
dar esmolas aos pobres. Uma noite foi a um concerto e encontrou duas mulheres,
uma das quais meteu conversa com ele. Podia prever que fora muito bela, e toda
ela era desejo. Voltou a encontrá-la uma segunda vez com a filha, e deu para
terem uma conversa mais íntima. Soube então que era casada com Mr. Sínico.
Encontram-se por acaso uma terceira vez e aproveitaram para marcar outros
encontros. Não demorou que ele fosse convidado para ir a casa dela. O capitão
Sinico encorajou estas visitas, pensando tratar-se de uma aproximação com a
filha, que estava casadoira. A companhia daquela mulher tornou-se um sol na sua
vida. Mrs. Sinico começou a levar aquela relação muito a sério, e certo dia
agarrou na mão de Mr. Duffy e apertou-a contra a sua face. Ora esta aproximação
súbita perturbou-o, ficou tão surpreendido que aquela relação acabou por ali.
Ainda chegaram a trocar cartas mas nunca mais se encontraram. Continuou a viver
aquela vida estúpida, solitária, sem amor. Certa noite olhou para o jornal e
uma notícia prendeu a sua atenção, dizia: MORTE DE UMA SENHORA EM SYDNEY PARADE
UM CASO DOLOROSO. Foi ler e tratava-se da morte de Emily Sinico, de quarenta e
três anos de idade, que morreu ao tentar atravessar a linha de comboio. Pôs-se
a pensar na notícia, e para se confortar daquela desgraça sentiu que fizera bem
em a ter rejeitado, pois era uma mulher cheia de vícios, imaginando que se
suicidara. Contudo, esta explicação não o deixou feliz e fê-lo sair de casa e
ir beber a um bar, talvez para se recordar melhor dela. Andou um pouco sob a
noite de Dublin, «Observou a rectidão da sua existência e sentiu que se privou
da alegria de viver». «Uma criatura manifestara amor por ele, e ele
recusara-lhe a vida e a felicidade». Só então «sentiu a grandeza horrível da
sua solidão». Moral: Mr. Duffy
tornara-se escravo da rotina, uma pessoa pouco sociável, pouco solidária, muito
voltado para si. Desperdiçara talvez a única oportunidade que tivera para amar
uma pessoa, ser feliz e fazer alguém feliz, talvez não devesse viver mais. E
ali estava ele, cheio de remorsos, na maior solidão, ainda mais horrível por
ele já não ter forças para preencher o vazio em que se tornara a sua vida.
- O morto, Gabriel Conroy vai com sua mulher,
Gretta, a uma festa dançante na casa das suas duas tias, Julia e Kate Morgan, onde
também vai estar presente Mary Jane, uma outra sua sobrinha. Lilly é a
empregada e quem organiza a festa, e Gabriel à chegada dirige-lhe um piropo pouco
feliz enquanto ela lhe guarda o casaco, a que ela responde desabridamente com
língua afiada. Para se redimir do seu erro ele dá-lhe uma choruda gorjeta. De
seguida vai falar com Ferddy, sempre bêbado, e Mr. Browne. A festa continua com
Mary Jane ao piano. Ele inicia então um diálogo com Mrs. Ivors. Falam sobre um
passeio de bicicleta ao Continente e sobre a Irlanda. Na continuação da
conversa ela apelida-o de «Britânico do Oeste», ao que ele se desculpa, dizendo
que está doente da Irlanda. Num discurso que faz ao jantar para agradecer a
hospitalidade das tias exorta as pessoas a não ficarem no passado, a viver o
futuro. Continuou à conversa e dali a pouco estava a falar do seu avô, quando
verifica que a sua mulher, Gretta, ficou extasiada ao ouvir uma canção cantada
na sala de estar por Mr. Bardell. Quando regressam ao hotel Gabriel Conroy
manifesta o seu desagrado pelo alheamento da esposa na festa, ao que ela lhe confessa que aquela música lhe fizera
recordar um antigo namorado, Michael Furey, que a tinha cantado para ela na sua
mocidade, em Galway. Face a esta inesperada confissão Gabriel começou a
recear que ela ainda estivesse apaixonada por ele, só se aquietando quando ela
lhe disse que ele tinha morrido aos dezassete anos. Naquela altura não
favorecera aquele amor, e para não o desanimar completamente escreveu-lhe a
dizer que ia para Dublin e que no Verão regressava. Na véspera da partida ele
aparece-lhe a rondar a casa, e ela mandou-o embora, dizendo que com aquele frio
podia até ficar doente. Vendo-a assim de partida, ele disse que não queria viver
mais, foi para casa e uma semana depois morria. E ali ficaram os dois a digerir
este facto. No ermo daquele quarto de hotel, Gretta não
demorou a adormecer, mas Gabriel Conroy permaneceu esperto, perturbado com o
passado da mulher. Vendo a neve a cair na
janela, como que pressente que ela vá cobrir o cemitério onde Michael Furey
descansa, assim como todos os da Irlanda. Moral:
A educação de Gabriel Conroy evidencia uma notória incapacidade para lidar com
mulheres, cuja falha ele aqui soluciona dando uma choruda gorjeta. Também é
notório que está a negligenciar a sua. Falam mais uma vez da Irlanda, de quem
diz estar doente mas que não faz nada por ela. Mais uma vez um grande amor, o
de Michael Furey, foi desperdiçado.
