JÚLIO DINIS






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JÚLIO DINIS
Os Fidalgos da Casa Mourisca
LIVRARIA CIVILIZAÇÃO – EDITORES (1976)

O HOMEM
            Joaquim Guilherme Gomes Coelho nasceu no Porto em 14 de Novembro de 1839, era filho de José Joaquim Gomes Coelho, cirurgião, e Ana Constança Potter Pereira Gomes Coelho, de ascendência anglo-irlandesa. Frequentou a escola primária de Miragaia e aos catorze anos concluiu o curso preparatório do liceu, matriculando-se a seguir na Escola Politécnica, com destino à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde concluiu o curso em 1861. Infelizmente foi acometido de grave doença e teve de se recolher a Ovar, terra da naturalidade de seus pais, a casa da sua tia, Rosa Zagalo Gomes Coelho, com forte influência no seu imaginário, e depois à Madeira, onde esteve por duas vezes, na esperança de obter uma cura. Não podendo exercer medicina, dedicou-se à literatura, tendo êxito imediato a publicação no Jornal do Porto de As Pupilas do Senhor Reitor, como o foram todos os seus romances, à excepção do último, publicado postumamente. Em 1863 recusou o lugar de lente da sua Escola por motivos de saúde, lugar que assumiu dois anos depois. A sua vocação literária despontara em 1856, em que começou a escrever as suas primeiras obras dramáticas e as suas novelas, mais tarde incluídas em Serões da Província. Também usou o pseudónimo de Diana de Aveleda para publicar temas mais ligeiros. Sofria de tuberculose, doença então de grande morbidade, e de que já tinha falecido a sua mãe e atingiria todos os seus oito irmãos, falecendo em 12 de Setembro de 1871, tinha então 31 anos de idade.

A OBRA
            Apesar de morrer tão jovem, Júlio Dinis deixou-nos uma obra variada e já bastante volumosa. Consta de Poesias (1873), Inéditos Dispersos (1910), e Teatro Inédito, publicado só em 1946 e 1947. Mas as suas obras mais importantes são:
            - As Pupilas do Senhor Reitor (1867), na imprensa em 1866;
            - Uma Família Inglesa (1868), na imprensa em 1867;
            - A Morgadinha dos Canaviais (1868),
            - Os Serões da Província (1870)
            - Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), póstumo.

ROMANCE: Os Fidalgos da Casa Mourisca

            PERSONAGENS PRINCIPAIS
            Jorge: Filho mais velho de D. Luís e irmão de Maurício. Tem uma paixão assolapada por Berta, que tenta calar em si para não ir contra a vontade do pai, fugindo de um casamento que o podia levar à morte. Todos o reconhecem como ponderado e prudente, uma bela figura para as mulheres, de carácter recto e reservado. Intelectualmente é lúcido e estudioso, apercebe-se da má administração da Casa Mourisca e quer salvá-la da sua ruína. Já em “pequeno fora pensativo e sério, sentia-se tomar por bondade e ternura”, era “grave e reflectido”.
            Berta: A filha mais velha de Tomé da Póvoa, que ele mandou para Lisboa para receber uma educação esmerada. Um tal facto foi muito criticado na terra, pois não se esperava que ela quisesse ser mais que a filha de um lavrador. Ao regressar à terra a sua finura faz realçar o seu encanto. Não lhe faltam pretendentes. Apesar de assediada por Maurício, a sobriedade e seriedade de Jorge fazem eco dentro de si, e é por ele que se apaixona.
            D. Luís: Um velho fidalgo absolutista, já idoso e doente, esmagado perante o liberalismo triunfante, cheio de preconceitos sociais, amarrado ao passado político, sem energia para se adaptar aos novos tempos. A custo deixou a administração da sua casa passar de Frei Januário para o filho Jorge, opôs-se quase até ao fim ao casamento de Jorge com Berta, não obstante ela ser sua afilhada, e lhe recordar a filha, precocemente falecida.
            Frei Januário: Procurador há muitos anos da Casa Mourisca, que segue velhos métodos administrativos de quando a nobreza era dona e senhora do país, e não se tinha de defrontar com a nova burguesia campesina, fluorescente. Gostava de estar sempre por perto da cozinha e da dispensa. Era um absolutista à antiga, que via toda a novidade como obra da maçonaria.
