HENRY MILLER
Trópico de Câncer
Tradução de Jorge Freire
EDITORIAL PRESENÇA (2008)
O
HOMEM
Henry
Valentine Miller nasceu em Nova Iorque em 26 de Dezembro de 1891, e faleceu
em Los Angeles em 7 de Junho de 1980. De origem modesta, cresceu em Brooklin,
na cidade de Nova Iorque. Frequentou por um curto período o City College. Na juventude foi elemento activo do Partido Socialista.
Em 1928 vai a Paris com a sua segunda mulher, June Edith Smith, e o mesmo faz no ano seguinte, e em 1930 muda-se finalmente para lá, à procura de
oportunidades. Em 1931 trabalha como revisor na versão inglesa do Herald Tribune, mas em situação precária –, esteve algum tempo desempregado.
Foi Anaïs Nin, sua amante, que lhe custeou a primeira edição de Trópico de Câncer, em 1934. Separou-se
de June, mas nada de extraordinário, ele vivia quase a afogar-se
num oceano de mulheres, que à última hora o salvavam de naufragar. Este livro teve
dificuldades em ser editado em diversos países, por o considerarem obsceno, a
rondar a pornografia. Com a Segunda Guerra Mundial ele regressa aos Estados Unidos
da América, onde ao fim de algum tempo se afirmou como escritor, sobretudo a
parir de 1964, quando as suas obras deixaram de estar proibidas pela censura e
foram alvo de alguma curiosidade. Casou várias vezes, morreu retirado à volta
dos seus livros numa pacata região da Califórnia.
A
OBRA
A sua obra abrange mais de uma
dezena de títulos, incluindo um estudo sobre Rimbaud, citam-se aqui os
seguintes livros:
– Trópico de Câncer (1934)
– Primavera Negra (1936)
– Primavera Negra (1936)
– Trópico de Capricórnio (1939)
– Crucificação Encarnada, em três volumes, mais conhecida por Sexus, Plesus, Nexus (1939,
1943, 1960)
O
ROMANCE Trópico de Câncer
PRINCIPAIS PERSONAGENS
– Henry Miller. É o narrador, uma personagem entre a ficção e a realidade,
perdida por Paris, que só pensa em literatura, mulheres e comida. Passa por
dificuldades, mas isto faz parte do amadurecimento de um artista
– Boris: Um escritor que partilhou o seu quarto na Villa Borghese, quando
Miller veio para Paris. Às vezes entra em
depressão e são os amigos que o têm de animar
– Borowski: Um artista judeu que toca acordeão e veste calças de
bombazina. Durante algum tempo almoça com ele às quartas-feiras
– Van Norden: Um escandinavo que passa a vida atrás de mulheres, referindo
a elas com os termos mais sujos e deselegantes da novela, é um conceituado
escritor
– Collins: Um marinheiro amigo de Miller, que o ajuda algumas vezes,
demonstrando um carinho que só pode ser de natureza homossexual. Quando ele
estava em Dijon mandou-lhe algumas centenas de francos para ele regressar a
Paris
– Carl: Outro escritor a viver na miséria em Paris, que se meteu com uma
menor e passou por algumas complicações. Frequentemente queixa-se com Miller da
dificuldade que tem em publicar as suas obras
– Fillmore: Um jovem que trabalho nos serviços diplomáticos da
embaixada americana. No fim engravidou a Ginette, um mulher histérica e
controladora, e é Miller que o ajuda a fugir dela.
–
Constadt: Um intelectual com a mania
que é poeta, que convida frequentemente Miller para jantar
–
Kruger: Um escultor amigo de Miller,
que o leva uma vez a um espectáculo lésbico
–
Jimmie: É o dono de um bar onde
Miller, Filmore e Collins às vezes se vão embebedar. É marido da ciumenta Yvette
–
Tania: Mulher de Sylvester, cujo erotismo traz Miller desvairado. Foi várias vezes dormir com ele. A sua
relação com ele mais para o fim esfriou
–
Elsa: Uma alemã que Boris trouxera
para Villa Borghese como cozinheira, com quem Miller dormiu algumas vezes
–
Fanny: A mulher de Moldorf, mãe de
dois filhos, Moe e Murray, que ele considera perfeita, mas que Miller acha
emocionalmente morta
–
Moldorf: Amigo de Miller meio
maluco, que tem a mania que é Deus. É casado com Fanny, mas anda às vezes com Elsa
– Sylvester: Marido de Tania, mais tarde vai para a Rússia e é ela
que lhe envia dinheiro para lá. É dramático e taciturno e fala-se de ter uma
prostituta a trabalhar para ele
– Mona: Personagem que corresponde à segunda esposa de Miller, que
ele recorda com alguma saudade, pensando que ela anda com o patrão, e é ele que lhe
dá dinheiro para ela o ajudar a viver em Paris. Ela veio ali visitá-lo a Paris, mas regressou
devido às suas traições
– Claude: Uma prostituta tão gentil que Miller quase se apaixona por ela
–, uma mulher assim tão delicada e refinada não podia ser prostituta
–
Kepi: É um indiano cicerone de
conterrâneos que vêm a Paris, como foi o caso de Nannantee, negociante de pérolas
–
Iréne: Americana rica a quem Miller
ajuda Carl a escrever-lhe cartas para viverem à custa dela. Carl estava quase a embarcar
com ela para a ilha de Bornéu, quando desistiu, por a achar uma velha. Ela
tinha dito que tinha 40 anos, mas já tinha 56.
