NIKOLAI GÓGOL
Almas Mortas
Tradução do Russo de Nina Guerra e Filipe Guerra
ASSÍRIO & ALVIM (2017)
O
HOMEM
Nikolai
Vassílievitch Gógol nasceu em 1 de Abril (20 de Março do calendário juliano)
de 1809, em Velyki Sorochyntsi, Ucrânia, e faleceu em Moscovo em 4 de Março (21
de Fevereiro do calendário juliano) de 1852. Era filho de um oficial cossaco
que lhe incutiu o gosto pela literatura, e a mãe educou-o segundo os princípios
da mais esmerada formação religiosa, e no amor à verdade e à honradez. Vinha,
portanto, de uma família de proprietários médios, com cerca de 200 almas. Inicialmente
queria ser poeta, escreveu mesmo um trabalho empolgado, inspirado em Goeth, que
foi mal recebido e que destruiu. Não foi muito longe nos estudos e vai para São
Petersburgo em 1829, onde lecciona História e continua a escrever. Ali encontra
Alexander Púchkin, que era já então uma referência literária romântica. Animado
pelos seus escritos quer ter mais tempo livre e arranja um emprego ministerial.
Durante algum tempo manteve uma intensa actividade literária com livros curtos, mas desconcertantes. Porém, a morte de Púchkin num duelo estúpido em 1837, causou nele
um enorme desgosto, a ponto de começar a escrever desesperadamente Almas Mortas, para cumprimento de uma
ideia que fora do seu amigo, e que é hoje considerada a sua obra-prima. Para
desanuviar o seu espírito, contrariando a sua instabilidade psíquica, fez a
seguir uma série de viagens ao estrangeiro e à própria Rússia. Andou pela
Áustria, pela Itália, França e Alemanha, chegou a ir em peregrinação à
Palestina. Em 1841 volta à Rússia para publicar Almas Mortas, mas a Comissão
Censura de Moscovo foi pela sua proibição total. Volta-se então com os seus
amigos para São Petersburgo, e a comissão de censura ali foi mais branda,
apenas exigiu uma alteração na história do capitão Kopéikin, que ele satisfaz, e
publica o livro, a que chama Poema, com pretensões mais vastas, ao modo de
Dante de Alighieri. Era muito sensível, aceitava mal a críticas, que eram
normalmente negativas, quer da igreja, quer da corte do Czar, quer dos críticos,
que não podiam aceitar a análise mordaz que ele fazia à sociedade russa do seu tempo,
detestavam o estilo paradoxal, às vezes surrealista, dos seus textos, o ambiente
fantástico, quase satânico, que penetrava nalgumas das suas obras. Depois das
suas viagens regressa à Rússia e inicia a II Parte de Almas Mortas, mas não vinha
o mesmo, estava muito debilitado física e psiquicamente, sendo acometido por um
estado de misticismo galopante, que o levou a mudar até a sua postura filosófica,
de liberal para autocrata. Torna-se hipocondríaco, receia as doenças e teme a
morte, anda obcecado por salvar a sua alma. E no início de Fevereiro de 1852
tem mais um ataque de loucura, em que queima na lareira do seu quarto alguns
dos seus manuscritos, incluindo o final da segunda parte de Almas Mortas. Sofre de grave doença
nervosa, com consequências cardíacas e na respiração, que além de lhe perturbarem a lucidez, o trazem aterrado. Em Janeiro de 1852 anuncia ter concluído onze
capítulos do seu segundo volume de Almas Mortas, mas em Fevereiro é afectado
pela morte da mulher de um seu amigo, mãe de sete filhos, um dos quais seu
afilhado. Confessa-se a um padre fanático que lhe critica Almas Mortas, e isto ainda mais o deprimiu. Na noite de 8 de
Fevereiro manda chamar um padre para lhe dar os últimos sacramentos, na
madrugada do dia treze levanta-se da cama e lança na lareira do seu quarto uns
papeis que depois se soube pertencerem ao segundo volume de Almas Mortas, um criado ucraniano
assistiu, impotente, ao seu tresloucado acto. A partir do dia 13 de Fevereiro
entrou num estrado extremo de depressão, vai levar os jejuns a sério, recusava-se a comer e não se deixa alimentar, não aceitando mesmo os cuidado médicos, até receber a extrema-unção, já no dia 19. E assim
esteve durante dois dias, prolongando aquela agonia, morrendo aos 42 anos de
idade. Contudo, dissessem mal dele, que havia quem o admirasse e considerasse, entre
eles os estudantes, que viram nos seus escritos uma nova alma russa, e foi-lhe
dado um funeral honroso, sendo enterrado no Cemitério Novodevichy em Moscovo.
