ALEXANDRE HERCULANO





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ALEXANDRE HERCULANO
Monasticon
O Monge de Cister ou a Época de D. João I (Dois Tomos)
Verificação do texto e notas de António C. Lucas
Livraria Bertrand 1978

O HOMEM

            Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em Lisboa, no Pátio do Gil (na Rua de S. Bento), em  28 de Março de 1810; a mãe era filha e neta de pedreiros da Casa Real; e o pai, funcionário da Junta dos Juros (Junta do Crédito Público). A sua infância e adolescência foram marcadas pelos dramáticos acontecimentos da sua época, como sejam as invasões napoleónicas, o consulado de Beresford e o influxo das ideias liberais, que levaram à  "Revolução de 1820". Até aos 15 anos frequentou o Colégio dos Padres Oratorianos de S. Filipe de Néry, então instalados no Convento das Necessidades em Lisboa, onde recebeu uma formação de índole essencialmente clássica, embora aberta às novas ideias científicas. O pai cegou em 1827, e foi reformado, facto que impediu que prosseguisse os estudos universitários, que se previam na área do direito. Sendo assim voltou-se para o aprendizado de línguas e para a Aula de Comércio, um curso técnico profissional da área mercantil, criado pelo Marquês de Pombal em 1759.
            Alexandre Herculano era uma figura grande de Português, podemos vê-lo numa multiplicidade das suas facetas, desde a de revolucionário, (fez parte da revolta contra o regime miguelista em 1831, e tomou  parte da invasão do Mindelo em 1832), à de bibliotecário (na Biblioteca Municipal do Porto e nas Bibliotecas Reais da Ajuda e Necessidades), à de político: como ideólogo da Regeneração, como deputado no Parlamento e autarca na extinta Câmara Municipal de Belém. E não podemos esquecer o seu papel de polemista (talvez o maior da nossa Língua), o de preceptor de D. Pedro V (de quem foi o seu verdadeiro pai espiritual), o de historiador (ao iniciar entre nós uma História de cariz verdadeiramente científico); o de poeta (ajudando a implantar com Garrett o Romantismo na nossa Literatura); o de romancista (ao introduzir o romance histórico em Portugal): o de grande jornalista que foi, e outros mais, sem esquecer a sua paixão pela agricultura.
            Era um homem apaixonado, um faz-tudo, que sabia falar e escrever sete línguas, algumas a nível literário. A sua influência estendeu-se ainda ao ensino, que quis reformar no Parlamento; à produção jurídica, em que deu alguns pareceres e foi colaborador e redactor final do 1º Código Civil Português, o Código de Seabra, lutando quase sozinho pelo restabelecimento do casamento civil. E não se pode ignorar a sua influência na Economia, em que trouxe ideias novas para a agricultura, para o emparcelamento da propriedade, ou quando fomentou o cooperativismo e o crédito à agricultura. Sem esquecer o seu contributo para a defesa do nosso Património Cultural, basta lembrar o seu esforço em reunir os Portugaliae Monumenta Historica.
            Sendo hoje um autor menos lido, no seu tempo foi um dos escritores portugueses mais populares. Como jornalista… ele fundou alguns jornais… levou o Jornal O Panorama, de que era redactor principal, a atingir a tiragem de 5000 exemplares, num país com cerca de 90% de analfabetos, um número descomunal para a altura. E ele escrevia-o e revia-o quase sozinho! O seu peso na literatura portuguesa deriva de ele ter tido nela um papel estrutural. Ele serviu de modelo aos autores então emergentes, desde Oliveira Martins a Guerra Junqueiro, desde Júlio Dinis a Camilo Castelo Branco, que lhe dedicaram livros, a Soares dos Passos, a Antero de Quental.
            Era um homem austero, probo e honesto, que recusou benesses e honrarias. Desapegado do Poder, não aceitou ser Ministro do Reino, contra a corrupção e avidez da época, recusou a Grã-cruz da Ordem de S. Tiago, recusou ser Par do Reino, recusou a choruda cátedra de História da Faculdade de Letras de Lisboa. Era sócio da Academia Real das Ciências de Turim, da Real Academia de História de Madrid, da Real Academia de Ciências da Baviera, membro do Instituto Histórico de França e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, e isso lhe bastava.
            E, quando por fim, desencantando da vida, resolveu retirar-se para Vale de Lobos e ser um simples agricultor, nem aqui se desmereceu. Aperfeiçoou algumas culturas, introduziu novas técnicas, para além de ir revendo as suas obras. E em Berlim o seu azeite era premiado como o melhor da Europa. Na Exposição Universal de Paris de 1867 recebeu a medalha de bronze; em Viena, em 1873, a de ouro; e em Filadélfia, em 1876, a de prata. Em tudo, ele tentava fazer o seu melhor.
            Às vezes acusam Alexandre Herculano de ser conservador, mas devemos contextualizar. Ele inicialmente foi revolucionário, tomou parte na Revolta de 21 de Agosto de 1831, contra os absolutistas de D. Miguel, em que só por sorte se salvou da forca; e mais tarde, em 1832, desembarcou no Mindelo ao lado dos liberais, integrado nas tropas de D. Pedro, em que mais uma vez correu grave risco de morte durante o Cerco do Porto. Defendia a liberdade de expressão, mesmo para os seus inimigos políticos. Quem no seu tempo se terá sacrificado mais pela Liberdade e Democracia do que ele?
            As suas virtudes excedem largamente a sua elevada estatura de escritor. Não é sem razão que Vitorino Nemésio considerava Alexandre Herculano uma das maiores figuras de português do século XIX, ou pelo menos a mais actuante, e António Sérgio o ter destacado como o maior vulto cultural do século, “intelectual de corpo inteiro, o mais probo e lúcido da nossa Cultura”. Quando morreu quis ficar sepultado no modesto cemitério de Azóia, nem a igreja, nem a nobreza, nem, enfim, o poder político pareceram importar-se muito, mas o povo, grato pela sua obra, não deixou que ficasse ali esquecido, foi buscá-lo a Azóia, e erigiu-lhe um dos mais belos túmulos no Mosteiro dos Jerónimos, na Sala do Capítulo.