            Maurício: O filho mais novo de D. Luís, jovem bem-parecido, um tanto estouvado e volúvel. “Génio impetuoso e impaciente” “em que o estouvamento seu desafiava lágrimas”. Os pergaminhos da sua casa já não lhe dizem muito, está voltado para o futuro e de olho nas jovens da terra. Convive com os estouvados dos seus primos de Cruzeiro. Tenta aproximar-se de Berta, mas as coisas não lhe correm bem, acabando por ir para Lisboa e casar com a sua prima Baronesa.
            Baronesa Gabriela: Uma jovem viúva de menos de trinta anos, que vive em Lisboa e a quem o tio D. Luís pede uma colocação para o filho Maurício. Respondeu com uma carta informal, para desgosto de D. Luís, e quando chega mostra-se muito independente e vivida, as ideias liberais já tinham triunfado nela. É contudo, muito respeitadora do tio, cedendo-lhe o uso da Casa de Bacelos ao fim. 
            Tomé da Póvoa: Um próspero agricultor que chegou a ser criado na Casa Mourisca, homem sério, dinâmico e trabalhador, casado com Luísa. Fazia justiça ao provérbio “alma sã em corpo são”. Tem a sua dignidade. É pai de Berta e dá uma ajuda, quer administrativa, quer financeira a Jorge para modernizar a Casa Mourisca.
            Luísa. A mulher de Tomé da Póvoa e mãe de Berta, uma senhora à moda tradicional, respeitadora do marido, trabalhadora e educadora dos seus filhos e filhos.
            Ana do vedor: É a mãe de Clemente. Fora ama-de-leite de Jorge, e como tal tinha um certo à vontade para falar quer com D. Luís quer com Jorge. Embora fosse um tanto destravada, não tinha papas na língua, era um espírito aberto e bondoso. Teve influência no estreitamento da relação de Jorge com Berta, embora esta estivesse prometida ao seu filho, Clemente. 
            Clemente: Um rapaz muito sociável e de personalidade vincada, por algum tempo regedor da freguesia. Mais uma pedra para complicar os amores de Berta, que antes de ser cortejada por este, a conselho da mãe, já o fora por Maurício.

            RESUMO DO LIVRO
            O livro começa por evocar a dominação árabe, falando dos senhores Negrões de Vilar de Corvos, os Fidalgos da Casa Mourisca, com uma família reduzida a três pessoas, constituída pelo pai D. Luís e os filhos, Jorge e Maurício. A esposa tinha falecido, bem como uma filha com dezasseis anos, de nome Beatriz. No país tinham triunfado as ideias liberais, mas D. Luís, já sexagenário, homem “grave, severo e taciturno” continuava amarrado às ideias absolutistas do passado, confiando o governo da casa a Frei Januário dos Anjos, que o seguia nas ideias políticas. O seu solar transformou-se em asilo para muitos dos seus correligionários vencidos, e, administrado à velha maneira caduca, entrou em franco declínio (Cap. I). Há um diálogo entre Jorge e Maurício, em que este fala da hipótese de haver ali um tesouro escondido desde o tempo dos mouros, mas ao primeiro não encanta este tesouro, a riqueza daquela terra existirá na força do trabalho e organização das pessoas que lá moram. Ao seu lado prosperava Tomé da Póvoa, casado com Luísa, que era “liso nas contas, pontual nos pagamentos, e cavalheiro nos contratos”. D. Luís via com algum ciúme o sucesso daquele homem, ao contrário de Jorge, com quem convivera em pequeno e que gostava de passar pela casa dele para se inteirar de como ia conseguindo administrar a quinta. Os dois se encontram a falam de Berta, a viver