ALEXANDRE HERCULANO
Monasticon
O Monge de Cister
ou a Época de D. João I (Dois Tomos)
Verificação do texto e notas de
António C. Lucas
Livraria Bertrand 1978
O
HOMEM
Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em
Lisboa, no Pátio do Gil (na Rua de S. Bento), em 28 de Março de 1810;
a mãe era filha e neta de pedreiros da Casa Real; e o pai, funcionário da Junta
dos Juros (Junta do Crédito Público). A sua infância e adolescência foram
marcadas pelos dramáticos acontecimentos da sua época, como sejam as invasões napoleónicas, o consulado de Beresford e o influxo das ideias liberais, que levaram
à "Revolução de 1820". Até aos 15 anos frequentou o
Colégio dos Padres Oratorianos de S. Filipe de Néry, então instalados no
Convento das Necessidades em Lisboa, onde recebeu uma formação de índole essencialmente
clássica, embora aberta às novas ideias científicas. O pai cegou em 1827, e foi
reformado, facto que impediu que prosseguisse os estudos universitários, que se
previam na área do direito. Sendo assim voltou-se para o aprendizado de
línguas e para a Aula de Comércio, um curso técnico profissional da área mercantil, criado pelo Marquês de Pombal em 1759.
Alexandre Herculano era uma figura grande de Português,
podemos vê-lo numa multiplicidade das suas facetas, desde a de revolucionário, (fez parte da revolta
contra o regime miguelista em 1831, e tomou
parte da invasão do Mindelo em 1832), à de bibliotecário
(na Biblioteca Municipal do Porto e nas Bibliotecas Reais da Ajuda e
Necessidades), à de político: como ideólogo
da Regeneração, como deputado no Parlamento e autarca na extinta Câmara Municipal de Belém. E não podemos
esquecer o seu papel de polemista
(talvez o maior da nossa Língua), o de preceptor de D. Pedro V (de quem foi o
seu verdadeiro pai espiritual), o de historiador
(ao iniciar entre nós uma História de cariz verdadeiramente científico); o de poeta (ajudando a implantar com Garrett
o Romantismo na nossa Literatura); o de romancista
(ao introduzir o romance histórico em Portugal): o de grande jornalista que foi, e outros mais, sem
esquecer a sua paixão pela agricultura.
Era um homem apaixonado, um faz-tudo, que sabia falar e
escrever sete línguas, algumas a nível literário. A sua influência estendeu-se
ainda ao ensino, que quis reformar
no Parlamento; à produção jurídica,
em que deu alguns pareceres e foi colaborador e redactor final do 1º Código
Civil Português, o Código de Seabra, lutando quase sozinho pelo
restabelecimento do casamento civil. E não se pode ignorar a sua influência na Economia, em que trouxe ideias novas
para a agricultura, para o emparcelamento da propriedade, ou quando fomentou o
cooperativismo e o crédito à agricultura. Sem esquecer o seu contributo para a
defesa do nosso Património Cultural, basta lembrar o seu esforço
em reunir os Portugaliae Monumenta
Historica.
Sendo hoje um autor menos lido, no seu tempo foi um dos
escritores portugueses mais populares. Como jornalista… ele fundou alguns
jornais… levou o Jornal O Panorama,
de que era redactor principal, a
atingir a tiragem de 5000 exemplares, num país com cerca de 90% de analfabetos,
um número descomunal para a altura. E ele escrevia-o e revia-o quase sozinho! O
seu peso na literatura portuguesa deriva de ele ter tido nela um papel
estrutural. Ele serviu de modelo aos autores então emergentes, desde Oliveira
Martins a Guerra Junqueiro, desde Júlio Dinis a Camilo Castelo Branco, que lhe
dedicaram livros, a Soares dos Passos, a Antero de Quental.
Era um homem austero, probo e honesto, que recusou
benesses e honrarias. Desapegado do Poder, não aceitou ser Ministro do Reino, contra
a corrupção e avidez da época, recusou a Grã-cruz da Ordem de S. Tiago, recusou
ser Par do Reino, recusou a choruda cátedra de História da Faculdade de Letras
de Lisboa. Era sócio da Academia Real das Ciências de Turim, da Real Academia de História de Madrid, da Real Academia de Ciências da Baviera, membro do Instituto Histórico de França e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, e isso lhe bastava.