A
OBRA
Nicolai Gógol é o introdutor do
realismo na literatura russa, que vinha de um período de literatura de viagens e
do romantismo. A Rússia também estava a mudar. Depois da invasão do seu território por Napoleão Bonaparte, a sociedade
russa nunca mais foi a mesma, tornou-se mais nacionalista, mais convencida do
seu anacronismo social histórico, consciente da injustiça em que assentava a
sua estrutura social, e começou a voltar-se para os grandes ideais, sobretudo por
parte daqueles que o autor chama de “ressentidos”. Das suas obras destacam-se os romances:
–
Taras Bulba (1832)
–
Amas Mortas, Poema (1842);
As
colectâneas de contos, alguns, resultantes das suas viagens, mantendo a
tradição da literatura de viagem:
–
Noites na Granja ao pé de Dikanka
(1831-1832)
–
O Retrato (1832)
–
Avenida NévskY (1834)
–
Diário de um Louco (1835)
–
Mirgorod (1935)
– O
Nariz (1836)
–
Roma (1839)
–
A Caleche (1836)
–
O Capote (1841);
E
há ainda as peças de teatro:
–
O Inspector Geral (1836)
–
O Casamento (1842)
–
Os Jogadores (1843).
O
ROMANCE Almas Mortas, Poema
Esta
obra reporta-se à Rússia, e a um período imediatamente posterior a 1812. Nicolai Gógol tenta
publicar Almas Mortas em Moscovo, em 1841, mas o comité moscovita de censura
recusa a sua publicação. É só com o apoio de alguns amigos que o livro passa pelo Comité de Censura de São Petersburgo, e é publicado em 1842. O romance é uma descrição em detalhe das preocupações do homem
russo; uma sátira às vezes impiedosa ao sistema vigente, usa uma linguagem
menos convencional, recorre à metáfora para contornar a censura, toldando de fantástico
algumas das suas descrições. Embora seja ucraniano, tem subjacente o seu amor
pela Grande Rússia, a quem perguntava para onde ia.
PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES
Pável
Ivánovitch Tchítchikov: É principal personagem do romance, teve uma
infância infeliz, uma juventude difícil, fracassou nos estudos. Como adulto inicia
a sua actividade como escrivão, depois sobe a chefe de secção, passa a alfandegário
e por fim é solicitador. Procura agradar aos seus chefes, é um bajulador
impenitente, obcecado por dinheiro, pelo reconhecimento, recorrendo para tal a todos os expedientes.
Enfim, é um grande vigarista, que consegue enganar meio mundo. O autor, usando
o sentido irónico, defende-o, dizendo que ele é apenas um granjeador, um homem
prático. Ele à primeira vista parece amável, afável, pessoa instruída, bom
conversador, mas no fundo é um vigarista, insensível à desgraça alheia,
corrupto, avarento, hipócrita e oportunista
Petruchka:
O lacaio de Tchítchikov, por vezes recalcitrante, que aceita como natural a sua
situação de servidão
Selifan: O cocheiro, bebedolas, sem perspectivas de vida, que por vezes se perde com a britchka
Nozdriov: Homem loiro, de alta estatura,
cara magra, tez bronzeado, inconstante, amante do jogo. Por vezes bebe e fala
demais, tornando-se inconveniente
Manílov:
A primeira vítima de Tchítchikov, que aprecia a sua fanfarronice, e até lhe dá
de borla as almas para se ver livre do imposto que tem de pagar por elas
Sobakévitch: Homem que diz mal de toda a gente,
muito voltado para si mesmo, matreiro, que pede uma exorbitância pelas suas
almas mortas
Pliútchin: Um viúvo, desconfiado e avarento,
que não dá um copeque a ninguém, nem à sua filha em dificuldade, nem aos seus
netos, só à custa de muito regateio vende as almas fugidas
Andrei Ivánovitch Tentétnikov: Um proprietário mandrião, que vive para comer, deixando a sua aldeia entrar em
decadência
Konstanglo (Konstantin
Fiodovoritch): Um
homem que sabia muito da vida, e dá ao nosso herói alguns conselhos em como se tornar um
proprietário
Khlobúev: Um pai responsável, mas desbaratador
dos seus bens, que vende para levar os seus filhos para a cidade, onde lhes
quer dar uma boa educação
Afanássi
Vssílievitch: Um causídico que defende qualquer aldrabão que lhe apareça,
pois as pessoas quando erram é porque lhes falta cultura ou são ignorantes.