A OBRA

            Alexandre Herculano é autor de uma vasta obra, que se estendia da poesia ao teatro, do romance à história, estudos, polémicas, cartas. Vamos citar as principais: A Voz do Profeta (1836), A Harpa do Crente (1838), Poesias (1851), O Bobo (1843), Eurico, o Presbítero (1844), O Monge de Cister (1848), O Pároco de Aldeia (1851). O Galego: Vida, ditos e feitos de Lázaro Tomé (1846); Lendas e Narrativas (1836-1851), História de Portugal (1846-1853), História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859), O Fronteiro de África (1838), Os Infantes em Ceuta (1842). Mas outras obras importantes foram sendo publicadas, algumas a título póstumo como, Opúsculos por Alexandre Herculano em X volumes (Livraria Bertrand); Cartas de Vale de Lobos, 3 volumes, Cartas Inéditas a Joaquim Filipe de Soure; Cartas de A. Herculano (1900); Cartas a Oliveira Martins, Cenas de um Ano da Minha Vida e Apontamentos de Viagem, Composições Várias.

ROMANCE HISTÓRICO, O Monasticon, O Monge de Cister ou a Época de D. João I

            Personagens mais importantes
           
            Frei Vasco, a personagem principal do romance, um combatente da Ala dos Namorados em Aljubarrota, que uma vez chegado a casa verifica que a sua noiva Leonor lhe tinha sido negada pelo pai, Mem Viegas, para a casar com o rico Lopo Mendes. O pai, Vasqueanes tinha acabado de morrer, com o desgosto da filha ter sido levada por um pajem, de nome Vivaldo, que depois se soube ser Fernando Afonso, e a criada Brites estava louca. Desvairado, assassina Lopo Mendes num monte, e entra então para a Ordem de Cister dos monges brancos ou cistercienses (havia os negros ou beneditinos). Mas ele de frade terá apenas o hábito, permanece em si a sede de vingança, o propósito de ainda assassinar Fernando Afonso.
            Frei Lourenço, chamado o Bacharel por ter estudado degredos ou cânones na Universidade de Lisboa, pessoa de virtude e bondoso, que ensinava o Evangelho e pregava o amor do género humano. Residia na Estudaria de S. Paulo (mais tarde Convento dos Bons Homens de Vilar). Em teologia era um poço sem fundo. Estava muito pela corte. O povo tinha-o como santo. Escolheu Fr. Vasco como seu escolar predilecto.
            D. João de Ornelas, abade de Alcobaça, esmoler de el-rei e senhor de quinze vilas, de dois castelos, e fronteiro de quatro portos de mar, com alçada no cível e no crime. O seu apoio ao Mestre de Avis foi no início periclitante. Oprimia as populações sob as quais tinha jurisdição, era ardiloso e hipócrita. Tinha uma inimizade antiga com o arcebispo de Braga, D. Lourenço, que se estendeu a Fernando Afonso
            Fernando Afonso, que inicialmente passou por pajem Vivaldo para seduzir Betariz, só reconhecido claramente por Fr. Vasco como Fernando Afonso na Tavolagem de Besteiros, homem frívolo, tipo D. Juan, que levou consigo Beatriz para a trocar pela viúva Leonor, mas já tinha tido uma relação com Alda, filha do mestre Bartolomeu, e uma tal Briolanja.
           Beatriz, irmã de Fr. Vasco, uma mulher volúvel e frágil, passiva, que acaba por morrer de doença.
           Tia Domingas, uma cuvilheira (criada) já velha, que amparou Beatriz, depois de esta ser encontrada no Restelo. Foi encarregado de desmistificar Fernando Afonso, acabando por morrer debaixo das patas do seu ginete (cavalo).
            D. Lourenço, arcebispo de Braga, o primeiro prelado do país, pessoa com elevada influência e poder.
            Ale, o truão árabe, que fazia rir com os seus guizos e palheta, com as suas visagens e arredemilhos. Vivia perto do Restelo, cultivando uma horta ou almuinha. É posto por D. João de Ornelas no paço como truão para espiar Fernando Afonso.
            D. João I, o Mestre de Avis, rei de Portugal. No romance vemo-lo a procurar contrabalançar o poder da igreja e da nobreza com o do povo, que o seu chancelar tem que jogar de modo a não se ir para além daquilo que pudesse perturbar a paz interna. Tinha réstias do espírito autoritário e implacável do seu avô, D. Afonso IV, que procedeu a horríveis morticínios, e seu pai, D. Pedro I, que cometeu algumas atrocidades, sentindo-se investido de um poder ilimitado. Condenou à morte pela fogueira o seu camareiro-menor, Fernando Afonso.
            D. João das Regras, o chanceler do rei, doutor de Pisa, que dominava a governação, numa posição um tanto divergente com Nun`Alvares, o Condestável do rei. Opôs-se à condenação à fogueira de Fernando de Sá, que não teve isto em consideração, atendendo que era lei a vontade do Príncipe.