em Lisboa, e se demoram, tentando Tomé explicar a Jorge a razão da ruína da Casa Mourisca e o sucesso da sua quinta (Cap. II e III). A Jorge custava ver a ruína da Casa Mourisca, onde reinava a mesma letargia de sempre, com D. Luís ensimesmado, a ler jornais absolutistas como A Nação e O Direito que lhe mandavam da capital, e Frei Januário naquele torpor de administrar a casa, sempre mais próximo da cozinha do que das leiras do solar. Há um diálogo entre Frei Januário e Jorge, em que este manifesta a sua apreensão quanto ao futuro daquela casa, cujo declínio o frade atribuiu aos liberais. Questiona-o mesmo sobre o sistema de administração que está a seguir, uma intromissão que o indigna, pois julgava estar a fazer o seu melhor (Cap. IV). A Jorge não convenceu as palavras de Fei Januário quanto à inevitabilidade da ruína da Casa Mourisca, e tem um diálogo com seu irmão Maurício, um tanto estouvado, mas com quem se dá. Faz tenção de pedir ao pai para que lhe entregue a administração do solar, pois acreditava que com ideias positivas e trabalho árduo se este se podia recuperar, e para tal dá informação a Fei Januário, que fica escandalizado (Cap. V). É então que Jorge tem uma conversa mais demorada com Maurício, e os dois resolvem ir falar com o pai, para o primeiro se oferecer para administrador do solar, e o segundo ir para Lisboa, onde teria outras oportunidades. Foram os dois falar com D. Luís que aceitou a proposta (Cap. VI). Começa então transferência da administração do solar de Fei Januário para Jorge, com este último animado com a ideia de recuperar as finanças da família, e o primeiro despeitado, e agora ainda mais arreliado, à procura de livros de escrituração que não existem (Cap. VII). Tomé da Póvoa continua a dar os seus conselhos sobre administração a Jorge, que acaba por saber que em Lisboa morreu a madrinha de Berta e que esta em breve regressará a casa dos pais (Cap. VIII).
            Com a chegada de Berta (Cap. IX) inicia-se uma nova fase narrativa. Um amor forte entre Jorge e Berta começa a despertar, ainda que abafado pelos preconceitos sociais que o inibem. Ele é emergente no primeiro diálogo entre os dois, tornar-se mais evidente nos ciúmes de Jorge, e quando Maurício, sentindo campo aberto, corteja Berta. Esta não lhe quer ser desagradável, fala com ele com muita educação, mas não lhe dá ousios, e começa a desgostar-se da sua conversa quando verificou que ele é muito desbragado e convencido. Pareceu-lhe então mais fácil desquitar-se ele quando quisesse, o mesmo não dizia de Jorge, para o qual se sentia inclinada. A Jorge a presença de Berta também o intimida, ao ver-se confrontado com uma paixão que lhe parece impossível, e que tinha de lutar por calar dentro de si. D. Luís recebe então uma carta da Baronesa Gabriela, sua sobrinha, já viúva ainda sem ter feito os trinta anos, que se expressava de uma maneira informal, chocando com as suas regras de cortesia. Surgem também em diálogos Ana do Vedor, ama-de-leite de Jorge e mãe de Clemente, o regedor da freguesia, a enfrentar os abusos da fidalguia local, na qual se incluem os irmãos do Cruzeiro (um padre a quem retiraram a freguesia, e um doutor, que passam o tempo na ociosidade). Maurício exceder-se no assédio a Berta, de modo a Tomé da Póvoa ter que falar com Jorge a pedir que diligenciasse no sentido dele não andar por lá a importuná-la (do Cap. IX ao XIV).