– Germaine: Uma prostituta a cem por cento, que gostava de fazer jus
à sua profissão, sem queixumes, feliz.
–
Macha: Uma princesa russa, saída da
revolução, que atraía Miller e Fillmore, mas que andava com gonorreia e era
esquiva. Mais tarde fugiu com um escultor.
–
Ginette: Mulher endiabrada, que
Fillmore provavelmente engravidou, histérica e controladora, de quem ele por
fim fugiu, com a ajuda de Miller
–
Yvette: Mulher de Jimmie, que com ciúmes armava confusão em todo o lado, Jimmie batia-lhe, mas ela ainda
pedia mais. Foi uma cena de ciúmes sua que levou à destruição do bar do marido
–
Anatole e Eugene: refugiados russos
que se cruzaram com Miller, e que o chegaram a ajudar
RESUMO DO ROMANCE
O
autor não numerou os capítulos, mas nós vamos aqui fazê-lo para facilidade de
análise.
I
1- O narrador, Henry Miller, começa
a sua descrição quando chega a Paris, e vai hospedar-se na Villa Boghese, em pleno Outono de 1930, uma pensão
que é numa espelunca cheia de piolhos. “Está sem dinheiro, sem recursos, sem
esperanças”. O seu companheiro é Boris. Julgava ser um artista, mas este seu
projecto está a desvanecer-se. Mesmo assim é feliz, e tem um livro para publicar. Anda com Tania, mulher de Sylvester, atraído
pelas suas coxas, mas às quartas-feiras almoça com Borowski, que usa fatos de
bombazina e toca acordeão. Na Villa Borghese, a comida rareia. Vive no meio de
judeus em Montparnasse: Carl, Constadt, Boris, Tania, Sylvestre, Morfdorf e
Lucille. Para ele até o Van Norden e a Chérie são judeus. Carl e Boris são os únicos
escritores que ali respeita, Mordorf é maluco. Usa uma linguagem excessiva no âmbito sexual, citando O Eterno
Marido de Dostoiéwski. Depois de muito vagabundear vem-lhe à cabeça ele a
esperar pela sua esposa, Mona, que precisa disto e daquilo. Ele está nas lonas, ainda é Eugene que lhe dá 50 francos, insuficiente para as necessidades de Mona, que não
imagina a miséria de vida que eles ali levam.
II
A situação mudou agora na Villa
Borghese, Boris tem ali uma empregada, Elsa, que pede a Miller para ter calma
com ela, não quer que ele se ponha logo a insinuar-se. Ela é alemã, sedutora,
toca piano, há sempre um homem na vida dela, e depois um aborto, e a seguir uma
muda de casa. Toca Shumman, mas mal, não como a Tania, de que gosta mais, mas
que é mulher de Sylvester. Está feliz, ali em Paris tudo é belo, “Viena nunca é
tão Viena como em Paris”. Falam de Borowski, Morldorf e Constadt, que estão
para chegar. A Elsa encomendou um almoço para Boris, mas ele é um lingrinhas,
e tem medo que a mulher apareça, e ela é um pedaço de mulher. Moldorf põe-se a falar
dos seus filhos, de Moe e Murray, e da sua mulher Fanny, que é uma mulher
perfeita, quando Miller opina que ela estará emocionalmente morta.
III
É Domingo na vila Borghese, Boris
está a almoçar, e Miller por cortesia sai, embora esteja cheio de fome. Vai a
casa da família do Constadt, e finge já ter comido, embora continue cheio de fome.