            Sinopse da Obra
            Os dois volumes perfazem 30 capítulos, vai-se fazer um resumo para abrir caminho a quem queira ler a obra. Fr. Vasco, filho de Vasqueanes, antes de ser monge combateu na Ala dos namorados em Aljubarrota, e quando chega da batalha, a mulher que amava, Leonor, tinha-lhe sido retirada pelo pai, Mem Viegas, para a casar com um homem mais rico e nobre, Lopo Mendes. A sua irmã, Beatriz, fora levada por um pajem, de nome Vivaldo. Por essa altura, o pai, sentindo-se desonrado, deixou de comer e beber e morreu pouco depois. A ama Brites estava louca. Face a esta desgraça Fr. Vasco procura vingar-se em Vivaldo que não encontra, e tendo dado com Lopo Mendes desafia-o para um combate num monte e mata-o.
            E é assim que vai parar a um convento, e integrar-se na Ordem de Cister, mas ele de frei só tem o hábito, não o coração. Fr. Lourenço, mestre de teologia dessa ordem chama-o para junto de si como seu escolar. Mas o propósito de ainda se vingar do homem que levara a sua irmã não tinha esmorecido em si, ao que o seu chefe espiritual, Fr. Lourenço, o chama à razão, obrigando-o a furar perdoar aos seus inimigos, a exemplo de Jesus Cristo.
            Estava a residir na Estudaria de S. Paulo, junto à muralha ocidental de Lisboa. Certo dia o truão árabe recolhe em sua casa nos arredores do Restelo uma cristã, que deixa ao cuidado da tia Domingas, e chama Fr. Lourenço para a confessar. Porém ao chegar ali este verifica que se trata de Beatriz, irmã de Fr. Vasco. Abandonada pelo amante, ela tinha-se deitado ao mar (Hamlet, Shakespeare). Este quer ir logo fazer justiça, e é Fr. Lourenço que o demove.
            D. João de Ornelas, abade de Alcobaça, vem a Lisboa à corte e vai no Colégio de S. Paulo, sob o qual ainda tinha jurisdição, e, tendo conhecimento do caso promete interceder junto de el-rei para que se faça justiça contra Fernando Afonso, de quem é inimigo, visto que dera entrada e levara a el-rei as queixas que algumas povoações fizeram contra si, entre as quais Turquel. Apesar das mesmas não terem sido ouvidas por aquele, o facto não foi esquecido.
            São relatados alguns aspectos pitoresco da Lisboa da altura, como a taberna de Lourenço Brás, e a Tavolagem do Besteiro, junto das Portas do Mar. Ali se reúnem para diversão, bebidas e jogo muitos dos mais ricos burgueses de Lisboa e gente da nobreza, que ali os considerava, más cá fora os desprezava. Ali se fala da situação política da altura e sobretudo de D. João I, a quem alguns nobres contestam, por estar a sobrecarregá-los com a guerra, faltando aos pagamentos que lhes era devido quanto à manutenção da mesma, e aos privilégios, para eles excessivos, que estava a distribuir pelo povo.
            Estão presentes nesta tavolagem o próprio D. João de Ornelas, e Fr. Vasco, disfarçado de parvo. É ali que vão identificar o pajem Vivaldo, afinal, Fernando Afonso, que é apanhado em conversas a conspirar contra el-rei, facto que os dois vão aproveitar com mais uma acha para a sua fogueira. Nesta ambiência sobressai um tal Mem Bugalho, antigo juiz de Celorico e hoje valido do Conde de Seia, que sendo ofendido por alguns nobres tomados da pinga lhes atira à cara com as dobras que ganhou ao jogo.