            Com o XV capítulo chega a Baronesa Gabriela, educada na cidade, que com o seu ar desinibido será uma alavanca para ultrapassar estes impasses sentimentais. Quando Gabriela vai falar com o seu tio, D. Luís, há um confronto de gerações, mas nada que impeça o seu bom relacionamento, já que é muito amiga e respeitadora do tio. É então que se faz um a jantar à moda antiga com a fidalguia local, sendo convidados os irmãos do Cruzeiro, entre outros (Cap. XVI). Nestas andanças Maurício e os irmãos do Cruzeiro dão com Jorge a sair da casa de Tomé a altas horas da noite. Com esta descoberta deduzem que ela tem um caso com Jorge. Durante o jantar no dia seguinte Jorge é confrontado com uma série de insinuações sobre aquelas visitas, que ele no discurso que faz tenta dissipar, revelando que os seus encontros eram com Tomé da Póvoa, que lhe dava conselhos sobre administração da quinta e até emprestara capitais, o que deveras desagradou ao pai. D. Luís não admitia ser ajudado por um antigo criado, aquela cooperação ia contra os seus princípios, está irritado e vai para o quarto (Cap. XVII). Alguns fidalgos tentam ir ali acalmá-lo, mas ele tinha os seus preconceitos de classe, a sua posição era inabalável. Para dar expressão ao seu desgosto pouco depois sai dali para pedir à sobrinha Baronesa a acomodação na Casa dos Bacelos, de que ela é dona, e é para lá que vão todos ainda aquela noite. Numa conversa que tem com Jorge, Maurício mostra-se arrependido de no jantar ter ido tão longe nas suas insinuações, diálogo que Gabriela modera. D. Luís estava tão revoltado que foi ter com Tomé da Póvoa para lhe entregar as chaves da Casa Mourisca como penhor até se libertar daqueles malditos empréstimos. Porém, ele não o encontra lá, é a filha Berta que o recebe, e com as suas parecenças com a falecida filha Beatriz, o desarma (Cap. XVIII). No solar da Baronesa Gabriela, é agora ela que tem algum ascendente sobre aquela família, num diálogo com Jorge para saber o que se passa, acarinha D. Luís e fala com o Padre Januário, a quem D. Luís dá outra vez a procuradoria da Casa Mourisca, mas que este recebe apenas nominalmente, entregando-a em segredo a Jorge, dada à sua manifesta incompetência para a gerir. Gabriela faz-lhe mesmo ver o inevitável desta situação (Cap. XIX).
            Sabendo que D. Luís está a agora viver na Casa dos Bacelos (Cap. XX), Tome da Póvoa vem ali entregar-lhe as chaves. No diálogo que se trava, este pergunta se aquele sentimento de orgulho que ele tem para com ele e para com o seu dinheiro, já não o terá para outros lavradores a quem Fei Januário fez penhores avultados, não será inveja? Ora isto mais vai enfurecer o fidalgo. D. Luís não aceita as chaves, e por fim Tomé da Póvoa resolve levá-las consigo com o propósito de levantar da ruína a Casa Mourisca – responde ao mal com o bem. No dia seguinte Tomé da Póvoa parte logo de manhã cedo para a Casa Mourisca, onde inicia obras de renovação do solar, e como era habitual Jorge vai a casa dele. Claro, não está lá, recebe-o Berta, que após algum diálogo, em que este a trata com uma reserva repulsiva, lhe pergunta porque é que ele é assim para ela, porque não é amigo dela como é do pai. Há alguém a suster esta discussão e Jorge vai ter com Tomé da Póvoa à Casa Mourisca. Soube então da discussão dele com o pai e da razão de estar ali, mas diz que aquela solução é uma loucura, a melhor forma de o ajudar é deixá-lo continuar a gerir a quinta. Depois de uma longa conversa os dois concordam e Tomé da Póvoa aceita ir com ele ao Porto tratar da demanda do Casal do Reguengo. É aqui que Luísa, esposa de Tomé, suspeita de uma secreta relação entre Berta e Jorge (Cap. XXI). No capítulo seguinte continua o assédio de Maurício a Berta, este lhe faz mesmo uma declaração amorosa, mas ela, para sua grande surpresa e desagrado, rejeita educadamente. Com a posse das chaves da Casa Mourisca Berta tem curiosidade em ir visitar a casa, que frequentou quando pequena, e é o que faz no dia seguinte. Ora D. Luís tenta adaptar-se à sua nova vida do solar dos Bacelos, mas num assomo de saudade quis ir à sua velha casa, manda aparelhar um cavalo e vai lá sozinho, e por uma vereda, como que com vergonha de ser visto por alguém. Amarra o seu cavalo num sítio escondido e entra pelas traseiras, a porta está aberta, tenta ver o que se passa, e algo surreal acontece, do quarto de filha Beatriz, falecida aos dezasseis anos, alguém toca as suas melodias na harpa. De repente pareceu-lhe estar a ouvir ali a filha. Entra no quarto em pranto e é a afilhada Berta que o recebe. Entretanto Maurício e os irmãos do Cruzeiro, que a viram andar por ali foram dar uma espiada à casa. Quando ela sai do quarto, com D. Luís ainda lá dentro aparece Maurício, a quem ela dera uma negativa, surge com uma conversa muito esquisita, insinuando que se ela andava ali era para se encontrar com alguém. Berta sente-se ofendida, não sabe como negá-lo, e aparece entretanto D. Luís que repreende o filho, que se afasta com os primos (Cap. XXIII. A D. Luís fica desgosta o comportamento estouvado de Maurício, e vai pedir à sobrinha Gabriela para ter uma conversa com ele (Cap. XXIV). Nos dois capítulos seguintes a Baronesa vai falar com Berta para saber para que lado pendia o coração dela, e a Ana do Vedor empurra o filho, Clemente, para Berta. Clemente é uma rapaz bondoso e recto, mas um pouco tímido em questões de amor, e resolve pedir a Jorge, com quem tem mais confiança, para que lhe faça o pedido de casamento, e é isso que ele faz, apesar de muito contrariado.
