NIKOLAI GÓGOL








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NIKOLAI GÓGOL
Almas Mortas
 Tradução do Russo de Nina Guerra e Filipe Guerra
ASSÍRIO & ALVIM (2017)

  
O HOMEM
            Nikolai Vassílievitch Gógol nasceu em 1 de Abril (20 de Março do calendário juliano) de 1809, em Velyki Sorochyntsi, Ucrânia, e faleceu em Moscovo em 4 de Março (21 de Fevereiro do calendário juliano) de 1852. Era filho de um oficial cossaco que lhe incutiu o gosto pela literatura, e a mãe educou-o segundo os princípios da mais esmerada formação religiosa, e no amor à verdade e à honradez. Vinha, portanto, de uma família de proprietários médios, com cerca de 200 almas. Inicialmente queria ser poeta, escreveu mesmo um trabalho empolgado, inspirado em Goeth, que foi mal recebido e que destruiu. Não foi muito longe nos estudos e vai para São Petersburgo em 1829, onde lecciona História e continua a escrever. Ali encontra Alexander Púchkin, que era já então uma referência literária romântica. Animado pelos seus escritos quer ter mais tempo livre e arranja um emprego ministerial. Durante algum tempo manteve uma intensa actividade literária com livros curtos, mas desconcertantes. Porém, a morte de Púchkin num duelo estúpido em 1837, causou nele um enorme desgosto, a ponto de começar a escrever desesperadamente Almas Mortas, para cumprimento de uma ideia que fora do seu amigo, e que é hoje considerada a sua obra-prima. Para desanuviar o seu espírito, contrariando a sua instabilidade psíquica, fez a seguir uma série de viagens ao estrangeiro e à própria Rússia. Andou pela Áustria, pela Itália, França e Alemanha, chegou a ir em peregrinação à Palestina. Em 1841 volta à Rússia para publicar Almas Mortas, mas a Comissão Censura de Moscovo foi pela sua proibição total. Volta-se então com os seus amigos para São Petersburgo, e a comissão de censura ali foi mais branda, apenas exigiu uma alteração na história do capitão Kopéikin, que ele satisfaz, e publica o livro, a que chama Poema, com pretensões mais vastas, ao modo de Dante de Alighieri. Era muito sensível, aceitava mal a críticas, que eram normalmente negativas, quer da igreja, quer da corte do Czar, quer dos críticos, que não podiam aceitar a análise mordaz que ele fazia à sociedade russa do seu tempo, detestavam o estilo paradoxal, às vezes surrealista, dos seus textos, o ambiente fantástico, quase satânico, que penetrava nalgumas das suas obras. Depois das suas viagens regressa à Rússia e inicia a II Parte de Almas Mortas, mas não vinha o mesmo, estava muito debilitado física e psiquicamente, sendo acometido por um estado de misticismo galopante, que o levou a mudar até a sua postura filosófica, de liberal para autocrata. Torna-se hipocondríaco, receia as doenças e teme a morte, anda obcecado por salvar a sua alma. E no início de Fevereiro de 1852 tem mais um ataque de loucura, em que queima na lareira do seu quarto alguns dos seus manuscritos, incluindo o final da segunda parte de Almas Mortas. Sofre de grave doença nervosa, com consequências cardíacas e na respiração, que além de lhe perturbarem a lucidez, o trazem aterrado. Em Janeiro de 1852 anuncia ter concluído onze capítulos do seu segundo volume de Almas Mortas, mas em Fevereiro é afectado pela morte da mulher de um seu amigo, mãe de sete filhos, um dos quais seu afilhado. Confessa-se a um padre fanático que lhe critica Almas Mortas, e isto ainda mais o deprimiu. Na noite de 8 de Fevereiro manda chamar um padre para lhe dar os últimos sacramentos, na madrugada do dia treze levanta-se da cama e lança na lareira do seu quarto uns papeis que depois se soube pertencerem ao segundo volume de Almas Mortas, um criado ucraniano assistiu, impotente, ao seu tresloucado acto. A partir do dia 13 de Fevereiro entrou num estrado extremo de depressão, vai levar os jejuns a sério, recusava-se a comer e não se deixa alimentar, não aceitando mesmo os cuidado médicos, até receber a extrema-unção, já no dia 19. E assim esteve durante dois dias, prolongando aquela agonia, morrendo aos 42 anos de idade. Contudo, dissessem mal dele, que havia quem o admirasse e considerasse, entre eles os estudantes, que viram nos seus escritos uma nova alma russa, e foi-lhe dado um funeral honroso, sendo enterrado no Cemitério Novodevichy em Moscovo.  