E, quando por fim, desencantando da vida, resolveu
retirar-se para Vale de Lobos e ser um simples agricultor, nem aqui se
desmereceu. Aperfeiçoou algumas culturas, introduziu novas técnicas, para além de ir revendo as suas obras. E em Berlim o seu azeite
era premiado como o melhor da Europa. Na Exposição Universal de Paris de 1867 recebeu a medalha de
bronze; em Viena, em 1873, a de
ouro; e em Filadélfia, em 1876, a de
prata. Em tudo, ele tentava fazer o seu melhor.
Às vezes acusam Alexandre Herculano de ser conservador,
mas devemos contextualizar. Ele inicialmente foi revolucionário, tomou parte na
Revolta de 21 de Agosto de 1831,
contra os absolutistas de D. Miguel, em que só por sorte se salvou da forca; e mais
tarde, em 1832, desembarcou no Mindelo
ao lado dos liberais, integrado nas tropas de D. Pedro, em que mais uma vez
correu grave risco de morte durante o Cerco do Porto. Defendia a liberdade de
expressão, mesmo para os seus inimigos políticos. Quem no seu tempo se terá
sacrificado mais pela Liberdade e Democracia do que ele?
As suas virtudes excedem largamente a sua elevada
estatura de escritor. Não é sem razão que Vitorino
Nemésio considerava Alexandre Herculano uma das maiores figuras de
português do século XIX, ou pelo menos a mais actuante, e António Sérgio o ter destacado como o maior vulto cultural do
século, “intelectual de corpo inteiro, o mais probo e lúcido da nossa Cultura”.
Quando morreu quis ficar sepultado no modesto cemitério de Azóia, nem a igreja,
nem a nobreza, nem, enfim, o poder político pareceram importar-se muito, mas o
povo, grato pela sua obra, não deixou que ficasse ali esquecido, foi buscá-lo a
Azóia, e erigiu-lhe um dos mais belos túmulos no Mosteiro dos Jerónimos, na
Sala do Capítulo.
A
OBRA
Alexandre Herculano é autor de uma
vasta obra, que se estendia da poesia ao teatro, do romance à história,
estudos, polémicas, cartas. Vamos citar as principais: A Voz do Profeta (1836), A Harpa
do Crente (1838), Poesias (1851), O Bobo (1843), Eurico, o Presbítero (1844), O
Monge de Cister (1848), O Pároco de Aldeia (1851). O Galego: Vida, ditos e
feitos de Lázaro Tomé (1846); Lendas e Narrativas (1836-1851), História de
Portugal (1846-1853), História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal (1854-1859), O Fronteiro de África (1838), Os Infantes em Ceuta (1842).
Mas outras obras importantes foram sendo publicadas, algumas a título póstumo como,
Opúsculos por Alexandre Herculano em X volumes (Livraria Bertrand); Cartas de Vale de Lobos, 3 volumes, Cartas Inéditas a Joaquim Filipe de Soure; Cartas de A. Herculano
(1900); Cartas a Oliveira Martins, Cenas de um Ano da Minha Vida e Apontamentos
de Viagem, Composições Várias.
ROMANCE
HISTÓRICO, O Monasticon, O Monge de Cister ou a Época de D. João I
Personagens
mais importantes
Frei
Vasco, a personagem principal do romance, um combatente da Ala dos
Namorados em Aljubarrota, que uma vez chegado a casa verifica que a sua noiva
Leonor lhe tinha sido negada pelo pai, Mem Viegas, para a casar com o rico Lopo
Mendes. O pai, Vasqueanes tinha acabado de morrer, com o desgosto da filha ter
sido levada por um pajem, de nome Vivaldo, que depois se soube ser Fernando
Afonso, e a criada Brites estava louca. Desvairado, assassina Lopo Mendes num
monte, e entra então para a Ordem de Cister dos monges brancos ou
cistercienses (havia os negros ou beneditinos). Mas ele de frade terá apenas o
hábito, permanece em si a sede de vingança, o propósito de ainda assassinar
Fernando Afonso.
Frei
Lourenço, chamado o Bacharel por
ter estudado degredos ou cânones na Universidade de Lisboa, pessoa de virtude e
bondoso, que ensinava o Evangelho e pregava o amor do género humano. Residia na
Estudaria de S. Paulo (mais tarde Convento dos Bons Homens de Vilar). Em
teologia era um poço sem fundo. Estava muito pela corte. O povo tinha-o como
santo. Escolheu Fr. Vasco como seu escolar predilecto.