Sai e continua a vaguear com a barriga a dar horas. Recorda-se então que foi
numa tarde Domingo como aquela que conheceu Germanie, depois de ter recebido 100
francos que a sua mulher, Mona, lhe mandara da América. Foi para a cama com ela,
que tinha uma coisa farfalhuda, capaz de fazer magia. Era pega cem por cento,
até o coração o era, mas perfeita, gemia com convicção. Pôs-se a falar da jovem
Claude, que tinha consciência, e isso era mau numa pega. Ela era uma pega plangente, transmitia ao cliente uma certa tristeza; deixava nos homens a noção
desagradável de a estarem a destruir. Ia para a rua e ficava à espera dos
clientes, e na cama era muito delicada, até parecia uma mulher séria.
IV
Chegou a Páscoa e continua a viver
na miséria com Carl. Vai ao American Express, à espera de boas novas,
porventura dinheiro, mas não tinha vindo nada. Carl estava a passar um momento
menos bom, tem um discurso pessimista, odiava Paris, enquanto ele, apesar de
tudo vivia ali na maior, “sem arrependimentos e sem mágoas”. O seu amigo
Marlowe estava num bar podre de bêbado, vão para lá. Uma vez no bar, este diz
que Carl vai ser despedido, e este fica ainda mais abatido, nem quer acreditar, mas a
sua situação é miserável, eram tempos difíceis, tão depressa não arranjaria
outro emprego como aquele. Está bêbado, mas ainda lhe fazem beber mais dois
Fernét-Brancas, assim talvez se esqueça da sua triste situação. Pouco depois
começam a pensar publicarem uma revista sozinhos, tudo ideias estúpidas. Pouco
depois aparece ali ordinário, Van Norden, a queixar-se que perdeu a placa
dentária. “De manhã o Marlowe e o Van Norden vão procurar a placa, e Carl
põe-se a disparatar, pensa que foram os dentes dele que desapareceram”,
V
Miller vai a casa de Sylvester e de Tania,
eles compraram recentemente um piano novo. A sua situação era de penúria,
queria ali cravar algumas refeições. Constadt sabia da sua miséria e recebia-o
às vezes na sua espelunca, e Carl oferecia-lhe de vez em quando uns jantares, a
mulher era óptima cozinheira, mas tinha de ir brincar com a filha para um
jardim ali perto durante umas três horas. Na casa de Tania, Moldorf aquece-se à
lareira, “Sylvester regressou recentemente da Broadway com o coração cheio de
amor”. Mas o mesmo não pensa Tania. Moldorf não quer que ele lhe ofereça vinho
de Anjou, prefere que ele lhe ceda a sua mulher, que já sente como sua. Falam
de como “uma mulher conspurcada sabe bem”, e de outras ideias do género. Miller
vive agora com uma búlgara gorda chamada Olga, e com uns russos, Eugene e
Anatole. Olga agora vai trabalhar para eles no calçado. Miller tem tiradas
surrealistas para justificar os seus desaires, e cita mais de uma dezena de
escritores, desde Homero e Dante, de Nietzsche a Schopenhauer, de Spencer a
Huxley. Fala de Papini e a sua necessidade de estar só. Depois refere-se a
Paris, onde um homem não precisa de ser rico para se sentir arrebatado, enquanto
em Nova Iorque, um homem mesmo rico se sente insignificante.
VI
Continua em Paris sem cheta, a viver
de esmolas, mas não pede para voltar aos Estados Unidos. Por sorte encontrou o
russo num café, Serge, que era capitão da Guarda Imperial, que até gostou de
ver ali um americano na miséria para o contratar como seu professor de inglês por
uma refeição por dia. Dá-lhe cinco francos e ele fica já satisfeito, embora
tenha de ir todos os dias para Suresnes, e ainda era longe. O Serge arranja-lhe
onde dormir lá, num corredor, onde há baratas, piolhos e carrapatos,
bichas-solitárias, apesar dos desinfectantes que são por ali despejados. Quer
ir-se embora dali para Paris. Peckover teve um acidente no jornal, talvez ele
recupere o seu lugar de revisor de provas que perdera. A sua morte até lhes parecera vir por bem. Por sorte, Miller
encontra um bilhete perdido para um concerto nuns lavabos, e aproveita para ir
ver o espectáculo, há muito que não sentava ao lado de gente bem vestida, mas o
arrumador olha para ele com um olhar de inquisidor, por ele não lhe dar uma
gorjeta.