A OBRA
            Nicolai Gógol é o introdutor do realismo na literatura russa, que vinha de um período de literatura de viagens e do romantismo. A Rússia também estava a mudar. Depois da invasão do seu território por Napoleão Bonaparte, a sociedade russa nunca mais foi a mesma, tornou-se mais nacionalista, mais convencida do seu anacronismo social histórico, consciente da injustiça em que assentava a sua estrutura social, e começou a voltar-se para os grandes ideais, sobretudo por parte daqueles que o autor chama de “ressentidos”. Das suas obras destacam-se os romances: 
Taras Bulba (1832)
Amas Mortas, Poema (1842);
As colectâneas de contos, alguns, resultantes das suas viagens, mantendo a tradição da literatura de viagem:
Noites na Granja ao pé de Dikanka (1831-1832)
O Retrato (1832)
Avenida NévskY (1834)
Diário de um Louco (1835)
Mirgorod (1935)
O Nariz (1836)
Roma (1839)
A Caleche (1836)
O Capote (1841);
E há ainda as peças de teatro:
O Inspector Geral (1836)
O Casamento (1842)
Os Jogadores (1843).


O ROMANCE Almas Mortas, Poema
Esta obra reporta-se à Rússia, e a um período imediatamente posterior a 1812. Nicolai Gógol tenta publicar Almas Mortas em Moscovo, em 1841, mas o comité moscovita de censura recusa a sua publicação. É só com o apoio de alguns amigos que o livro passa pelo Comité de Censura de São Petersburgo, e é publicado em 1842. O romance é uma descrição em detalhe das preocupações do homem russo; uma sátira às vezes impiedosa ao sistema vigente, usa uma linguagem menos convencional, recorre à metáfora para contornar a censura, toldando de fantástico algumas das suas descrições. Embora seja ucraniano, tem subjacente o seu amor pela Grande Rússia, a quem perguntava para onde ia.

            PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES
            Pável Ivánovitch Tchítchikov: É principal personagem do romance, teve uma infância infeliz, uma juventude difícil, fracassou nos estudos. Como adulto inicia a sua actividade como escrivão, depois sobe a chefe de secção, passa a alfandegário e por fim é solicitador. Procura agradar aos seus chefes, é um bajulador impenitente, obcecado por dinheiro, pelo reconhecimento, recorrendo para tal a todos os expedientes. Enfim, é um grande vigarista, que consegue enganar meio mundo. O autor, usando o sentido irónico, defende-o, dizendo que ele é apenas um granjeador, um homem prático. Ele à primeira vista parece amável, afável, pessoa instruída, bom conversador, mas no fundo é um vigarista, insensível à desgraça alheia, corrupto, avarento, hipócrita e oportunista
            Petruchka: O lacaio de Tchítchikov, por vezes recalcitrante, que aceita como natural a sua situação de servidão
  Selifan: O cocheiro, bebedolas, sem perspectivas de vida, que por vezes se perde com a britchka
   Nozdriov: Homem loiro, de alta estatura, cara magra, tez bronzeado, inconstante, amante do jogo. Por vezes bebe e fala demais, tornando-se inconveniente
           Manílov: A primeira vítima de Tchítchikov, que aprecia a sua fanfarronice, e até lhe dá de borla as almas para se ver livre do imposto que tem de pagar por elas
Sobakévitch: Homem que diz mal de toda a gente, muito voltado para si mesmo, matreiro, que pede uma exorbitância pelas suas almas mortas
Pliútchin: Um viúvo, desconfiado e avarento, que não dá um copeque a ninguém, nem à sua filha em dificuldade, nem aos seus netos, só à custa de muito regateio vende as almas fugidas
Andrei Ivánovitch Tentétnikov: Um proprietário mandrião, que vive para comer, deixando a  sua aldeia entrar em decadência
Konstanglo (Konstantin Fiodovoritch): Um homem que sabia muito da vida, e dá ao nosso herói alguns conselhos em como se tornar um proprietário
Khlobúev: Um pai responsável, mas desbaratador dos seus bens, que vende para levar os seus filhos para a cidade, onde lhes quer dar uma boa educação
            Afanássi Vssílievitch: Um causídico que defende qualquer aldrabão que lhe apareça, pois as pessoas quando erram é porque lhes falta cultura ou são ignorantes.
Samosvístov: Uma personagem que faz o papel de militar ao serviço do causídico, e está disposto a fazer tudo por dinheiro
            Príncipe: Personifica o poder instituído, pretende ser justo e cumprir a lei, mas é fortemente influenciado pelo sistema, de que se serve, sendo confundido pelos seus vassalos.