            O capítulo XXVII é muito interessante, Jorge vai levar a contragosto a proposta de casamento de Clemente a casa de Tomé da Póvoa. Há então um diálogo entre Jorge e Tomé que se afasta para ir chamar a filha Berta, afinal a interessada, que acaba por aceitar aquele casamento, até para provocar Jorge. O pai acha conveniente chamar a mulher, Luísa. Nesse entretanto Berta e Jorge confrontam-se, ela quer saber porque motivo ele a trata assim, de um modo tão pouco amistoso, Jorge não tem como fugir e confessa, é o amor que lhe tem, para si impossível, que o faz ter aquele comportamento aberrante. No meio daquela comoção ela também se declara, mas sabendo os dois que aquele casamento podia redundar na morte de D. Luís, aceita por ele o sacrifício de casar com Clemente. O caso está outra vez bloqueado. Aqui entra a Baronesa Gabriela a dar uma ajuda. Está cansada daquela vida do campo em que é a ama de D. Luís, vai regressar a Lisboa, e envia uma carta a Tomé da Póvoa a dar entender que Berta era precisa ali para tomar conta do velho – com esta ideia talvez consiga juntar os dois (Cap. XXVIII). De madrugado Gabriela segue para Lisboa, deixando uma carta para acomodar D. Luís, e outra para não afugentar Maurício, que apesar de libertino, algo nele o atrai. O padre Januário vem de manhã comunicar a D. Luís a partida de Gabriela e dar-lhe a carta que ela deixara. Entretanto chegou Berta, mandada para ali por Tomé da Póvoa. Os dois irmãos pedem para falarem com o pai, Maurício quer ir para Lisboa, e Jorge quer fazer uma viagem pelas suas propriedades mais afastadas. O pai está doente e cansado, com pouco apego à vida, e dá-lhes a sua autorização (Cap. XXIX). No solar dos Bacelos, Berta continua a tratar de D. Luís, que mostra notáveis melhoras. Clemente vendo o casamento a arrastar-se vem ali falar com ela. Têm um longo solilóquio, Berta aceita casar com ele mas a uma pergunta directa que ele lhe faz, diz que não lhe pode dar o coração. Clemente fica desgostoso com aquela resposta, e para se tirar de dúvidas vai falar com Jorge, retirado para a Casa Mourisca, para não dar que falar à vizinhança. Ao chegar lá este mostra-se evasivo, admite que ela pode ter dado o coração a alguém no passado, mas não o esclarece completamente, mostra até um certo enfado a falar naquilo (Cap. XXX). Entretanto, no solar dos Bacelos chega uma carta de Gabriela para Jorge, falando do irmão de uma maneira muito intimista. E não tardou a chegar uma outra de Maurício a pedir ao pai para casar com ela. Em face destas missivas D. Luís resolve escrever uma carta de resposta ao filho, e é então que tem um diálogo com Berta, em que fica a saber que esta foi pedida em casamento por Clemente, ao que se opõe vivamente (Cap. XXXI).