VII
Encontra mais tarde um hindu,
Nannanteen, negociante de pérolas, perdido em Paris, que deixou a mulher cheia
de filhos na Índia, e o ajuda por uns tempos. Vivia com Kepi, que lhe
arranjou-lhe um livro muito bom sobre sexo. A sua vida melhora quando foi
encarregado de levar um hindu abastado a um bordel. O hindu ao princípio teve
dificuldade em escolher uma mulher, eram tantas e tão sedutoras que não se
decidia. Miller disse para ele escolher a que quisesse. Ele levou uma ao gosto
dele, as instalações eram apresentáveis. Quando acabou e queria fazer as suas
necessidades, tentou informar-se junto do amigo, mas Miller, não sabendo
exactamente o que ele pretendia, disse que ele sempre tinha o bidé, e então ele
foi servir o corpo ali, o que indignou as pegas, que lhe chamaram porco. Mas o
jovem hindu era rico, e lá conseguiu acalmar as "madames". Miller vai ter a
seguir um lauto jantar com ele, cheio de teorias e filosofias, com o que o
pretende deslumbrar. Ele, “Finalmente, inspirado na futilidade de tudo,
sente-se aliviado”. Chegou à conclusão que tinha encontrado Deus, mas que este
era insuficiente, sentia-se espiritualmente morto.
VIII
Foi a casa de Van Norden como estava
combinado, e este está desanimado, diz que se Georgina se vier ali a casa, para
lhe dizer para esperar, e que ele se quiser pode ficar com ela. Para ele as mulheres
eram todas umas pegas, ou queriam dinheiro ou queriam casar com ele. Está
chateado com o frio, mas se estivesse calor também se queixaria. Fala a seguir
com Karl, que anda com uma americana casada e rica, que disse ter 40 anos, mas
que afinal anda nos 56, chama-se Irene. Carl quando lhe falou das relações com ela a
Miller deu-lhe de si uma versão de macho alfa, mas ele agora ao ouvir a versão
que ele dera a Van Norden viu que não foi bem assim. Van Norden leva a conversa
a seguir para uma Lucienne, cujos olhos de leve tom azulado fazem "suar" um
homem, embora a mãe dela não seja nada má, e pareça ter ciúmes da filha. Está
farto de Irene, diz a Miller que ela gosta dele, tenta passa-la. Por fim, Carl
marca um encontro com a americana rica, que parece ter sido bem conseguido. Está a pensar em
fugir com ela para Bornéu, mas por fim desiste, com o argumento de que ela é uma velha. Van Norden opina então que as mulheres, quando menos
atenção lhes damos mais andam atrás de nós, e fala-lhe da sua dinamarquesa, que
o traz meio doido. Miller termina a falar de Matisse e a filosofar, referindo-se à parede com que os cientistas pintam a realidade, depois de um capítulo
quase todo a falar de encontros e cópulas, de pegas e chulos.
IX
Miller recebe uma carta de Boris, uma
carta sem data, sem saudação, sem morada. Ele está muito deprimido, diz que está
morto –, aquilo é de doidos. Fala de uma estranha fixação por ele, que o
envergonhava. Eram todos excêntricos, Moldorf dizia-se ter transformado em
Deus. Boris estava fraco, não ligava muito a comida, pretendia alimentar-se de
ideias. Ele queria que Miller ficasse com Claude, que às vezes lhe pagava para ele dormir
com ela. Tania tinha regressado há pouco da Rússia, e Sylvester ficara lá a tentar arranjar um emprego. Miller andou, entretanto, com Tania, que se queixou da
forma como ele a tratara da última vez, e com quem às vezes apanhava uma grande
bebedeira. Falou de Sylvester e de Carl. Interroga-se porque Dante,
Rabelais e Van Gogh e tantos outros fizeram a sua peregrinação a Paris.
Fizeram-se porque Paris era o umbigo do mundo. Sentia-se meio perdido,
desintegrado da humanidade, tendo apenas como amigas as ruas. Na passagem por
uma rua recorda-se de quando Mona, a sua mulher, a quem fora fiel durante sete
anos, o viera ali visitar, e depois regressara, e de a ver na Gare de S.
Lazare, “à janela, como quando a deixara
em Nova Iorque, como o mesmo sorriso triste e inescrutável no rosto, aquela
expressão de última hora, que deve transmitir tanta coisa, mas que não passa de
uma máscara que é moldada por um sorriso vago”. E assim se deixou mergulhar
naquela tristeza”.
X
Em Julho volta de novo ao
desemprego, dos Estados Unidos ordenaram a redução dos gastos e foram despedidos os revisores. Carl e Van Norden estavam preocupados,
perguntando-lhe o que seria se agora a mulher dele chegasse. Miller estava reduzido à
miséria. Da Tania não podia esperar nada, mandava o dinheiro ao Sylvester.