            RESUMO DO LIVRO
            O livro é constituído por dois tomos, o Primeiro tem 11 capítulos, e o segundo 4 e uns restos, que se conseguiram salvar depois de o autor os ter tentado queimar.

Tomo I
            Capítulo I: Pável Ivánovitch Tchitchikov, que teve uma infância infeliz, foi educado a não ser mentiroso, e a agradar aos seus superiores, pois só assim seria bem aceite pelas pessoas, e capaz de singrar na vida, onde o dinheiro era o mais importante. Chega à cidade de N, e com a sua lábia de vigarista refinado vai apresentar-se às pessoas influentes do sítio, conquistando desde logo a simpatia do governador, do coronel, do presidente do tribunal, do chefe da polícia, das pessoas influentes. É amável, afável, instruído, leal, respeitador, parece a todos uma pessoa honesta e bondosa.
            Capítulo II: O nosso herói, com o seu lacaio, Petruchka, o seu cocheiro Selifan, e a sua troica de cavalos (Fiscal, Baio e Malhado), segue na sua britchka, espécie de caleche, à procura de proprietários ricos. O seu objectivo é comprar almas mortas, que são baratas, já que só oneram a tributação dos donos até ao próximo recenseamento, que ele quer acrescentar ao seu património, pois ele sabe que é em função do seu número que o governo vai distribuir terras, e com isso consiga talvez consiga fazer uma generosa hipoteca para futuras transações, ainda mais rendosas.  A primeira vítima é o proprietário rural Manílov, com quem estabelece contacto fácil, que até lhe oferece as almas para se ver livre do imposto que tem de pagar por elas.
Capítulo III: De seguida tenta passar por casa de Korúbotchka, outro proprietário rico que lhe indicaram, mas o seu cocheiro está bêbado, perde-se e vai parar sob um forte temporal à casa de uma viúva de secretário de colégio. Contudo, ela é somítica, acha aquela mercadoria estranha, e ao ver o seu interesse por almas, primeiro quer comparar preços, e oferece-lhe mel e cânhamo, cujos preços estava mais a par. Ele recusa e insiste nas almas mortas. Ela fica com a impressão de estar a ser enganada, das almas mortas valerem uma fortuna, e o nosso herói só a custo lhe consegue comprar algumas, e a elevado preço.
            Capítulo IV: Regressa à estalagem, onde se depara com Nozdriov, um homem gastador, violento, capaz de tudo, bebedor, viciado no jogo. Ele quer-lhe comprar almas, mas ele mostra-se mais difícil do que o esperado. Leva-o para sua casa. Está ainda bêbado. É um exagerado nas suas descrições, é um cunhado que o modera. Não lhe vende as almas, que devem ser preciosas, admite, porém, usá-las como moeda de jogo, e quer força-lo a jogar. Salva-o o chefe da polícia que ali o vem prender, por ele em estado de embriaguez ter cometido ofensas corporais na pessoa de um proprietário rural.
            Capítulo V: Vai em seguida a casa de Sobakévitch, um homem que diz mal de toda a gente. Ele ao ver o interesse de Tchítchikov pelas almas mortas pede uma exorbitância por elas, 100 rublos por cada uma. O nosso herói acha um preço exagerado, mas ele argumenta que se ele as pretende comprar é porque precisa delas, embora elas aparentemente não valham nada. Não chegam logo a acordo, e o maldizente proprietário ainda lhe perguntou se estava interessado no sexo feminino. Enfim, só com muito regateio as consegue comprar a dois rublos e meio cada uma, e porque deu a entender poder comprar outros produtos mais tarde.
Capítulo VI: Tchítchikov segue de imediato para casa do velho Pliútchin, um viúvo, desconfiado e avarento, que tem a mania que é roubado por tudo e por todos, e que tem todo o seu vasilhame marcado, para se certificar se é ou não é roubado pelos seus lacaios. Não dá um copeque a ninguém, nem a uma filha que vem ali pedir ajuda, nem aos seus dois netos. A custo lá lhe conseguiu comprar 78 almas fugidas, e ainda bem que se foram, pois se ficassem muito mais tempo na sua propriedade morreriam à fome. Quando o nosso herói saiu dali nem um chá aceitou, pois ele além de avarento era um porco.  
