MÁRIO DE CARVALHO
Um deus passeando pela brisa da
tarde
Porto
Editora (2013) (358 p.)
Mário
de Carvalho, romancista, contista, dramaturgo e argumentista português, nascido
em 1944, é possuidor de uma vasta obra, muito lida quer em Portugal quer no
estrangeiro. Foram-lhe atribuídos vários prémios literários e é reconhecido
pelos seus confrades. Vamos pegar aqui num dos seus romances, Um deus passeando pela brisa de tarde,
publicado em 1995. A acção decorre no século III d.C. no município de Tarcisis,
algures na Lusitânia. Para o processo narrativo recorre à memória de Lúcio
Valério Quíncio, a viver exilado a dois passos daquela villa, depois de ter ali exercido o duunvirato com Caio Cecílio
Trifeno, que entretanto falecera, acabando aquele por assumir sozinho o cargo.
A
história é fictícia, embora sirva para reconstruir o mundo. Lúcio Valério
Quíncio é um reflectido magistrado romano, norteado pela justiça e equidade, dando
expressão ao brilho mais genuíno da romanidade, ao estilo de Marco Aurélio, a
imperar então em Roma. Contudo, vai ter dificuldade em fazer prevalecer as
ideias, demasiado avançadas para a época, pois reconhece que não se pode
governar contra a consciência do povo, que muda muito lentamente e condiciona
a acção do político, por mais honesto e justo que ele seja. Ele vai ter que enfrentar
três problemas: o avanço dos mouros, a propagação de uma subversiva seita cristã
e o contexto político da cidade. Não digamos mais para o leitor descobrir o
resto.
Para
ler o livro convém relembrar alguns termos, de uso corrente naquele tempo,
respeitantes às casas (átrio, triclínio, vestíbulo, peristilo), à cidade
(fórum, basílica, pretório), `às termas (frigidário, tepidário, caldário); à
administração (coortes, duúnviro, decênviro). De algumas palavras deixo aqui já
um significado sucinto: ancila: escrava; triclínio: sala das refeições;
espórtula: gratificação; escártulo: cárcere; felonia: perfídia; janitor: vigia;
ostiário; aquele que guarda o templo; vílico: responsável de determinada
tarefa, lictor: funcionário que escoltava os magistrados.
Para
se ficar um pouco alumiado, recordemos outras personagens importantes do
romance como Proserpino: advogado afirmado no município; Pôncio Velutio Módio: um
decênviro local; Rufo Glicínio Cardílio, taberneiro com pretensões à edilidade;
Aulo: comandante da coorte urbana; Cornélio Lúculo: poeta com alguma intervenção
social; Énio Digídio Calpúrnio: senador romano influente; Máximo Cantáber: cidadão
romano ligado à seita cristã; Mílquion: bispo cristão; Mara: esposa de Lúcio; Júnia
Cantáber; a mais devota ou fanática seguidora da seita cristã.
Este
livro de Mário de Carvalho transporta-nos a um passado de quase dois mil anos, embora aqui bem
perto, na Lusitânia, em que vemos reconstruídas não só a sua parte material: casas,
termas, fórum, vias e muralhas, como a sua parte imaterial, as estruturas
sociais, culturais, económicas e religiosas. Os políticos de então já enfrentavam problemas e vícios que ainda hoje nos afligem. Ali já se notam vestígios de um império
romano em decomposição, cercado por povos famintos das suas riquezas e poder,
minado por ideias peregrinas, e o pulsar de uma nova religião, o cristianismo,
corroendo os seus alicerces.
A
linguagem é sóbria, precisa, límpida, sem artifícios, quase não se dá por ela
para entrarmos na história que nos é contada. A cidade, digamos assim
impropriamente, é descrita em traços muitos largos, com pinceladas certeiras
mas corridas: as suas ruas são vagas, fugidias, as suas casas quase só
imaginadas, e as personagens vagamente caracterizadas, como se a vida estivesse
a ser vista de longe, envolta de uma neblina de passado dormente, tingida de
antiguidade. Esclareçamos contudo, que mesmo assim esta descrição não deixa de
ter o seu aliciante, dá uma noção de conjunto, tem trejeitos de obra de arte.
Um dos aspectos menos entusiasmantes
para alguns leitores poderá ser o livro não ter um enredo intrincado, que
prenda logo a atenção do leitor, toda aquela história estar narrada de um modo
muito difuso, quase distante, sem a intensidade com que as experiências
vividas nos proporcionam. Mas outros
leitores considerarão que dada a escassez de elementos daquele período histórico,
este livro é uma pepita de ouro que devemos entesourar como preciosa, uma obra
modelar neste género, com pormenores deliciosos, inspiradora.
Não se trata pois de um romance
histórico fácil, centrado num drama passional
que possa seduzir qualquer leitor. Não, o livro leva-nos para um período
conturbado da História, onde se operam transformações políticas e religiosas capazes
de mudar uma civilização, tem uma moral e
filosofias subjacentes, desafios à reflexão. Um deus passeando pela brisa da tarde, concluirei, é uma obra bem dentro da Literatura Universal, teve muito trabalho de investigação, possui
uma estrutura repensada de várias lógicas com que se regula o mundo, está perpassado de uma imensa humanidade. É um livro extraordinário que se recomenda.
20.09.2013
Martz Inura
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