D.
João de Ornelas, abade de Alcobaça, esmoler de el-rei e senhor de quinze
vilas, de dois castelos, e fronteiro de quatro portos de mar, com alçada no
cível e no crime. O seu apoio ao Mestre de Avis foi no início periclitante. Oprimia
as populações sob as quais tinha jurisdição, era ardiloso e hipócrita. Tinha
uma inimizade antiga com o arcebispo de Braga, D. Lourenço, que se estendeu a
Fernando Afonso
Fernando
Afonso, que inicialmente passou por pajem Vivaldo para seduzir Betariz, só
reconhecido claramente por Fr. Vasco como Fernando Afonso na Tavolagem de
Besteiros, homem frívolo, tipo D. Juan, que levou consigo Beatriz para a trocar
pela viúva Leonor, mas já tinha tido uma relação com Alda, filha do mestre
Bartolomeu, e uma tal Briolanja.
Beatriz,
irmã de Fr. Vasco, uma mulher volúvel e frágil, passiva, que acaba por morrer
de doença.
Tia
Domingas, uma cuvilheira (criada) já velha, que amparou Beatriz, depois de
esta ser encontrada no Restelo. Foi encarregado de desmistificar Fernando
Afonso, acabando por morrer debaixo das patas do seu ginete (cavalo).
D.
Lourenço, arcebispo de Braga, o primeiro prelado do país, pessoa com
elevada influência e poder.
Ale,
o truão árabe, que fazia rir com os seus guizos e palheta, com as suas visagens
e arredemilhos. Vivia perto do Restelo, cultivando uma horta ou almuinha. É
posto por D. João de Ornelas no paço como truão para espiar Fernando Afonso.
D.
João I, o Mestre de Avis, rei de Portugal. No romance vemo-lo a procurar contrabalançar
o poder da igreja e da nobreza com o do povo, que o seu chancelar tem que jogar
de modo a não se ir para além daquilo que pudesse perturbar a paz interna. Tinha réstias
do espírito autoritário e implacável do seu avô, D. Afonso IV, que procedeu a
horríveis morticínios, e seu pai, D. Pedro I, que cometeu algumas atrocidades,
sentindo-se investido de um poder ilimitado. Condenou à morte pela fogueira o
seu camareiro-menor, Fernando Afonso.
D.
João das Regras, o chanceler do rei, doutor de Pisa, que dominava a
governação, numa posição um tanto divergente com Nun`Alvares, o Condestável do
rei. Opôs-se à condenação à fogueira de Fernando de Sá, que não teve isto em
consideração, atendendo que era lei a
vontade do Príncipe.
Sinopse
da Obra
Os dois volumes perfazem 30
capítulos, vai-se fazer um resumo para abrir caminho a quem queira ler a obra.
Fr. Vasco, filho de Vasqueanes, antes de ser monge combateu na Ala dos
namorados em Aljubarrota, e quando chega da batalha, a mulher que amava,
Leonor, tinha-lhe sido retirada pelo pai, Mem Viegas, para a casar com um homem
mais rico e nobre, Lopo Mendes. A sua irmã, Beatriz, fora levada por um
pajem, de nome Vivaldo. Por essa altura, o pai, sentindo-se desonrado, deixou
de comer e beber e morreu pouco depois. A ama Brites estava louca. Face a esta
desgraça Fr. Vasco procura vingar-se em Vivaldo que não encontra, e tendo dado
com Lopo Mendes desafia-o para um combate num monte e mata-o.
E é assim que vai parar a um convento,
e integrar-se na Ordem de Cister, mas ele de
frei só tem o hábito, não o coração. Fr. Lourenço, mestre de teologia dessa
ordem chama-o para junto de si como seu escolar. Mas o propósito de ainda se
vingar do homem que levara a sua irmã não tinha esmorecido em si, ao que o seu
chefe espiritual, Fr. Lourenço, o chama à razão, obrigando-o a furar perdoar aos
seus inimigos, a exemplo de Jesus Cristo.
Estava a residir na Estudaria de S.