            Mas a acção do romance vai dinamizar-se na procissão de Corpus Christi, em que o autor recria em Lisboa esta antiga procissão. Vendo os propósitos odiosos do seu irmão, Beatriz, já fraca, tenta obter do irmão a jura perante um crucifixo, de que não se vingará de Fernando Afonso. Fr. Vasco esmorece o seu objectivo de vingança, mas depois de informado por  D. João de Ornelas que a dama do paço com quem ele anda metido é Leonor, a mulher por quem ele um dia andou apaixonado, prossegue no seu intento, agora mais firme, pedindo mesmo a tia Domingas para colaborar consigo no plano de atrair Fernando Afonso durante a procissão para o matar, porém é ela que morre sob as patas do seu ginete, quando lhe tenta apanhar as rédeas.
            Há um quadro um tanto teatral, não sei até que ponto influenciado pelas leituras das peças de teatro de Shakespeare, que vai levar a um dos momentos mais dramáticos do romance: é o sarau no Paço de S. Martinho. Estão ali organizadas três mesas, a do rei, a da rainha e a dos nobres de passagem e barões menos distintos. Estão ali presentes o abade de Ornelas, e, contrafeito, D. João das Regras. Fr. Vasco segue para ali embuçado (sob disfarce). É ele que a determinado momento vai pedir justiça a el-rei, identificando-se como combatente da Ala dos Namorados, e acusando Fernando Afonso. D. João I manda-o chamar, mas não o encontram logo. Pouco depois porém é alertado pela sua presença e vai ao encontro dele, apanhando-o em flagrante, e ali mesmo pronuncia a sua condenação à morte.
            A quase todos, à excepção porventura de Fr. Vasco, pareceu excessiva a pena aplicada a Fernando Afonso, pois ainda que o julgassem em falta esperavam uma pena mais leve. Nem D. João das Regras com toda a sua influência e formação jurídica o conseguiu demover. O camareiro-menor, vendo o perigo que corria, fugiu da guarda e tentou refugiar-se na igreja de S. Paulo com o objectivo de ali obter asilo, ou talvez ganhar algum tempo para alguém pedir para si clemência, que seria de esperar do arcebispo de Braga, D. Lourenço e do seu próprio irmão, João de Santarém. Azar para ele, acabava de morrer Beatriz, que tinha sido trazida para ali para se realizar as cerimónias fúnebres (O Noivado do Sepulcro, Soares de passos). Fernando Afonso sendo tocado por aquela desgraça ainda pede perdão a Fr. Vasco, mas este está de coração empedernido e não cede, envolvendo-se mesmo os dois numa luta, em que Fernando Afonso é derrubado.
            Furioso pela maneira como fora facilitada a fuga de Fernando Afonso, o anadel (capitão) dos besteiros foi informar el-rei do sucedido ao Paço de S. Martinho. Este não o queria receber, e só depois de muito instado o fez. Segue então irritado com a sua guarda armada para a Igreja de S. Paulo. Muita gente o acompanha durante o trajecto. Ali chegados, cá fora pressente-se a concentração dos besteiros, que não demoram a entrar no templo com o el-rei. Fernando Afonso foge para um altar da Virgem Imaculada que ali existia, na ânsia de obter protecção. Mas el-rei ordena que o arrastem cá para fora e o levem ao Rossio de Valverde, para aí sem detença ser queimado. D. João de Ornelas ainda protestou hipocritamente perante el-rei contra aquela invasão da igreja, aquela profanação de um santuário, a pressa em ministrar ao condenado o último suplício, sem que ele estivesse preparado perante o Juiz Supremo, mas o el-rei ripostou que perante esta violação respondia perante o Santo Padre, e que não impedia que perante o mesmo fossem realizadas os actos que colhessem o seu arrependimento perante Deus, dando ao desventurado os consolos da fé. A seguir sai da igreja com a sua guarda. O resto fica por contar, bom mesmo é ler o romance.