Andava a passar mal e fez amizade com Fillmore, um jovem diplomata que se dava
com Kruger e o irlandês Swift, mas era óbvio que sentia ser um peso para eles,
sobretudo para o Kruger. Adoece, e Kruger leva-o com Fillmore para casa de Collins.
Collins disse que ele dentro de poucos dias estaria bom, e tentou-o animar. Ao
fim de alguns dias já está melhor e vai com ele até ao bar. Comeu com
Marcelle, uma mulher interessante, num jantar que demorou até à meia noite, a
partir da qual pensava ir dormir com ela, o que não aconteceu. A mulher do
Jimmmie, Yvette, estava cada vez mais ciumenta. Ele e Fillmore saem do bar e
vão para o quarto num andar de cima, quando de repente rebentou cá em baixo uma
zaragata. Logo desceram a ver o que era. Collins queria saber o que se passava
e levou um soco de Yvette, que ainda deu com uma garrafa na cabeça de uma russa. Ao
fim de alguns minutos o bar estava de pantanas. A mulher de Jimmie aos gritos, de
joelhos implorava ao marido que lhe batesse mais, mas ele já estava farto. Para
Miller, nada melhor que uma boa luta de bar, com as cadeiras todas partidas.
XI
A cidade de Paris para ele tem
paralelo com uma prostituta, “ao longe,
parece deslumbrante, mal se pode esperar até tê-la nos braços, e cinco minutos
depois um tipo sente-se vazio, enjoado consigo mesmo”. Miller volta para a
cidade com algumas centenas de francos que Collins lhe dera. Era para alugar um
quarto, mas decidiu-se a ir para um hotel, onde pagou 15 francos pelo jantar, o
dobro do que planeara pagar. Ficou tão chateado que resolveu sair e dar uma
volta. Começou então a cair uma carga de água e abrigou-se, pondo-se à conversa
com uma mulher que o tratava por “Senhor”, “Meu bom senhor”. Ele, habituado a
ser tão maltratado que se sentiu nas nuvens. Ela diz ser inglesa, mas que nascera na
Polónia. Tentou-a levar para a cama, mas ela ficou indignada. Acabaram os dois
por irem para casa dela, onde tinha a mãe doente. Ele aproveitou, não ia pagar
nada. Já no quarto, ajustou com ela ir para a cama por cem francos, ao levar
tanto dinheiro dava-se ares de séria, e ele queria que o serviço demorasse.
Ouviu alguém gritar do rés-do -chão, devia ser a mãe, esteve quase para ir
embora, pois como ia par a cama com uma mulher, sabendo que a mãe estava a
gritar no rés-do-chão. Acabado o serviço, ela quis ir lá baixo ver como estava
a mãe, demorou muito e ele foi ao armário onde ela guardara o dinheiro e
roubou-lhe os cem francos.
XII
Foi já no Verão que Fillmore que lhe
deu guarida num estúdio. Já o teria recebido ali se não tivesse a cabra da
Jackie ali em casa. O estúdio tinha belas vistas e não faltava ali comida. Ele tinha
a mania que era artista, e para isso até tinha um cavalete ali em casa. A
pedido de Swift, o irlandês, Miller deixou crescer a barba. Começou por lá a
aparecer o Kruger, que disse que ele não percebia nada de pintura. Durante um
mês ou dois esteve ali bem, apesar de não ter uma miúda com quem se embebedar.
Karl também aparecia por lá com uns trabalhos. Certa noite deu em casa com uma
mulher a perguntar-lhe se ele era o escritor, e logo apareceu Fillmore a
cobri-la com um cobertor e a dizer que ela era uma princesa russa. Chama-se Macha, depois
soube a sua história –, era actriz, andou com um realizador, foi ludibriada
pelo seu advogado. Recomenda calma a Miller, não vá ele atirar-se já a
ela. Num outro dia bebem demais, Fillmore tentou levá-la para a cama, mas ela
mesmo bêbada mantém a sua dignidade e recusa. Fillmore só depois de irem a um
espectáculo de lésbicas conseguiu levá.ja para a cama. Mas ela tem
gonorreia, e ele desesperado vai lavar o pénis com sabão preto. Porém, continua
louco por ela, e vai tentar consumar o acto no dia seguinte com um
preservativo, que torna impossível a penetração. Azar sobre azar. Então vai dormir com ela como irmãos apaixonados. Ela é uma pega neurasténica, passa a noite de um lado
para o outro e bebe demais. Desbobina um pouco mais da sua vida, e soube que chegou
a andar com lésbicas, mas elas desgastavam-na.