Uma
Apreciação geral
Gente
de Dublin é mais do que uma colectânea de contos, eles no seu conjunto como
que retratam Dublin e toda a Irlanda, dando-lhe a complexidade de um romance. Anos
depois ele iria escrever Retrato de
Artista Quando Jovem, pois bem, ele aqui já está a fazer um retrato, não de
um jovem, mas de uma cidade. Há ao longo de quase todo o livro uma crítica
aguda àquela sociedade, pondo a nu a hipocrisia que preside às relações
sociais, a paralisia de mentes adormecidas que impedem o progresso material, a moral
burguesa conservadora, aferida a padrões interesseiros e hipócritas, com os
quais esta classe vai amoldar as classes dirigentes. O fatalismo que se apossou
das mentes e as inibe de dar o devido aproveitamento às oportunidades que vão
surgindo é evidente. Este livro consta de quinze contos, porém só dez são aqui
analisados, e estes são suficientes para dar uma noção do seu conjunto. Foi
intenção do autor que cobrissem desde a infância, á adolescência e maturidade,
à vida pública. Ali se tratam dos problemas que então o preocupavam: a
afirmação da Irlanda, que se queria independente; as diferenças entre católicos
e protestantismo; o catolicismo em geral; a abulia dos islandeses em se
afirmarem. Para tratar destes temas o autor acaba por nos pôr a nu a estrutura da
sociedade daquele tempo, mostrando as paixões e anseios que orientavam aquele
povo, os seus defeitos e virtudes, os preconceitos que afectavam a vida das
pessoas.
O livro repousa numa Dublin escura,
em que quase tudo o que é mais importante acontece ao anoitecer ou à noite, e à
volta da comida e sobretudo da bebida, em situações que obrigam à reunião das
pessoas e as liberta um pouco dos preconceitos que as distorcem e inibem, facilitando
o contacto social. As personagens sentem-se prisioneiras num país sem futuro,
escravas de rotinas vigorosas, de que se sentem impotentes para contornar. As
janelas são também uma recorrência para se mostrar a vida, também um olhar para
o mundo. Há contudo nas pessoas um anseio de se libertar dessas amarras, algumas
conseguiram-no com sucesso, mas as personagens principais falham neste
desiderato. Há uma paralisia, uma inércia nas vontades da gente de Dublin, que imobiliza
tudo. Para saírem dessas cadeias o autor fala de epifanias, de revelações com
que se possa dar um salto na compreensão na vida, de uma energia com que as
pessoas se possam libertar. A situação política do país, ainda que de um modo
muito subtil é um tema sempre presente, bem como a religião: o catolicismo e o
protestantismo, os padres e os papas, os jesuítas. Divididos entre católicos e
protestantes, entre nacionalistas e conservadores, ele não se via muita luz ao
fim do túnel que haveria de levar a Irlanda à independência.
Trata-se de contos muito bem
escritos, com diálogos rigorosos e descrições criteriosas, e mais do que isso,
com uma ideia alargada sobre o que era a Dublin daquele tempo, o peso da sua
história, o marasmo do seu presente de que era preciso sair. Não se aprofunda
em grandes dramas, mas no quotidiano, para que o leitor fique a conhecer a
cidade na sua abrangência. Usa muito o discurso directo e nem sempre é
conclusivo sobre o que se descreve, as palavras podem ter mais que um sentido,
o leitor é chamado também a reflectir e reconstruir a história, a tomar partido
pelo que é necessário fazer. Não são explicitadas abertamente as medidas a
tomar: através porventura das epifanias tem de ser o leitor a descobrir. A tese
que ele pretende apresentar será a de um povo que está com dificuldades em
cumprir o seu destino, e que é urgente ir à procura de soluções. A estrutura
destes contos, que datam de 1914, vai configurar muitas das histórias dos
livros que James Joyce publicou a seguir. Gente
de Dublin é um belo livro, que pode servir como boa introdução para se
chegar ao Ulisses.
04/03/2016
Martz Inura
Martz Inura
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