Paulo, junto à muralha ocidental de Lisboa. Certo dia o truão árabe recolhe em
sua casa nos arredores do Restelo uma cristã, que deixa ao cuidado da tia
Domingas, e chama Fr. Lourenço para a confessar. Porém ao chegar ali este verifica
que se trata de Beatriz, irmã de Fr. Vasco. Abandonada pelo amante, ela
tinha-se deitado ao mar (Hamlet,
Shakespeare). Este quer ir logo fazer justiça, e é Fr. Lourenço que o demove.
D. João de Ornelas, abade de
Alcobaça, vem a Lisboa à corte e vai no Colégio de S. Paulo, sob o qual ainda
tinha jurisdição, e, tendo conhecimento do caso promete interceder junto de
el-rei para que se faça justiça contra Fernando Afonso, de quem é inimigo, visto
que dera entrada e levara a el-rei as queixas que algumas povoações fizeram
contra si, entre as quais Turquel. Apesar das mesmas não terem sido ouvidas por
aquele, o facto não foi esquecido.
São relatados alguns aspectos
pitoresco da Lisboa da altura, como a taberna de Lourenço Brás, e a Tavolagem
do Besteiro, junto das Portas do Mar. Ali se reúnem para diversão, bebidas e
jogo muitos dos mais ricos burgueses de Lisboa e gente da nobreza, que ali os
considerava, más cá fora os desprezava. Ali se fala da situação política da
altura e sobretudo de D. João I, a quem alguns nobres contestam, por estar a
sobrecarregá-los com a guerra, faltando aos pagamentos que lhes era devido quanto à
manutenção da mesma, e aos privilégios, para eles excessivos, que estava a distribuir
pelo povo.
Estão presentes nesta tavolagem o
próprio D. João de Ornelas, e Fr. Vasco, disfarçado de parvo. É ali que vão
identificar o pajem Vivaldo, afinal, Fernando Afonso, que é apanhado em
conversas a conspirar contra el-rei, facto que os dois vão aproveitar com mais
uma acha para a sua fogueira. Nesta ambiência sobressai um tal Mem Bugalho, antigo
juiz de Celorico e hoje valido do Conde de Seia, que sendo ofendido por alguns
nobres tomados da pinga lhes atira à cara com as dobras que ganhou ao jogo.
Mas a acção do romance vai dinamizar-se
na procissão de Corpus Christi, em
que o autor recria em Lisboa esta antiga procissão. Vendo os propósitos odiosos
do seu irmão, Beatriz, já fraca, tenta obter do irmão a jura perante um
crucifixo, de que não se vingará de Fernando Afonso. Fr. Vasco esmorece o seu
objectivo de vingança, mas depois de informado por D. João de Ornelas
que a dama do paço com quem ele anda metido é Leonor, a mulher por quem ele um
dia andou apaixonado, prossegue no seu intento, agora mais firme, pedindo mesmo
a tia Domingas para colaborar consigo no plano de atrair Fernando Afonso
durante a procissão para o matar, porém é ela que morre sob as patas do seu
ginete, quando lhe tenta apanhar as rédeas.
Há um quadro um tanto teatral, não
sei até que ponto influenciado pelas leituras das peças de teatro de
Shakespeare, que vai levar a um dos momentos mais dramáticos do romance: é o
sarau no Paço de S. Martinho. Estão ali organizadas três mesas, a do rei, a da
rainha e a dos nobres de passagem e barões menos distintos. Estão ali presentes
o abade de Ornelas, e, contrafeito, D. João das Regras. Fr. Vasco segue para
ali embuçado (sob disfarce). É ele que a determinado momento vai pedir justiça
a el-rei, identificando-se como combatente da Ala dos Namorados, e acusando
Fernando Afonso. D. João I manda-o chamar, mas não o encontram logo. Pouco
depois porém é alertado pela sua presença e vai ao encontro dele, apanhando-o
em flagrante, e ali mesmo pronuncia a sua condenação à morte.
A quase todos, à excepção porventura
de Fr. Vasco, pareceu excessiva a pena aplicada a Fernando Afonso, pois ainda
que o julgassem em falta esperavam uma pena mais leve. Nem D. João das Regras com
toda a sua influência e formação jurídica o conseguiu demover. O
camareiro-menor, vendo o perigo que corria, fugiu da guarda e tentou
refugiar-se na igreja de S. Paulo com o objectivo de ali obter asilo, ou
talvez ganhar algum tempo para alguém pedir para si clemência, que seria de
esperar do arcebispo de Braga, D. Lourenço e do seu próprio irmão, João de
Santarém. Azar para ele, acabava de morrer Beatriz, que tinha sido trazida para
ali para se realizar as cerimónias fúnebres (O Noivado do Sepulcro, Soares de passos). Fernando Afonso sendo
tocado por aquela desgraça ainda pede perdão a Fr. Vasco, mas este está de
coração empedernido e não cede, envolvendo-se mesmo os dois numa luta, em que
Fernando Afonso é derrubado.