Samosvístov: Uma personagem que faz o papel de
militar ao serviço do causídico, e está disposto a fazer tudo por dinheiro
Príncipe:
Personifica o poder instituído, pretende ser justo e cumprir a lei, mas é
fortemente influenciado pelo sistema, de que se serve, sendo confundido pelos
seus vassalos.
RESUMO DO LIVRO
O livro é constituído por dois
tomos, o Primeiro tem 11 capítulos, e o segundo 4 e uns restos, que se conseguiram
salvar depois de o autor os ter tentado queimar.
Tomo I
Capítulo
I: Pável Ivánovitch Tchitchikov, que teve uma infância infeliz, foi educado
a não ser mentiroso, e a agradar aos seus superiores, pois só assim seria bem
aceite pelas pessoas, e capaz de singrar na vida, onde o dinheiro era o mais
importante. Chega à cidade de N, e com a sua lábia de vigarista refinado vai
apresentar-se às pessoas influentes do sítio, conquistando desde logo a
simpatia do governador, do coronel, do presidente do tribunal, do chefe da
polícia, das pessoas influentes. É amável, afável, instruído, leal,
respeitador, parece a todos uma pessoa honesta e bondosa.
Capítulo
II: O nosso herói, com o seu lacaio, Petruchka, o seu cocheiro Selifan, e a
sua troica de cavalos (Fiscal, Baio e Malhado), segue na sua britchka, espécie de caleche, à procura
de proprietários ricos. O seu objectivo é comprar almas mortas, que são baratas,
já que só oneram a tributação dos donos até ao próximo recenseamento, que ele
quer acrescentar ao seu património, pois ele sabe que é em função do seu número que o governo vai distribuir terras, e com isso consiga talvez consiga fazer uma generosa
hipoteca para futuras transações, ainda mais rendosas. A primeira vítima é o
proprietário rural Manílov, com quem estabelece contacto fácil, que até lhe
oferece as almas para se ver livre do imposto que tem de pagar por elas.
Capítulo III: De seguida tenta passar por casa
de Korúbotchka, outro proprietário rico que lhe indicaram, mas o seu cocheiro
está bêbado, perde-se e vai parar sob um forte temporal à casa de uma viúva de secretário
de colégio. Contudo, ela é somítica, acha aquela mercadoria estranha, e ao ver
o seu interesse por almas, primeiro quer comparar preços, e oferece-lhe mel e cânhamo,
cujos preços estava mais a par. Ele recusa e insiste nas almas mortas. Ela fica
com a impressão de estar a ser enganada, das almas mortas valerem uma fortuna,
e o nosso herói só a custo lhe consegue comprar algumas, e a elevado preço.
Capítulo
IV: Regressa à estalagem, onde se depara com Nozdriov, um homem gastador,
violento, capaz de tudo, bebedor, viciado no jogo. Ele quer-lhe comprar almas, mas ele
mostra-se mais difícil do que o esperado. Leva-o para sua casa. Está ainda
bêbado. É um exagerado nas suas descrições, é um cunhado que o modera. Não lhe
vende as almas, que devem ser preciosas, admite, porém, usá-las como moeda de
jogo, e quer força-lo a jogar. Salva-o o chefe da polícia que ali o vem
prender, por ele em estado de embriaguez ter cometido ofensas corporais na
pessoa de um proprietário rural.
Capítulo
V: Vai em seguida a casa de Sobakévitch, um homem que diz mal de toda a
gente. Ele ao ver o interesse de Tchítchikov pelas almas mortas pede uma
exorbitância por elas, 100 rublos por cada uma. O nosso herói acha um preço
exagerado, mas ele argumenta que se ele as pretende comprar é porque precisa
delas, embora elas aparentemente não valham nada. Não chegam logo a acordo, e o maldizente proprietário ainda lhe perguntou se estava interessado no sexo
feminino. Enfim, só com muito regateio as consegue comprar a
dois rublos e meio cada uma, e porque deu a entender poder comprar outros
produtos mais tarde.