            Há aqui paixões ocultas por explicar. Ora acontece que nessa noite, já deitado, Clemente começou a pensar na sua relação com Berta, e a certo ponto julga ter descoberto o segredo que está a bloquear o seu casamento com ela. Berta tem uma paixão secreta por Jorge, e ele terá o mesmo sentimento por ela. Isto deduziu claramente das conversas que tivera com os dois. De manhã conta a novidade à mãe, Ana do Vedor, que por momentos não acredita. Só quando ele lhe explica as coisas melhor é que se convenceu e resolve ir falar com Jorge. Ela gostava do filho, mas também do Jorge, da qual tinha sido ama-de-leite. E ao filho não faltariam raparigas como Berta (Cap. XXXII). Vai então à Casa Mourisca falar com ele, que vê  a definhar-se. A Jorge custou-lhe a confessar aquela paixão, e manteve a sua, dizendo que aquele casamento ia acabar com a vida do pai. Mas este argumento não convenceu Ana do Vedor, que ripostou que se não casasse com ela antes morreria ele que o pai. Vai comunicar o resultado das suas diligências aos pais de Berta. Luísa mostrou-se admirada, embora já tivesse sobre este caso um leve pressentimento, porém Tomé da Póvoa ficou incrédulo, para ele aquilo era uma desgraça (Cap. XXXIII). Prevendo-se a oposição de D. Luís àquele casamento, Ana do Vedor vai ter com o fidalgo – a ela nada a demovia. Falam de casamentos, e ela leva-o aonde queria chegar, a que no consórcio o coração também manda, isto pensando D. Luís estar a referir-se ao casamento de Berta com Clemente. Foi aqui que ela pôs a sua achega, confessando-lhe que afinal Berta e Jorge estão apaixonados, foi o coração que os uniu. D. Luís ficou sem palavras, sente-se traído por Tome da Póvoa, ele tinha boas relações com Jorge e mandara para ali a filha para a casar com o filho, era uma tramóia, e isso não ia admitir. Interroga a seguir Berta para ajuizar até que ponto se confirmavam as suas suspeitas, mas esta não o pareceu esclarecer. Ana do Vedor volta a passar por casa dos pais de Berta, quer contar-lhes a forma como D. Luís se manifestou contra o casamento de Berta com o filho, e da forma como o fez. Tomé da Póvoa fica indignado, também ele tinha a sua honra, e vai tirar satisfações com D. Luís. (Cap. XXXIV). Entra no quarto para falar com o fidalgo e pedir para levar Berta para casa, já que ela não servia ali aos seus propósitos. D. Luís é apanhado de surpresa, e para não dar parte de fraco disse que a levasse. Tomé prossegue o seu discurso, garantindo que não foi por qualquer interesse mesquinho que mandou para ali a filha, que também se opunha àquele casamento, que só o consentiria se D. Luís lhe viesse pedir por favor. Chamou a filha para a levar para casa, antes disso ela ainda se foi despedir do padrinho. D. Luís, confrontado com situações tão antagónicas, caiu em depressão, e o padre Januário achou por bem chamar o filho mais velho (Cap. XXXV). Jorge estava ausente de casa e logo que recebeu a carta do padre veio a correr ao leito do pai. Este recebeu-o afavelmente, ao reconhecer que ele se sacrificara pela honra da família, pelos princípios que professava. Perguntou-lhe com iam os negócios e caiu pouco depois num sono profundo. Jorge pensou ter adivinhado no que pensaria o pai, mas não ousou dizer nada.
            O caso não andava, mas na madrugada do dia imediato chegou a Baronesa com Maurício. Falou com Jorge e confessou que aquele amor entre ambos não era novidade para ela, que era preciso pôr um fim àquele impasse. A Baronesa fora a seguir falar com D. Luís sobre os amores de Berta com Jorge, mas ele continua a opor-se àquele casamento. Entretanto o Padre Januário ouviu o que ali se estava a dizer e veio a favor de D. Luís, mostrando-se escandalizado com aquela mistura de classes, contrária aos próprios evangelhos. Porém, o efeito que produziu foi o contrário ao que se propunha, D. Luís ao ver menosprezada a sua afilhada Berta, disse não ver mais fidalguia nos seus parentes do Cruzeiro que nela. (Cap. XXXVI). A Baronesa estava a levar a água ao seu moinho e fala a seguir com Maurício, que lhe pede para ir chamar Berta para junto do pai. Seria também para pôr à prova os seus ciúmes. Berta por saber que o padrinho estava mal, por fim chegou, e