XIII
A princesa acaba por engatar um
escultor castrado, e Fillmore não a deixou entrar mais em casa. Mas é evidente
que ela deixou ali algum vazio. É então que se dão em filosofar: Falam da
América e da Europa, de Nova Iorque e de Paris, de Goethe, que foi o fim de
alguma coisa, e de Whitman, que foi o princípio de outra. Falam de Rimbaud, de
Dostoiéwski e Nietzsche, que cita. Miller começa a pensar um pouco à Walt
Whitman, com tiradas algo poéticas, dizendo que é inumano, termo que usa, porventura para não pertencer a
esta humanidade, que se degradou. Para ele o mundo ocidental está esgotado. De
repente sente-se um poeta que canta as aventuras e desventuras das prostitutas e
chulos de Paris, dos tristes e infelizes, dos expatriados e sem a brigo que
deambulam por aquelas ruas. Diz que o mundo está gasto, mas é ele que está cansado e deprimido, sem saídas. Quer rios que criem oceanos como Shakespeare e Dante,
rios que não sequem o vazio do passado. No fundo quer ser um grande escritor, dar largas ao seu Ego, embora viva ali na miséria. Ama tudo o que flui, a escrita hierática,
esotérica, perversa, com as ideias infestadas de pessimismo e degradação.
XIV
Chegou-se o Natal e ele foi
celebrado com champanhe na companhia de Fillmore. Ele ainda o tentou levar a
uma igreja medieval, por onde costumava ver um padre vestido de preto a rezar.
Não se deram muito bem com a experiência e tiveram que sair dali apressadamente.
Miller não se dava muito com as igrejas, pois tinha tido más experiências nos
Estados Unidos, em Jacksonville, no tempo da crise, quando pediu ajuda numa
sinagoga e o mandaram para o Exército de Salvação, e a uma igreja católica, e o
puseram na rua. No ano novo iria dar aulas a uma criança em Dijon, que falava com
pedantismo de Ronsard, Villon e Rabelais. Passou ali muito mal, chegou a ir pelas
ruas à procura de lenha, tal o frio que estava a passar: Para se corrigir a
ideia de que Henry Miller só fala de pegas, leia-se esta citação da página 240
de 262 páginas, em que se sente abandonado: “Recordo rapidamente as mulheres que conheci. São como que uma corrente
que forjei com o meu próprio sofrimento. Todas ligadas umas às outras…
Cortam-nos o cordão umbilical, dão-nos uma palmada no rabo e ala! Estamos no
mundo à deriva, barco sem leme. Olhamos para as estrelas, e depois para o
umbigo. Nascem-nos olhos em todos os lados: nas axilas, entre os lábios, na
raiz dos cabelos, nas solas dos pés… O que está distante aproxima-se, o que
está perto distancia-se… Andamos assim anos e anos, até que damos por nós no
centro exacto, onde lentamente apodrecemos, nos esboroamos, voltamos a ser
dispersos. A única coisa que permanece é o nome”.
XV
Sabendo que estava a passar mal,
Carl envia dinheiro a Miller, que regressa a Paris sem se despedir de ninguém. Ao
chegar foi de imediato para o hotel onde aquele estava hospedado, e encontra-o
nu, com uma gaja em casa. Ela estava a dormir, mas ele podia a seguir aproveitar-se
dela. Ele recusou, não era o seu momento de dar uma queca. Conta-lhe então que
apanhou um cagaço, tinha andado com uma miúda de quinze anos, felizmente que
não a engravidou, mas podia ser preso, pois era menor. Felizmente que o pai viera lá a casa e
ficara tão bem impressionado com os livros que lá tinha, que devia ter achado
que um homem que os lesse não podia ser assim tão mau. E o caso ficou por ali,
com ele proibido de a visitar. De manhã Miller alugou um quarto e deu com Van
Norden, que lhe contou que Fillmore estava maluco e fora internado num
manicómio. Logo que aquela conversa acabou foi ter com Fillmore. Afinal estava
numa ala dos doentes comuns, e com a sífilis. O seu problema é que engravidara
Ginette, que vivia no Bairro Latino, a quem pediu para a ir tranquilizar, que
estava bem. Miller vai lá reconforta-la, metendo-lhe meia dúzia de petas. Ela é
histérica, esgadanha-o todo quando faz sexo. Numa conversa que teve a seguir com Yvette, esta confessou-lhe como segredo, que afinal Ginette
era uma puta, e nunca estivera grávida. E pouco depois ao Fillmore mandaram-no
para o campo, isto é, para o manicómio.