Furioso pela maneira como fora
facilitada a fuga de Fernando Afonso, o anadel (capitão) dos besteiros foi
informar el-rei do sucedido ao Paço de S. Martinho. Este não o queria receber,
e só depois de muito instado o fez. Segue então irritado com a sua guarda
armada para a Igreja de S. Paulo. Muita gente o acompanha durante o trajecto. Ali
chegados, cá fora pressente-se a concentração dos besteiros, que não demoram a
entrar no templo com o el-rei. Fernando Afonso foge para um altar da Virgem
Imaculada que ali existia, na ânsia de obter protecção. Mas el-rei ordena que o
arrastem cá para fora e o levem ao Rossio de Valverde, para aí sem detença ser queimado.
D. João de Ornelas ainda protestou hipocritamente perante el-rei contra aquela
invasão da igreja, aquela profanação de um santuário, a pressa em ministrar ao
condenado o último suplício, sem que ele estivesse preparado perante o Juiz
Supremo, mas o el-rei ripostou que perante esta violação respondia perante o Santo
Padre, e que não impedia que perante o mesmo fossem realizadas os actos que
colhessem o seu arrependimento perante Deus, dando ao desventurado os consolos
da fé. A seguir sai da igreja com a sua guarda. O resto fica por contar, bom mesmo
é ler o romance.
Importância
deste romance
O Monge de Cister ou a Época de D. João I,
com Eurico, o Presbítero, faz parte do Monasticon,
termo com muita carga romântica, já utilizado lá fora na Europa, nublada de
mistério e fantasia, para se referirem à vida e à história dos mosteiros, e que
Herculano aqui utiliza para pôr em contradição o celibato clerical com o
sentimento amoroso. No posfácio do Tomo II diz que ela tinha ficado mais ou
menos esboçado em 1840, publicou mesmo alguns capítulos no jornal O Panorama
em 1841, quando foi interrompido para se votar à coisa pública, sendo
continuado mais tarde, até o publicar todo em 1848. Aproveitou uma história
passional enterrada nos conventos dos Bernardos, para, integrando-a num
contexto histórico, narrar as intrigas na corte, falar da cidade de Lisboa e
reconstruir toda aquela época. Por aquela altura os gostos das pessoas por
sentimentos exacerbados e rocambolescos ligados à Igreja eram dominantes, os
leitores compraziam-se com a grandeza destes amores impossíveis, avassaladores,
mas que uma fidelidade mais alta, a Deus, soçobrava. E naquele tempo, com
extinção das ordens monásticas os conventos transpiravam de histórias, que
imaginações perturbadas inventavam às teias dos claustros e às pedras
arruinadas dos edifícios.
Nesta
obra Herculano não se reduz a escrever meramente uma novela sobre o cavaleiro
Vasco da Silva, homem forte, de cabelos negros e crespos, que se vai vingar da
afronta que sofrera, matando com duas punhaladas Lopo Mendes, e que, agora
frade, nem por isso esmorece em si o ódio, prosseguindo a sua sede de vingança
até à perdição de Fernando Afonso: há ali muito mais matéria a ter em conta. Ainda
que se trate de uma obra romântica reportada à Idade Média, e em grande parte
ficcionada, o seu substrato tem base na realidade, que o autor foi buscar a uma
crónica de Fernão Lopes. O autor chegou a ir ao sítio onde existiu o Convento
dos Bons Homens de Vilar ou Cónegos do Evangelista, mas nada encontrou ali do
primitivo edifício. Estavam agora lá os Lóios: tinham transformado aquele antigo
colégio do bispo D. Domingos Jardo num sumptuoso convento, que com o terramoto de
1755 se converteu em ruínas. Instalou-se lá depois a Guarda Real de Polícia e, por morte desta, a sua sucessora e
herdeira, a Guarda Municipal. Os edifícios originais tinham desaparecido, porém
o autor ainda conseguira encontrar um manuscrito antigo, que só ele viu, que
servira para escrever uma versão mais fundamentada daquele evento terrível.