            Capítulo VII: Depois de reunir um bom lote de almas mortas Tchítchikov vai tentar registá-las ao tribunal, era um homem cumpridor, que queria fazer as coisas segundo a lei. Mas ali os funcionários eram preguiçosos e corruptos, e tem de lhe untar as mãos a alguns para lhe andarem com o processo. Acaba por levado ao presidente do tribunal, com quem já tinha travado amizade. Este admira-se de tal compra, mas ele diz que os pretende levar para a província do Quersoneso. Lá fazem a escritura, não muito clara, e depois, o próprio tribunal molha o acontecimento. O comandante da polícia, que era uma espécie de benfeitor da cidade, é que organizava o evento. Durante o lauto jantar empolga-se, receia estar a falar de mais e regressa a casa, não fosse dizer algo inconveniente.
            Capítulo VIII: Por esta altura Tchítchikov é uma pessoa muito considerada na cidade, e até recebe uma carta de uma admiradora, que o deixa intrigado. Vai a um baile ali organizado, e tenta descobrir qual das mulheres a terá enviado, mas não o descobre. Anda à volta delas e tem olhares suspeitos. Acaba por ter uma conversa obtusa com uma delas, cheia de uma falsa eloquência, que desagrada às outras mulheres, que não chegaram à conversa com ele, e que começam a tecer as mais desfavoráveis conjecturas a seu respeito. Por fim, para piorar as coisas, aparece ali Nozdriov meio bêbado, que se põe a disparatar, fazendo-lhe as mais absurdas acusações. Ele acaba por vir para casa preocupado.
            Capítulo IX: Depois daquele baile muito badalado, o povo pôs-se a pensar quem seria Tchítchikov. O autor recorre a uma conversa entre a modista Sofia Ivánovna e a cliente Anna Grigórievna para dar uma ideia dos rumores que se dizem acerca dele, e se algumas pessoas lhe são favoráveis, outras aventam sobre a sua pessoa as piores hipóteses. Os estratos inferiores adoram cultivar os boatos sobre os estratos superiores. Entre os homens e as mulheres formam-se mesmo partidos dos que dizem bem dele e dos que dizem mal. Os próprios funcionários ficaram na dúvida se ele seria uma pessoa de bem, dando aso a que o comandante da polícia fosse encarregado de fazer uma reunião para se apurar o facto.
            Capítulo X: Foi realizada a reunião em cada do comandante da polícia. O chefe dos correios diz que sabe quem ele é, afinal, nada mais nada menos que o capitão Kopéikin, e conta uma história fantástica acerca dele. Diz que ele perdeu uma perna e um braço ao serviço de sua majestade. Alguns começam a duvidar, pois ele tinha as duas pernas e os dois braços, inventa-se quase tudo acerca dele. O comandante da polícia não chegou a nenhuma conclusão. Entretanto, Tchítchikov, que estava com uma gripe em casa, quando saiu e foi visitar os seus amigos verificou que estes ou não o recebiam ou tratavam com maus modos. Encontra Nozdríov mais sóbrio, que lhe dá as últimas novidades. Ele está acusado de falsificador de moeda, de raptor da filha do governador, da morte procurador, é o bode expiatório para todas as culpas que se formaram na cidade, e resolve fugir com o lacaio e cocheiro, na sua britchka.
            Capítulo XI: Lá consegue partir, não sem que em antes maltrate o cocheiro, que é um atrasadinho. É então que o autor o vai retratar. Tchítchikov não saía nem ao pai nem à mãe, talvez a algum que esteve lá de paisagem, quer dizer, era um filho da mãe, Não teve amigos na infância. Foi estudar para a escola municipal, o pai recomendou que estudasse e que usasse de lisonja para com os professores, pois mesmo que soubesse pouco ultrapassaria os mais dotados. Quando o pai morreu vendeu a modesta casa por 1000 rublos e foi para a cidade, onde é expulso da escola por ser estúpido. Engrena então no funcionalismo. É bem-apessoado e forreta, incapaz de um sorriso. Começa a sua carreira como escrivão, lisonjeia o chefe, que o pretende para marido de sua filha, e o eleva a chefe de secção, mas uma vez promovido ele desiste da rapariga. A seguir muda-se para a alfândega, onde é maior a corrupção e pode tirar mais proventos. As coisas não lhe correm à feição e torna-se por fim solicitador, e é aqui que pode enganar meio mundo, e se inicia no comércio das almas mortas, o seu sonho é tornar-se grande proprietário.