Capítulo VI: Tchítchikov segue de imediato para
casa do velho Pliútchin, um viúvo, desconfiado e avarento, que tem a mania que
é roubado por tudo e por todos, e que tem todo o seu vasilhame marcado, para se
certificar se é ou não é roubado pelos seus lacaios. Não dá um copeque a
ninguém, nem a uma filha que vem ali pedir ajuda, nem aos seus dois netos. A
custo lá lhe conseguiu comprar 78 almas fugidas, e ainda bem que se foram, pois
se ficassem muito mais tempo na sua propriedade morreriam à fome. Quando o
nosso herói saiu dali nem um chá aceitou, pois ele além de avarento era um porco.
Capítulo
VII: Depois de reunir um bom lote de almas mortas Tchítchikov vai tentar
registá-las ao tribunal, era um homem cumpridor, que queria fazer as coisas
segundo a lei. Mas ali os funcionários eram preguiçosos e corruptos, e tem de
lhe untar as mãos a alguns para lhe andarem com o processo. Acaba por levado ao
presidente do tribunal, com quem já tinha travado amizade. Este admira-se de
tal compra, mas ele diz que os pretende levar para a província do Quersoneso. Lá
fazem a escritura, não muito clara, e depois, o próprio tribunal molha o
acontecimento. O comandante da polícia, que era uma espécie de benfeitor da
cidade, é que organizava o evento. Durante o lauto jantar empolga-se, receia estar a falar de mais e regressa a casa, não fosse dizer algo inconveniente.
Capítulo
VIII: Por esta altura Tchítchikov é uma pessoa muito considerada na cidade, e até recebe
uma carta de uma admiradora, que o deixa intrigado. Vai a um baile ali
organizado, e tenta descobrir qual das mulheres a terá enviado, mas não o
descobre. Anda à volta delas e tem olhares suspeitos. Acaba por ter uma
conversa obtusa com uma delas, cheia de uma falsa eloquência, que desagrada às outras mulheres, que não chegaram à conversa com ele, e que começam a tecer as mais
desfavoráveis conjecturas a seu respeito. Por fim, para piorar as coisas, aparece
ali Nozdriov meio bêbado, que se põe a disparatar, fazendo-lhe as mais absurdas
acusações. Ele acaba por vir para casa preocupado.
Capítulo
IX: Depois daquele baile muito badalado, o povo pôs-se a pensar quem seria
Tchítchikov. O autor recorre a uma conversa entre a modista Sofia Ivánovna e a
cliente Anna Grigórievna para dar uma ideia dos rumores que se dizem acerca
dele, e se algumas pessoas lhe são favoráveis, outras aventam sobre a sua pessoa as piores hipóteses. Os estratos inferiores adoram cultivar os boatos sobre os estratos
superiores. Entre os homens e as mulheres formam-se mesmo partidos dos que
dizem bem dele e dos que dizem mal. Os próprios funcionários ficaram na dúvida
se ele seria uma pessoa de bem, dando aso a que o comandante da polícia fosse
encarregado de fazer uma reunião para se apurar o facto.
Capítulo
X: Foi realizada a reunião em cada do comandante da polícia. O chefe dos
correios diz que sabe quem ele é, afinal, nada mais nada menos que o capitão Kopéikin,
e conta uma história fantástica acerca dele. Diz que ele perdeu uma perna e um
braço ao serviço de sua majestade. Alguns começam a duvidar, pois ele tinha as
duas pernas e os dois braços, inventa-se quase tudo acerca dele. O comandante
da polícia não chegou a nenhuma conclusão. Entretanto, Tchítchikov, que estava
com uma gripe em casa, quando saiu e foi visitar os seus amigos verificou que
estes ou não o recebiam ou tratavam com maus modos. Encontra Nozdríov mais
sóbrio, que lhe dá as últimas novidades. Ele está acusado de falsificador de
moeda, de raptor da filha do governador, da morte procurador, é o bode
expiatório para todas as culpas que se formaram na cidade, e resolve fugir com
o lacaio e cocheiro, na sua britchka.