Este
romance foi um dos introdutores do romance histórico em Portugal, bem como do romantismo,
tem o grande mérito de nos tentar reconstruir a vida no tempo de D. João I com
a sua componente política, económica e social. Equaciona o problema do celibato
na Igreja e põe o assento tónico moral na necessidade de perdoarmos para sermos
perdoados. Nas suas páginas estão bem descritos alguns hábitos da corte, as
movimentações do povo, o vestuário em uso da época, as armas e a iluminação
utilizadas, as leis em vigor, e até a cidade de Lisboa, tal como ela era. São
bem perceptíveis no romance as facções políticas que dividiam os portugueses na
sua luta com Castela, a afirmação da burguesia e o seu apoio ao rei, que a ela ia
buscar poder, a reacção da nobreza, que estava a perder privilégios e tinha que
se dar bem com os burgueses ricos, agora emergentes, ainda que os detestasse e pelas
costas os desvalorizasse. A coexistência no meio dos cristãos de uma Judiaria e
de uma Mouraria também são ali respigados. Podemo-nos refrescar na festa das
Maias no Restelo, saber o que era uma bodega (taberna rasca) em Lisboa, entrar
numa casa de jogo (tavolagem) nas Portas do Mar, tomar parte na grande
afirmação de fé, que era a Procissão do Corpus
Christi, assistirmos a um sarau no Paço de S. Martinho. O autor também não
se esqueceu de narrar aspectos culturais recorrentes da Idade Média, como a crença
das bruxas, as profecias a que se amarravam as pessoas, os pactos com o diabo
de que se ouvia falar.
O romance
não tem um final feliz, como aliás, nenhum dos seus romances históricos,
parecendo querer beber da fatalidade grega, ou inspirar-se nas tragédias de
Shakespeare. Daí que por vezes seja um tanto teatral – muitos diálogos e pouca
descrição –, a acção se concentre em locais escolhidos como palcos, e as
personagens nos possam parecer um tanto patéticas. A linguagem é polida e
austera, tem os contornos exactos e a estrutura forte e segura dos monumentos
da Idade Média, mas o romance foi escrito na imprensa, aos poucos, e com isto terá
perdido alguma unidade. Por outro lado, ao avançar a investigação, mesmo
descobrindo-se desacertos no primeiros capítulos já não se podia voltar atrás e
tinha-se de adaptar o resto do romance ao que se tinha escrito. Era o problema
de fazer sair os livros em jornais. Alexandre Herculano deu conta de algumas dessas
deficiências quando disse na nota final, que o tentou purificar: «E O Monge foi concluído, desbastado e
lixado. Os contornos ficaram incorrectos por partes – por outras, frouxos os
músculos – confusos, alguns delineamentos – rugosos a espaços a epiderme. O
autor reconhece-o». O romance demorou mais de três a ser escrito, foi objecto
de muita investigação, e no final da sua vida ainda o tentou rever mais uma vez.
Mas,
sobrepondo-nos a quaisquer falhas menores que possamos encontrar nesta obra, O Monge de Cister com o Eurico, o Presbítero e O Bobo
são como que uma vista panorâmica grandiosa sobre a História de Portugal da
Idade Média. Num tempo em que a História científica se estava a iniciar e as pessoas
conheciam dela sobretudo a biografia dos reis, relatadas em crónicas frequentemente
laudatórias, nem sempre isentas, este romance era uma janela aberta voltada
para o passado, pela qual o leitor podia agora ir mais longe na compreensão da
realidade histórica, pois o autor para além de descrever os factos ia mais
além, levando-nos até junto dos seus intervenientes, pondo a nu as suas
próprias almas. E para além do tecido romanesco, composto ao gosto da época, cuja
acção tem aqui e ali contornos demasiadamente dados à piedade e à tristeza, já
que românticos, há que ter em atenção a forma narrativa, toda a eloquência e elevação,
o tom por vezes quase sublime dado a este romance por Alexandre Herculano. Trata-se
de uma obra primacial da Literatura Portuguesa, feita num tempo que ainda se
andava à procura da estrutura e cambiantes do que devia ter um romance, por
isso modelar, que marcou neste âmbito profundamente o ideário literário
português e até brasileiro do século XIX.
3/4/2016
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