Tomo II
Capítulo I: O que resta do II tomo parece não mudar muito, mas pensa-se que teria mudado, no caso de o autor não ter queimado a sua grande parte. Vai parar a casa de um tal Andrei Ivánovitch Tentétnikov, que dizem ser um mandrião, um indolente, que deixou a sua propriedade entrar em decadência. E ainda não será dos piores, pois tentou dar tempo livre aos seus servos para se cultivarem, mas eles, em vez disso gastaram o tempo em bailes e bebedeiras, não no seu enriquecimento pessoal. Ao lado dele vivia um general, a quem foi prestar os seus respeitos, e com quem estabelece relações agradáveis. Zanga-se com Andrei por uma questão de ciúmes –, por ele enobrecer demasiado o general.
Capítulo II: Tchítchikov depois de alguns contactos com o seu anfitrião, volta a casa do general, e encontra lá a filha dele, no contacto que estabelece com o general, este tem uma conversa depreciativa em relação a Tentétnikov. Lisonjeador, mostra-se sensível às ideias do general e aproveita para o convencer de que tem um tio que quer que lhe arranje trezentas almas mortas para acrescentar à sua propriedade, sem o qual perderá o direito à herança. O general manda a filha sair dali, aquilo não é conversa que ela possa ouvir. Acha que o tio dele é burro, mas que lhe arranja as almas, nem que tenhas de ir desenterrar do cemitério.
Capítulo III: O nosso Tchítchikov não desiste de prosseguir com o seu negócio, e finalmente tenta ir a casa do coronel Kochkariov, mas a cocheiro é estúpido e perde-se, vão parar a casa Piotr Petróvitch Pertukh. Este, contudo, recebe-o bem, tem dois filhos, que o nosso herói logo se põe a louvar. Pouco depois chama ali um vizinho, Platon Mikháilovitch Paltónov, que o conduz a Konstanjoglo, uma excelente pessoa, que lhe pode dar boas indicações sobre o que procura. Aqui só pensam em grandes jantaradas, vivem da ociosidade. Este aconselha-o a ir a casa de quem lhe podia vender uma propriedade, um tal Khlobúev, e propõe-se mesmo emprestar-lhe dinheiro. Foi ali combinado irem lá fazer o negócio.
Capítulo IV: Tudo se encaminha para que Tchítchikov se torne um proprietário. Konstanjoglo empresta-lhe 10 000 rublos para ele fazer a transação. A propriedade que vai comprar está ao desmazelo, os campos por cultivar, com os seus mujiques a morrer à fome, as casas destelhadas e a ruir, as pontes descuradas e a cair. Mesmo assim, com as suas terras ao abandono, negligenciadas, Khlobúev ainda lhe pede uma exorbitância pela propriedade, pois tem cinco filhos a quem dar uma educação na cidade, embora seja um esbanjador, a viver do bom e do melhor. Acabam por chegar a acordo com uma venda por 35 000 rublos, sendo 15 000 dados de adiantado, mas Tchítchikov é sabido, e só lhe vai adiantar 10 000, e depois atrasar os restantes.
Últimos capítulos, ou o que resta deles: Tchítchikov veste-se melhor, como proprietário que agora é, mas eis que acaba por ser denunciado como vigarista e entregue ao príncipe, que o interroga e manda prender numa masmorra a fim de ter o destino que merece. Vem ali o seu amigo Murázov, concessionário dos álcoois, a quem pede a chorar para que interceda por ele junto do príncipe, pois que toda a sua vida foi um engano, vai corrigir-se. Ele não se mostra capaz de tal missão, pois contra o incriminado pendem muitas acusações. Tchítchikov fala então da sua arca, onde tem os registos das suas almas mortas –, uma grande fortuna. Recorre ainda ao causídico, Afanássi Vassílievitch, a quem promete uma aldeia se ele o conseguir libertar, defende-se, dizendo que é um ser humano, que já começara várias vezes a partir do zero. Ele vai-se embora e aparece por lá o espadaúdo, Samosvístov, ligado ao causídico, que diz que o libertará se ele lhe arranjar 30 000 rublos. Ele concorda e ele substitui a mulher que o acusou por outra que o vai inocentar, avisa a sentinela que o tem ali preso, que vai mandar outra para a substituir, e manda para ali um salafrário seu, chegando ao baú, que leva dali para fora. A seguir surge no tribunal uma chuva de denúncias contra ele, tão numerosas como contraditórias, que bloqueiem completamente a justiça. Afanássi Vssílievitch vai falar com o príncipe, que se mostra admirado pela sua intercedência, mas ele justifica-se, dizendo que o homem quando comete uma indecência é por falta de cultura e ignorância (portanto está inocente). O próprio príncipe fica confuso com o que se diz, e começa a fazer um grande discurso sobre a corrupção, que tem raízes profundas, e se tornou quase uma necessidade, mesmo para as pessoas que nascem honestas. Com este sermão chega-se a imaginar que a corrupção até será uma grande virtude… Ele convida toda a gente a estudar o que é a obrigação e o dever, concluindo que “essa noção já se vai tornando obscura para nós todos”.