            Importância deste romance
            O Monge de Cister ou a Época de D. João I, com Eurico, o Presbítero, faz parte do Monasticon, termo com muita carga romântica, já utilizado lá fora na Europa, nublada de mistério e fantasia, para se referirem à vida e à história dos mosteiros, e que Herculano aqui utiliza para pôr em contradição o celibato clerical com o sentimento amoroso. No posfácio do Tomo II diz que ela tinha ficado mais ou menos esboçado em 1840, publicou mesmo alguns capítulos no jornal O Panorama em 1841, quando foi interrompido para se votar à coisa pública, sendo continuado mais tarde, até o publicar todo em 1848. Aproveitou uma história passional enterrada nos conventos dos Bernardos, para, integrando-a num contexto histórico, narrar as intrigas na corte, falar da cidade de Lisboa e reconstruir toda aquela época. Por aquela altura os gostos das pessoas por sentimentos exacerbados e rocambolescos ligados à Igreja eram dominantes, os leitores compraziam-se com a grandeza destes amores impossíveis, avassaladores, mas que uma fidelidade mais alta, a Deus, soçobrava. E naquele tempo, com extinção das ordens monásticas os conventos transpiravam de histórias, que imaginações perturbadas inventavam às teias dos claustros e às pedras arruinadas dos edifícios.
Nesta obra Herculano não se reduz a escrever meramente uma novela sobre o cavaleiro Vasco da Silva, homem forte, de cabelos negros e crespos, que se vai vingar da afronta que sofrera, matando com duas punhaladas Lopo Mendes, e que, agora frade, nem por isso esmorece em si o ódio, prosseguindo a sua sede de vingança até à perdição de Fernando Afonso: há ali muito mais matéria a ter em conta. Ainda que se trate de uma obra romântica reportada à Idade Média, e em grande parte ficcionada, o seu substrato tem base na realidade, que o autor foi buscar a uma crónica de Fernão Lopes. O autor chegou a ir ao sítio onde existiu o Convento dos Bons Homens de Vilar ou Cónegos do Evangelista, mas nada encontrou ali do primitivo edifício. Estavam agora lá os Lóios: tinham transformado aquele antigo colégio do bispo D. Domingos Jardo num sumptuoso convento, que com o terramoto de 1755 se converteu em ruínas. Instalou-se lá depois a Guarda Real de Polícia e, por morte desta, a sua sucessora e herdeira, a Guarda Municipal. Os edifícios originais tinham desaparecido, porém o autor ainda conseguira encontrar um manuscrito antigo, que só ele viu, que servira para escrever uma versão mais fundamentada daquele evento terrível.
Este romance foi um dos introdutores do romance histórico em Portugal, bem como do romantismo, tem o grande mérito de nos tentar reconstruir a vida no tempo de D. João I com a sua componente política, económica e social. Equaciona o problema do celibato na Igreja e põe o assento tónico moral na necessidade de perdoarmos para sermos perdoados. Nas suas páginas estão bem descritos alguns hábitos da corte, as movimentações do povo, o vestuário em uso da época, as armas e a iluminação utilizadas, as leis em vigor, e até a cidade de Lisboa, tal como ela era. São bem perceptíveis no romance as facções políticas que dividiam os portugueses na sua luta com Castela, a afirmação da burguesia e o seu apoio ao rei, que a ela ia buscar poder, a reacção da nobreza, que estava a perder privilégios e tinha