Foi-lhe
dado alta e regressou a Paris, onde parecia viver bem. A mãe mandava-lhe
dinheiro. Os pais de Ginette tinham uma papelaria e ele ficava nas traseiras a
maior parte do dia. Miller conta a revelação de Yvette a Fillmore, mas este
disse que tinha andado com as duas, e já sentira o bebé dar pontapés na barriga
de Ginette, que a Yvette era uma puta e estava a inventar aquilo por ciúmes.
Andou mais um pouco com eles e deu para ver como Ginette era endiabrada, quando
se zangou com ele num café e os dois andaram à bofetada e foram postos na rua,
acusados de baterem numa mulher grávida. Um tempo depois está em frente do
Credit Lyonnais e dá com Fillmore, Ginette só lhe dera meia hora para ele fazer
um levantamento, e avisou-o que se ele fugisse ia atrás dele até ao fim do
mundo para o matar. Param para beber qualquer coisa num bar, e ele ultrapassa o
prazo da meia hora. Vendo-o tão aterrado, Miller aconselha-o a regressar aos
Estados Unidos. Ele confessa ter ainda bastante dinheiro, que a mãe lhe enviara.
A solução era conseguir um visto no consulado inglês para ir para Inglaterra, e ali
apanhar um navio para a América. Cambiam dinheiro, Fillmore tem agora dólares, libras e
francos. Na pressa resolve deixar a Miller os francos, e pede que ele ajude
Ginette, ainda está cheio de pena dela. Estavam desanimados, longe eram os
tempos em que para eles, Paris era vinho, mulheres e dinheiro. Lá o conseguiu
despachar no comboio para Inglaterra, depois de serem demorados no consulado
inglês. Pelo caminho, ao passar numa cervejaria, pareceu ver Ginette histérica
a arrancar os cabelos da cabeça, e de repente veio-lhe à ideia de também ele regressar aos Estados Unidos.
COMENTÁRIO GERAL
O narrador, Henry Miller, trabalha
como revisor de um jornal em Paris, um mister apenas confortável por estar
alheio ao que se diz, ao conteúdo do texto, fazendo um trabalho desqualificado e mal pago. Ele vive quase
na miséria, satisfeito por se realizar como escritor. Escreveu um livro que
talvez não passe de “uma difamação”. Também outras personagens se pretendem grandes actores,
grandes artistas –, são jovens, quase todos se sonham em grande. Numa cidade
aberta à vida e às novas ideias, o “umbigo do mundo”, ele usa de toda a
liberdade, a grande riqueza que possui, para expressar a vida dos miseráveis,
dos expatriados, dos sem abrigo que por lá deambulam, tal como ela era, até na
linguagem. O narrador parece obcecado por mulheres, bebidas e comida, e as
próprias personagens vêem sexo por lado o lado, as mulheres são permissivas e
os homens ao verem-nas, até um simples seu olhar mais mortiço os faz "suar”, embora
nada que já não tenha dito Freud. Mas ele é feliz, quase se afogando naquela
liberdade. Em Paris até um pobre se pode sentir rico ao passar pelos Campos
Elísios, enquanto em Nova Iorque um rico se sente insignificante, perante a
altura abissal dos edifícios. Ali, mesmo nas lonas, não se sente deprimido como
na América, talvez daquela sua estadia saia qualquer coisa de original e
magnífico.
A linguagem das personagens é frequentemente
grosseira, obscena, ainda que não desprovida de lucidez não têm continência
verbal, sobretudo abusando do calão masculino, mas nada que alguns de nós,
homens e mulheres adultos, já não tivéssemos ouvido à farta. As personagens não
fogem à verdade, quando dizem aqueles palavrões, que muitos, e parece que as
próprias mulheres, não gostando de ouvir, gostam de ler na sua intimidade, para
ver como vai o mundo. A maioria dos escritores, evitam estes escolhos, querendo
mostrar apenas a grandeza do ser humano, procuram esconder o que será a sua
baixeza, a sua natureza animal. Henry Miller, sem que de vez em quando tenha
tiradas filosóficas sobre a vida, se pretenda enobrecer citando a grandeza de
outros escritores e artistas, faz um relato livre de como viveu ali todos
aqueles anos, feliz, apesar de tudo, vivendo em condições precárias com jovens
de ambos os sexos. Ele apenas reproduz uma fase da sua vida. E as palavras são
inocentes de toda a culpa, mesmo quando as consideramos obscenas. Vejamos por exemplo
uma palavra muito usada pelo autor, "foder", do verbo latino fodêre, conjugado “fodiõ, foderis, fodêre, fõdi, fossum”. Ora bem, esta palavra no
fundo apenas quer dizer furar, cultivar, escavar, que temos de
conjugar frequentemente quando lemos muitos textos em Latim, todo o sentido
pejorativo que tenha somos nós que lá o pomos.