Capítulo
XI: Lá consegue partir, não sem que em antes maltrate o cocheiro, que é um
atrasadinho. É então que o autor o vai retratar. Tchítchikov não saía nem ao
pai nem à mãe, talvez a algum que esteve lá de paisagem, quer dizer, era um filho
da mãe, Não teve amigos na infância. Foi estudar para a escola municipal, o pai
recomendou que estudasse e que usasse de lisonja para com os professores, pois
mesmo que soubesse pouco ultrapassaria os mais dotados. Quando o pai morreu
vendeu a modesta casa por 1000 rublos e foi para a cidade, onde é expulso da
escola por ser estúpido. Engrena então no funcionalismo. É bem-apessoado e
forreta, incapaz de um sorriso. Começa a sua carreira como escrivão, lisonjeia
o chefe, que o pretende para marido de sua filha, e o eleva a chefe de secção,
mas uma vez promovido ele desiste da rapariga. A seguir muda-se para a alfândega,
onde é maior a corrupção e pode tirar mais proventos. As coisas não lhe correm
à feição e torna-se por fim solicitador, e é aqui que pode enganar meio mundo,
e se inicia no comércio das almas mortas, o seu sonho é tornar-se grande
proprietário.
Tomo II
Capítulo I: O que resta do II tomo parece não
mudar muito, mas pensa-se que teria mudado, no caso de o autor não ter queimado
a sua grande parte. Vai parar a casa de um tal Andrei Ivánovitch Tentétnikov,
que dizem ser um mandrião, um indolente, que deixou a sua propriedade entrar em
decadência. E ainda não será dos piores, pois tentou dar tempo livre aos seus
servos para se cultivarem, mas eles, em vez disso gastaram o tempo em
bailes e bebedeiras, não no seu enriquecimento pessoal. Ao lado dele vivia um
general, a quem foi prestar os seus respeitos, e com quem estabelece relações
agradáveis. Zanga-se com Andrei por uma questão de ciúmes –, por ele enobrecer demasiado
o general.
Capítulo II: Tchítchikov depois de alguns
contactos com o seu anfitrião, volta a casa do general, e encontra lá a filha
dele, no contacto que estabelece com o general, este tem uma conversa
depreciativa em relação a Tentétnikov. Lisonjeador, mostra-se sensível às
ideias do general e aproveita para o convencer de que tem um tio que quer que
lhe arranje trezentas almas mortas para acrescentar à sua propriedade, sem o
qual perderá o direito à herança. O general manda a filha sair dali, aquilo não
é conversa que ela possa ouvir. Acha que o tio dele é burro, mas que lhe
arranja as almas, nem que tenhas de ir desenterrar do cemitério.
Capítulo III: O nosso Tchítchikov não desiste
de prosseguir com o seu negócio, e finalmente tenta ir a casa do coronel
Kochkariov, mas a cocheiro é estúpido e perde-se, vão parar a casa Piotr
Petróvitch Pertukh. Este, contudo, recebe-o bem, tem dois filhos, que o nosso
herói logo se põe a louvar. Pouco depois chama ali um vizinho, Platon
Mikháilovitch Paltónov, que o conduz a Konstanjoglo, uma excelente pessoa, que lhe
pode dar boas indicações sobre o que procura. Aqui só pensam em grandes
jantaradas, vivem da ociosidade. Este aconselha-o a ir a casa de quem lhe podia vender uma propriedade, um tal Khlobúev, e propõe-se mesmo emprestar-lhe dinheiro. Foi
ali combinado irem lá fazer o negócio.
Capítulo IV: Tudo se encaminha para que
Tchítchikov se torne um proprietário. Konstanjoglo empresta-lhe 10 000 rublos
para ele fazer a transação. A propriedade que vai comprar está ao desmazelo, os
campos por cultivar, com os seus mujiques a morrer à fome, as casas destelhadas
e a ruir, as pontes descuradas e a cair. Mesmo assim, com as suas terras ao
abandono, negligenciadas, Khlobúev ainda lhe pede uma exorbitância pela
propriedade, pois tem cinco filhos a quem dar uma educação na cidade,
embora seja um esbanjador, a viver do bom e do melhor. Acabam por chegar a
acordo com uma venda por 35 000 rublos, sendo 15 000 dados de adiantado, mas
Tchítchikov é sabido, e só lhe vai adiantar 10 000, e depois atrasar os
restantes.