O túmulo de Nikolai Gógol, mestre da literatura mundial, no cemitério Novodevichy, Rússia

            COMENTÁRIO GERAL

            Alma Mortas, escrito naquela época foi um acto revolucionário. Esta obra é um ataque brutal contra a burocracia, contra a corrupção e a desumanidade com que eram tratados os camponeses, em que as propriedades se mediam pelo número de almas, os chamados mujiques. Imagine-se que alguém fazia na imprensa um discurso acusatório deste jaez? Ia logo parar à Sibéria, tal o seu poder subversivo. Mas, feito assim no livro, servindo-se da ironia, passou, e o seu efeito foi mais vasto que qualquer discurso que se fizesse, pois seria logo calado pela censura e o seu autor desterrado para a Sibéria. Nicolai Gógol escreveu-o mesmo com esta intenção, ao lê-lo a Púschkin, julgou que estava a ler um texto cómico, e quando esperava vê-lo a rir-se, viu-o a olhar para ele com um olhar desterrado, exclamando: “Como a Rússia é triste?!”. E era, política, social, económica e culturalmente estava anacrónica, e desde Pedro I, que explorou todo um povo para a megalomania de São Petersburgo, mandando construir ali os maiores palácios da Europa, de um luxo raramente visto. Não obstante, a Rússia depois nos premiasse na ciência com Dmitri Mendeleiev, Sofia Kovalevskaya e Ivan Pavlov; na música com Rimsky Korsakov, Alexandre Borodine, Tchaikovski, Prokofiev e Stravinski; na literatura com Nicolai Gógol, Leão Tolstói, Fiódor Dostóievki, Máximo Gorki e Vladimir Nabokov.  
            O livro trata das viagens de Tchítchikov, um vigarista incorrigível, com a sua troica de cavalos manhosos; o seu lacaio servil, mas refilão, Petruchka; e o seu cocheiro Selifan, bêbado e estúpido, que anda pela Rússia a comprar almas mortas. O seu propósito tem algo de quixotesco. Como se disse, o autor achou mesmo que esta história seria engraçada, e não é sem razão que ele fala de D. Quixote no próprio livro. O problema é que assunto de que trata é tão iníquo, tão deprimente, que para um ser humano esclarecido a história se torna repulsiva, odiosa, ainda que o livro seja interessante. O grande poeta Púshckin, mesmo sendo um romântico, logo o detectou, quando ela lhe foi lida. E naquele tempo, um livro que levasse o mundo a sério com alguma profundidade, que não que se refugiasse em viagens longínquas, ou histórias de amor banais, para enternecer o coração (como está a acontecer um pouco neste início do século XXI), era então algo que começava a despertar muito interesse, e iria influenciar fortemente a literatura russa, quiçá, o mundo. Mesmo que o livro seja frequentemente caricatural, através dele podemos reconstruir com muita precisão as relações sociais daquele tempo, o regime de propriedade que existia, a religião que estavam a seguir, os valores morais que presidiam à sua vida.