O autor foi muito criticado na
altura pela sua linguagem debochada. A sua obra esteve durante muito tempo
censurada por obscena, mas a verdadeira obscenidade não residirá tanto nas
palavras toscas representando a verdade, mas no ódio, na inveja, na violência
física e verbal que frequentemente regem o mundo. Ele defendeu-se, dizendo que
o seu livro “é a expressão duma vida vivida aberta e honestamente”. Há ali uma
linguagem rude, próxima da realidade, nua e crua, usada por jovens
irreverentes, muito primários, sobretudo em Van Norden, e até ideias menos
polidas, e actos considerados repugnantes pela sociedade, que os escritores nos
procurar vedar, para não se sujeitarem a críticas desfavoráveis. Por outro
lado, existe um grupo de indivíduos, marginais à sociedade, que não interessa a
alguns ver estudados, e a outros que convenha que ser ignorados. O ser humano,
embora frequentemente tenha comportamentos execráveis, gosta de se conceber
como ser civilizado, com uma natureza divina, tentando esconder que apesar da sua indiscutível faceta racional tem uma componente animal,
distinguindo-se biologicamente pouco das feras.
Trata-se um livro que é uma
autêntica homenagem a um certo tipo de excluídos, não heróis, como sejam os
desempregados, os vagabundos, os refugiados, as prostitutas, os sem abrigo.
Utiliza a sua própria linguagem, pensámos que ainda com alguma censura. Neste
mundo hipócrita, já a ouvimos de forma mais escabrosa na boca de pessoas
distintas em encontros privados, embora em casa ou em público expressem uma
linguagem polida e elegante, a que não se possa fazer nenhum reparo moral e
passe na malha do socialmente correcto. Ele regista quase tudo o que
normalmente se omite nos livros de literatura, e não foi o primeiro, nem foi
tão longe como outros na sua hediondês, que o diga o Marquês de Sade, que é tão
obsceno, herético e lascivo, que a muitos indigna, mas a outros faz rir, tais os
seus disparates. As personagens masculinas tratam as mulheres por “putas”, “conas”,
“cabras”, “pegas”, mas andam sempre à sua volta como se sem elas o mundo
ficasse vazio –, elas serão o alfa e o ómega da sua existência. Eles são
toscos, mas reais, parecem não terem lido a Bíblia, onde Eva nalguns versículos
é considerada como uma dádiva de Deus. As mulheres ao lerem este livro ficam a
saber como é que os homens mais lá no fundo olham para elas, e a saberem mais
um pouco de como elas próprias são. Não admira ter sido uma mulher a custear a
primeira edição deste livro, que traz uma nova abordagem do sexo à literatura.
Trópico
de Cancer é um romance autobiográfico surgido em 1934 em Paris, uma cidade
buliçosa e boémia, de grande implosão intelectual, em que alguns jovens na casa
dos trinta tentam sobreviver às dificuldades da vida. Mergulhado num realismo sem freios, Henry Miller, no
seu processo narrativo recorre frequentemente à “corrente de consciência”, e
torna-se por vezes sinuoso e pouco claro, ao ponto de parecer a alguns leitores
cansativo. Por outro lado, servindo-se da linguagem falada, as personagens usam
de um vocabulário obsceno, pouco conforme com a educação que é dada à maioria
das pessoas, podendo repugnar a alguns leitores mais sensíveis. Contudo, há que
perder o pudor para analisar a vida, é bom que não nos atemorize o sentido
apodrecido das palavras, e nos fixemos mais na realidade, porque aquele mundo
grotesco, primário, quase animalesco, existe mesmo, e é conveniente que o
conheçamos melhor, até para o podermos aperfeiçoar, se for caso disso. É óbvio que
este romance não se recomenda a todas as idades, para além da sua linguagem excessiva
contém momentos de uma moral pouco exemplar, talvez seja este atrevimento que
dê uma parte do mérito deste livro, que não tem só esta faceta, o narrador, acossado
por aquela sociedade, põe algumas questões filosóficas, falando do egoísmo, da
indiferença, da solidão, do absurdo que às vezes é a vida, e isto é um outro
lado construtivo de um romance, que não deve ser ignorado.
20/04/2018
Martz Inura
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