que se dar bem com os burgueses ricos, agora emergentes, ainda que os detestasse e pelas costas os desvalorizasse. A coexistência no meio dos cristãos de uma Judiaria e de uma Mouraria também são ali respigados. Podemo-nos refrescar na festa das Maias no Restelo, saber o que era uma bodega (taberna rasca) em Lisboa, entrar numa casa de jogo (tavolagem) nas Portas do Mar, tomar parte na grande afirmação de fé, que era a Procissão do Corpus Christi, assistirmos a um sarau no Paço de S. Martinho. O autor também não se esqueceu de narrar aspectos culturais recorrentes da Idade Média, como a crença das bruxas, as profecias a que se amarravam as pessoas, os pactos com o diabo de que se ouvia falar.
O romance não tem um final feliz, como aliás, nenhum dos seus romances históricos, parecendo querer beber da fatalidade grega, ou inspirar-se nas tragédias de Shakespeare. Daí que por vezes seja um tanto teatral – muitos diálogos e pouca descrição –, a acção se concentre em locais escolhidos como palcos, e as personagens nos possam parecer um tanto patéticas. A linguagem é polida e austera, tem os contornos exactos e a estrutura forte e segura dos monumentos da Idade Média, mas o romance foi escrito na imprensa, aos poucos, e com isto terá perdido alguma unidade. Por outro lado, ao avançar a investigação, mesmo descobrindo-se desacertos no primeiros capítulos já não se podia voltar atrás e tinha-se de adaptar o resto do romance ao que se tinha escrito. Era o problema de fazer sair os livros em jornais. Alexandre Herculano deu conta de algumas dessas deficiências quando disse na nota final, que o tentou purificar: «E O Monge foi concluído, desbastado e lixado. Os contornos ficaram incorrectos por partes – por outras, frouxos os músculos – confusos, alguns delineamentos – rugosos a espaços a epiderme. O autor reconhece-o». O romance demorou mais de três a ser escrito, foi objecto de muita investigação, e no final da sua vida ainda o tentou rever mais uma vez.
Mas, sobrepondo-nos a quaisquer falhas menores que possamos encontrar nesta obra, O Monge de Cister com o Eurico, o Presbítero e O Bobo são como que uma vista panorâmica grandiosa sobre a História de Portugal da Idade Média. Num tempo em que a História científica se estava a iniciar e as pessoas conheciam dela sobretudo a biografia dos reis, relatadas em crónicas frequentemente laudatórias, nem sempre isentas, este romance era uma janela aberta voltada para o passado, pela qual o leitor podia agora ir mais longe na compreensão da realidade histórica, pois o autor para além de descrever os factos ia mais além, levando-nos até junto dos seus intervenientes, pondo a nu as suas próprias almas. E para além do tecido romanesco, composto ao gosto da época, cuja acção tem aqui e ali contornos demasiadamente dados à piedade e à tristeza, já que românticos, há que ter em atenção a forma narrativa, toda a eloquência e elevação, o tom por vezes quase sublime dado a este romance por Alexandre Herculano. Trata-se de uma obra primacial da Literatura Portuguesa, feita num tempo que ainda se andava à procura da estrutura e cambiantes do que devia ter um romance, por isso modelar, que marcou neste âmbito profundamente o ideário literário português e até brasileiro do século XIX.

3/4/2016



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