ele chorou quando a viu entrar. Durante três dias a família esteve reunida em Bacelos à espera que aquele imbróglio se resolvesse, ninguém queria forçar qualquer decisão que afectasse a saúde do fidalgo. Para espanto de todos, depois de uma noite mal dormida D. Luís manda Berta chamar Jorge. Este ainda estava na cama, não sabia bem para o que ia. Quando chegou ao quarto, a sós com o filho diz que não aceita o seu sacrifício de não casar com Berta. Porém Jorge estava tão habituado a esta ideia de não poder casar com ela que ainda não acredita, e como que o dissuade a dar aquela autorização, tem de ser ele a frisar que Berta fazendo a felicidade do filho também fazia a sua, que o lugar da irmã só podia ser ocupado por ela. Isto convenceu Jorge, que vai chamar Berta e a leva até junto do pai, para ele lhe dizer que já não se opõe àquele casamento. Maurício abraça Jorge. O facto chegou ao conhecimento de Ana do Vedor, de Luísa e Tomé da Póvoa. Mas ainda restava um problema, aquele casamento estava travado por Tomé da Póvoa, ele só teria lugar se D. Luís lhe pedisse por favor o seu consentimento, e foi isto que a seguir se fez. Finalmente D. Luís põe dormir mais descansado (Cap. XXXVII). O autor faz a seguir a CONCLUSÃO: Jorge conseguiu vencer uma demanda, restaurou a Casa Mourisca e casa-se com Berta, para gáudio dos criados e das respectivas famílias. Claro, Maurício também se casou com Gabriela, estavam os dois um bem para o outro, e Clemente casou com uma laboriosa rapariga do campo, parecendo todos habitarem um mundo aparentemente perfeito.  

            ESTILO DO LIVRO
            É um romance pré-realista, tem características românticas, começando, ainda voltado para a Idade Média, para o passado, cheio de nostalgia, privilegiando o amor nalguns casos sobre a realidade social (Jorge com Berta), o sentimentalismo exacerbado ainda afecta algumas personagens, tem reminiscências da luta pela liberdade (as ideias absolutistas de D. Luís e de Frei Januário, em confronto com as de Jorge e da Baronesa), cultiva o gosto pela natureza, perceptível nos recantos da Casa Mourisca, a idealização da mulher ainda é algo pueril e virginal (caso de Berta e Beatriz): mas já é realista, quando ao rigor narrativo (posições opostas das personagens, tomadas por ideias positivistas, crentes do progresso e do rigor administrativo), as descrições são mais objectivas, as adjectivações mais precisas. Ainda que a Natureza esteja muito presente, a linguagem é mais directa e rigorosa, trata com pouca afectação as situações e está mais voltado para o futuro, é mais materialista e optimista. As personagens têm uma visão social do mundo em que vivem, revelando-nos a ascensão da burguesia, laboriosa e pujante; e a decadência da nobreza, decrépita e falida, com todas as implicações que isto traz. O sentimento do amor começa a subordinar-se ao interesse social (caso de Gabriela e Maurício).
            Deveras, o romance está bem estruturado, tem um enredo solidamente construído, uma intriga habilmente intrincada, e uma linguagem límpida, sem grande afectação, fazendo um retrato claro das personagens, com uma descrição precisa e judiciosa das situações, uma cadência estudada, tornando convidativa a leitura do livro, apetecível até ao seu desfecho. Há uma tensão permanente que se adivinha dos amores quase impossíveis de Jorge com Berta, dada a sua diferente classe de origem, disputados por Maurício e por Clemente, que nos atraem para o livro. Existe uma série de tipos de conflitos, ideológicos (absolutismo versus liberalismo), passionais (Jorge e Berta, Maurício e Berta, Clemente e Berta), sociais (entre D. Luís e Tomé), e psicológicos, entre a maioria das personagens, que o autor vai gerindo ao longo do romance. Este tem XXXVII capítulos e uma conclusão, ao longo das quais as diferentes personagens, principais e secundárias, vão entrando e saindo, conforme interessa à história, como para entrar em cena e tomar parte em um dois ou três diálogos, raramente mais, com que as personagens se expressam com grande lucidez, à exacta medida da sua individualidade. É, enfim, um livro que vale a pena ler, com uma história bem contada na transição do romantismo para o realismo.  