Últimos capítulos, ou o que resta deles: Tchítchikov
veste-se melhor, como proprietário que agora é, mas eis que acaba por ser
denunciado como vigarista e entregue ao príncipe, que o interroga e manda prender
numa masmorra a fim de ter o destino que merece. Vem ali o seu amigo Murázov, concessionário
dos álcoois, a quem pede a chorar para que interceda por ele junto do príncipe,
pois que toda a sua vida foi um engano, vai corrigir-se. Ele não se mostra
capaz de tal missão, pois contra o incriminado pendem muitas acusações.
Tchítchikov fala então da sua arca, onde tem os registos das suas almas mortas
–, uma grande fortuna. Recorre ainda ao causídico, Afanássi Vassílievitch, a
quem promete uma aldeia se ele o conseguir libertar, defende-se, dizendo que é
um ser humano, que já começara várias vezes a partir do zero. Ele vai-se embora
e aparece por lá o espadaúdo, Samosvístov, ligado ao causídico, que diz que o libertará
se ele lhe arranjar 30 000 rublos. Ele concorda e ele substitui a mulher que o
acusou por outra que o vai inocentar, avisa a sentinela que o tem ali preso,
que vai mandar outra para a substituir, e manda para ali um salafrário seu,
chegando ao baú, que leva dali para fora. A seguir surge no tribunal uma chuva
de denúncias contra ele, tão numerosas como contraditórias, que bloqueiem
completamente a justiça. Afanássi Vssílievitch vai falar com o príncipe, que se
mostra admirado pela sua intercedência, mas ele justifica-se, dizendo que o
homem quando comete uma indecência é por falta de cultura e ignorância
(portanto está inocente). O próprio príncipe fica confuso com o que se diz, e
começa a fazer um grande discurso sobre a corrupção, que tem raízes profundas, e
se tornou quase uma necessidade, mesmo para as pessoas que nascem honestas. Com
este sermão chega-se a imaginar que a corrupção até será uma grande virtude… Ele
convida toda a gente a estudar o que é a obrigação
e o dever, concluindo que “essa noção já se vai tornando obscura para
nós todos”.
COMENTÁRIO GERAL
Alma
Mortas, escrito naquela época foi um acto revolucionário. Esta obra é um ataque brutal
contra a burocracia, contra a corrupção e a desumanidade com que eram tratados os
camponeses, em que as propriedades se mediam pelo número de almas, os chamados mujiques. Imagine-se que alguém fazia na
imprensa um discurso acusatório deste jaez? Ia logo parar à Sibéria, tal o seu
poder subversivo. Mas, feito assim no livro, servindo-se da ironia, passou, e o
seu efeito foi mais vasto que qualquer discurso que se fizesse, pois seria logo
calado pela censura e o seu autor desterrado para a Sibéria. Nicolai Gógol
escreveu-o mesmo com esta intenção, ao lê-lo a Púschkin, julgou que estava a
ler um texto cómico, e quando esperava vê-lo a rir-se, viu-o a olhar para ele com
um olhar desterrado, exclamando: “Como a Rússia é triste?!”. E era, política,
social, económica e culturalmente estava anacrónica, e desde Pedro I, que
explorou todo um povo para a megalomania de São Petersburgo, mandando construir
ali os maiores palácios da Europa, de um luxo raramente visto. Não obstante, a
Rússia depois nos premiasse na ciência com Dmitri Mendeleiev, Sofia Kovalevskaya
e Ivan Pavlov; na música com Rimsky Korsakov, Alexandre Borodine, Tchaikovski,
Prokofiev e Stravinski; na literatura com Nicolai Gógol, Leão Tolstói, Fiódor
Dostóievki, Máximo Gorki e Vladimir Nabokov.