            E vejamos, ele não precisou de inventar muito, bastou-lhe descrever a realidade à sua volta, para qual toda a gente parecia estar cega, ainda que pareça paradoxal comprar almas mortas! Ele chegou ao realismo naturalmente, forçado pela própria vida, ao dar-nos conta da injustiça com que viviam os mujiques, da burocracia que aperrava o povo russo, da corrupção que afectava toda a sociedade, incluindo a polícia, denunciando o poder de os concessionários de determinados produtos, como o álcool, e a própria justiça. Retrata a influência francesa no país. Almas Mortas é uma sátira à sociedade russa do seu tempo, ao poder discricionário dos governadores, à superioridade do chefe, à sacralização do papel, aos preconceitos que enfermavam as classes superiores e as classes inferiores –, é uma profunda machadada na ordem social reinante, já moribunda. Os seres humanos, mesmo com as melhores intenções, deixam-se instrumentalizar pelas ideias mais estúpidas. Embora ele nos pretendesse fazer rir, nós hoje, lemo-lo como uma fidedigna fonte histórica. Aquele Tchítchikov, realmente era um grande granjeador, no dizer de Gógol, ele ia comprar almas mortas, pois era o governo que o premiava, cedendo terras no Querkoneso, no Cáucaso, onde quer que fosse, em função do número de almas que cada um possuísse. Ele apenas se estava a servir legalmente do sistema.
            O livro está cheio de descrições deliciosas, pouco convencionais, que lhe pretendem pôr em relevo um falso realismo, quando diz “nem gordo, nem magro”, “de alto lá com ele”, “só Deus é o que o sabe”, “sabe-se lá porquê?”, “só o Diabo é que sabe”, quando trata as pessoas por “paizinho”, “mãezinha”, ou quando nos elucida como os mujiques eram tratados, quais braços escravos ao serviço dos senhores, um género de animais com alma, pouco acima de coisas, e que depois de mortos ainda valiam alguns copeques. Note-se que o governo explorava este sistema activamente, reclamando impostos, mesmo pelas almas dos que já tinham falecido, antes que houvesse outro recenseamento. E o facto é que até nem estaria errado segundo os princípios cristãos, pois para a sagrada religião só as pessoas é que morriam –, havia muita lógica nisto. O governo cobrava escrupulosamente este imposto, e não vemos no livro ninguém a protestar por tal injustiça, antes, alguém achou que as almas mesmo mortas poderiam valer 100 rublos cada uma, foi o que Sobakévitch pediu inicialmente a Tchítchikov. Neste negócio de almas mortas, vendedor e comprador só tinham a lucrar, e isto também aproveitava ao governo, pois ia lá recolher mais alguns rublos para o erário público. Toda esta lógica tinha a raiz no Czar, mas Nicolai Gógol minimizou-a no príncipe, como se estivesse na Itália, e assim o livro passou na censura em São Petersburgo, imagine-se! E não passou em Moscovo, eles ali ainda eram mais exigentes, o título do livro começava logo por ser censurável, reprovável, pois não havia almas mortas, as almas eram imortais. Obrigado, Nicolai Gógol, por este grande livro russo.

27/3/2018
Martz Inura



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