            COMENTÁRIO GERAL
            É fácil dizer bem ou mal de um escritor como Júlio Dinis, Alexandre Herculano ao ler As Pupilas do Senhor Reitor disse que ele “escreveu o primeiro romance do século”, e por aquela altura não era de admirar aquele comentário, esta obra vinha já com a influência salutar de Jane Austen, Goldsmith, Charles Dickens e Balzac, entre outros, e ele escrevera a pensar no Pároco da Aldeia daquele autor. Na sua História da Literatura Portuguesa Óscar Lopes e António José Saraiva dizem que a sua exibição opinante e “as suas demasias de bem escrever”, apagam as personagens, como se hoje e ontem escritores ilustres não se alonguem nas descrições dos estados de alma das suas personagens, como Tolstoi, dissertando sobre a sua psicologia; ou Mario Vargas Llosa não recorra a explicações frequentes e longas para descrever as suas complicadas motivações. Eça de Queiroz nas Farpas diz injustamente acerca do autor “que viveu de leve, escreveu de leve e morreu de leve” (embora depois tenha manifestado opinião mais favorável). É evidente que por essa altura ainda não se tinha apercebido da profundidade com que Júlio Dinis retratou no meio rural a sua época, com o romantismo já a desvanecer-se, mas ainda vivido, sobretudo na província. Podemos dizer menos bem do livro, referindo que o seu enredo é muito linear, que não tem a complexidade e profundeza de alguns romances do seu tempo, que não expõe em altos clamores a epopeia de um povo, sim, podemos, mas este não foi o seu objectivo.
            Temos de atender que Júlio Dinis preferiu o romance campesino ao citadino, dêem-se-lhe mais vinte anos de vida que o panorama das suas criações seria muito diferente, as suas melhores obras ficaram por escrever. Tendo perdido a mãe e os irmãos ainda cedo, vitimados pela tuberculose, à sua alma movia-a a esperança, era naturalmente bondoso e complacente, avesso aos conflitos duradouros, e assim povoava de criaturas o seu mundo romanesco, com pessoas capazes de um momento último de reflexão, uma assumpção de culpa, um perdão, preferindo um final feliz para os seus romances, que, infelizmente,  não seria o dele, mas que deseja aos outros. Não seja vilipendiado por nos criar um mundo mais cordato e feliz do que seria suposto, que muitos acusam de irreal e artificial, pois, pelo menos até ao casamento há muitas histórias felizes, e que não fosse, não seria justo e correcto que todos os escritores procurassem a turbulência e a infelicidade nos seus romances. Analisava a sociedade pelo lado da cooperação, antes de a ver pelo conflito, talvez para se superar a si próprio, que vivia um momento terrível, olhando o mundo com um confiável optimismo, os sentimentos que o inspiravam eram risonhos, fraternos, ainda não tinham sido abandonados pela esperança.  
            Concluindo, o que distingue e torna cativante este livro é a linguagem transparente como está escrito, a clareza com que as personagens vão sendo retratadas, se expressam e argumentam, a forma gradual e encadeada como o enredo vai sendo construído, apelando à sua leitura. A análise psicológica das personagens quando tomam uma ou outra posição menos consensual é suficientemente profunda sem ser fastidiosa, permitindo-nos perceber melhor a razão de determinadas atitudes, o que enriquece a sua humanidade e dá coerência à obra. O livro politicamente retrata-nos o conflito entre o liberalismo e absolutismo por aquela altura, em plena “Regeneração”, socialmente mostra-nos os preconceitos que enformam a nobreza, numa fase de declínio, e a burguesia em franca ascensão, aqui a cruzarem-se num casamento quase impossível de Berta com Jorge. É este o móbil do romance, que se desenvolve num todo transparente: o espaço físico é situado e compreensivo, o tempo cronológico, a cultura do meio bem representada. Como já se disse, em Os Fidalgos da Casa Mourisca podemos ver a sua feição romântica, sobretudo ao princípio, com o autor ainda a pegar na história de uma família assolada pela tragédia, reduzida a três elementos masculinos, com uma visão muito voltada para a Idade Média, tocado pela nostalgia; e depois, mais realista, começa a aprofundar-se na realidade da vida, dura e crua, que obriga as pessoas de qualquer classe a terem que resolver de um modo mais racional os conflitos e incompreensões que se vão gerando, e por fim a organizarem-se e começar a trabalhar. É um excelente livro pela maneira apurada como trata o tema e pelo brilhantismo da sua linguagem, que se recomenda sobretudo aos mais jovens.

21/7/2016
Martz Inura




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