O livro trata das viagens de
Tchítchikov, um vigarista incorrigível, com a sua troica de cavalos manhosos; o
seu lacaio servil, mas refilão, Petruchka; e o seu cocheiro Selifan, bêbado e
estúpido, que anda pela Rússia a comprar almas mortas. O seu propósito tem algo
de quixotesco. Como se disse, o autor achou mesmo que esta história seria
engraçada, e não é sem razão que ele fala de D. Quixote no próprio livro. O
problema é que assunto de que trata é tão iníquo, tão deprimente, que para um
ser humano esclarecido a história se torna repulsiva, odiosa, ainda que o livro
seja interessante. O grande poeta Púshckin, mesmo sendo um romântico, logo o
detectou, quando ela lhe foi lida. E naquele tempo, um livro que levasse o
mundo a sério com alguma profundidade, que não que se refugiasse em viagens
longínquas, ou histórias de amor banais, para enternecer o coração (como está a
acontecer um pouco neste início do século XXI), era então algo que começava a despertar
muito interesse, e iria influenciar fortemente a literatura russa, quiçá, o
mundo. Mesmo que o livro seja frequentemente caricatural, através dele podemos
reconstruir com muita precisão as relações sociais daquele tempo, o regime de
propriedade que existia, a religião que estavam a seguir, os valores morais que
presidiam à sua vida.
E vejamos, ele não precisou de
inventar muito, bastou-lhe descrever a realidade à sua volta, para qual toda a
gente parecia estar cega, ainda que pareça paradoxal comprar almas mortas! Ele
chegou ao realismo naturalmente, forçado pela própria vida, ao dar-nos conta da
injustiça com que viviam os mujiques, da burocracia que aperrava o povo russo,
da corrupção que afectava toda a sociedade, incluindo a polícia, denunciando o
poder de os concessionários de determinados produtos, como o álcool, e a própria
justiça. Retrata a influência francesa no país. Almas Mortas é uma sátira à sociedade russa do seu tempo, ao poder
discricionário dos governadores, à superioridade do chefe, à sacralização do
papel, aos preconceitos que enfermavam as classes superiores e as classes
inferiores –, é uma profunda machadada na ordem
social reinante, já moribunda. Os seres humanos, mesmo com as melhores intenções, deixam-se
instrumentalizar pelas ideias mais estúpidas. Embora ele nos pretendesse fazer
rir, nós hoje, lemo-lo como uma fidedigna fonte histórica. Aquele Tchítchikov,
realmente era um grande granjeador, no dizer de Gógol, ele ia comprar almas
mortas, pois era o governo que o premiava, cedendo terras no Querkoneso, no
Cáucaso, onde quer que fosse, em função do número de almas que cada um
possuísse. Ele apenas se estava a servir legalmente do sistema.
O livro está cheio de descrições deliciosas,
pouco convencionais, que lhe pretendem pôr em relevo um falso realismo, quando
diz “nem gordo, nem magro”, “de alto lá com ele”, “só Deus é o que o sabe”, “sabe-se lá porquê?”, “só o Diabo é que sabe”, quando trata as
pessoas por “paizinho”, “mãezinha”, ou quando nos elucida como os
mujiques eram tratados, quais braços escravos ao serviço dos senhores, um
género de animais com alma, pouco acima de coisas, e que depois de mortos ainda
valiam alguns copeques. Note-se que o governo explorava este sistema activamente,
reclamando impostos, mesmo pelas almas dos que já tinham falecido, antes que
houvesse outro recenseamento. E o facto é que até nem estaria errado segundo os
princípios cristãos, pois para a sagrada religião só as pessoas é que morriam –,
havia muita lógica nisto. O governo cobrava escrupulosamente este imposto, e não
vemos no livro ninguém a protestar por tal injustiça, antes, alguém achou que
as almas mesmo mortas poderiam valer 100 rublos cada uma, foi o que Sobakévitch
pediu inicialmente a Tchítchikov. Neste negócio de almas mortas, vendedor e
comprador só tinham a lucrar, e isto também aproveitava ao governo, pois ia lá
recolher mais alguns rublos para o erário público. Toda esta lógica tinha a
raiz no Czar, mas Nicolai Gógol minimizou-a no príncipe, como se estivesse na
Itália, e assim o livro passou na censura em São Petersburgo, imagine-se! E não
passou em Moscovo, eles ali ainda eram mais exigentes, o título do livro
começava logo por ser censurável, reprovável, pois não havia almas mortas, as
almas eram imortais. Obrigado, Nicolai Gógol, por este grande livro russo.
27/3/2018
Martz Inura
Nenhum comentário:
Postar um comentário