CAMILO CASTELO BRANCO



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CAMILO CASTELO BRANCO
A Queda de um Anjo
Biblioteca Ulisseia
Introdução de Maria de Santa Cruz

O Homem
            Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, na freguesia da Encarnação, em 16 de Março de 1825, e faleceu em São Miguel de Seide, Famalicão, em 1 de Junho de 1890. Não lhe foi fausta a sorte. Perfilhado como “filho de mãe incógnita”, ficou órfão de mãe aos dois anos de idade, e de pai aos dez. Sem direito à herança, foi criado por uma tia em Vila Real, e depois por irmã mais velha, e educado pelos padres. Sendo assim, é natural que ficasse com um espírito contraditório e tivesse um carácter revoltado, irreverente, por vezes irreflectido. Casou com Joaquina Pereira França, aos 15 anos, um amor prematuro que depressa se desfez. Vai para o Porto, matricula-se na Escola Médica, mas faz uma vida de boémio e acaba por desistir. Regressa a Vila Real e enamorou-se de Patrícia Emília de Barros, com quem foge, acabando os dois amantes por serem presos. Tem de começar a trabalhar e começa a fazer jornalismo e a escrever livros. Morre-lhe a primeira mulher e a primeira filha, nada da segunda união. Porém, a sua grande paixão iria ser com Ana Plácido, de tal modo, que quando ela casou com um brasileiro, teve uma crise de misticismo e entrou para o seminário. Mas esta vocação foi passageira, depressa saiu e reincidiu nesta paixão, acabando por seduzir a senhora, que fugiu para junto dele. Ela acaba por ir parar a um convento e ele à prisão, na cidade do Porto. Julgado, foi absolvido do crime de adultério por José Maria Teixeira de Queiroz, por coincidência, pai de Eça de Queiroz. Em 1846 esteve na Revolução de Maria da Fonte. Politicamente balanceava-se entre os legitimistas e os liberais. Em 1869 recebeu a comenda de Carlos III de Espanha, e em 1885, foi-lhe concedido o título de Visconde de Correia Botelho. Teve filhos de mais do que uma mulher, uma vida muito agitado, cujas peripécias caudalosas, não dá para aqui narrar todas. Em 1 de Junho de 1890, com vários desgostos familiares a atormentá-lo, sofrendo de sífilis e num estado de cegueira irrecuperável, suicidou-se com um tiro de revólver na têmpora direita. Mas nem isto lhe correu bem, não morreu logo, ficou em coma, demorou ainda umas horas a agonizar, paz ao seu génio.  

A obra
            A obra de Camilo é muito extensa, ele foi entre nós o primeiro escritor a fazer desta actividade a sua profissão. Escreveu mais de 260 obras, entre as quais mais de 55 romances ou novelas. Mas antes disso foi jornalista, crítico, poeta, historiador, tradutor, escreveu ensaios, biografias, peças de teatro e muitas cartas. Era uma alma impetuosa e apaixonada, um romântico com várias janelas para o realismo, que ali vinha.
            Em virtude de os acidentes dolorosos por que passou, a sua obra acabou por reflectir a sua vida, daí, ele incidir em temas relacionados com os males da orfandade, nos dilemas da bastardia, então frequente, no confronto entre a paixão e as convenções sociais, no empolamento das intrincadas relações sociais e morais daquela época. Há uma raiz cristã de que não consegue desapossar-se, ainda que paire na sua obra frequentemente um fluxo de anticlericalismo mordaz. Com o tempo acabou por mergulhar no cepticismo.
            Camilo Castelo Branco é um romântico, mas digamos, que sui generis, porque, entranhando-se na sociedade do seu tempo, que conhecia bem, no ambiente político que o cercava, acabou por dar da vida uma imagem um tanto mais próxima da realidade. É bem prova disto, o presente livro. A Queda de uma Anjo descreve algumas paixões arrebatadas, mas as suas personagens começam a evoluir no sentido prático das coisas, a sua acção decorre num ambiente já mais racional. Repare-se que Calisto Elói acaba por passar do Partido Legitimista para o Partido Liberal, esteve em Paris, deixou-se seduzir pelos alvores da civilização, divorciou-se para se juntar a Ifigénia, adaptou-se portanto aos tempos modernos, e Teodora refez a vida com outro homem.
            A obra de Camilo é tão vasta, que, na hipótese de não pegar nela por gigantesca, se aconselharia pelo menos a leitura de: Mistérios de Lisboa, 1854; A Filha do Arcediago, 1855; Onde está a Felicidade?, 1856; O Romance dum Homem Rico, 1861; Amor de Perdição, a sua obra mais famosa, 1862; Memórias do Cárcere, 1862; O Bem e o Mal, 1863; Vinte Horas de Liteira, 1864; A Queda dum Anjo, 1865; A Doida do Candal, 1867; O Retrato de Ricardina, 1868; A Mulher Fatal, 1870; O Regicida, 1874; Novelas do Minho, 1875-1877; Eusébio Macário, 1879; A Brasileira de Prazins, 1882.

Breve sinopse do romance
            Calisto Elói de Silos Benevides de Barbuda, casou-se por interesse com Teodora Barbuda de Figueiroa, são ambos oriundos de boas famílias e estão a viver em Caçarelos, Miranda. Meteu-se na política, chegando a ser presidente da câmara por um dia, já que a vereação não aprovou o regímen anacrónico que propunha. Pessoas influentes da terra aconselham-no a candidatar-se a deputado ao Parlamento, para o qual foi eleito, para isso servia. É um homem ainda com o pensamento do Antigo Regime, que prezava os clássicos e a tradição, na área do Partido Legitimista, herdeiro do absolutismo.
            Em Lisboa tenta instalar-se em Alfama, ainda a pensar em encontrar palácios grandiosos relatados em livros antigos, que o terramoto de 1755, entretanto fizera ruir. É apresentado aos deputados pelo abade de Estevães e inteira-se das lides parlamentares. No parlamento vai procurar baixar os impostos, combater os luxos, defender a língua e os costumes antigos. Tem a contrapô-lo o Dr. Libório de Meireles, homem mais actualizado, do partido liberal, mas com uma linguagem rebuscada, que não consegue convencer ninguém.
            Em Lisboa faz alguma vida social e encontra D. Adelaide, com quem joga à sueca, emparceirado, no salão do desembargador Sarmento. Aproveitando-se desta familiaridade, aquela senhora, que tinha um noivo arredio, pede-lhe a sua intervenção para dissuadir a sua irmã Catarina de trair o marido. Ele lá vai dar conta do recado, falando com os dois, e convencendo o amante, D. Bruno de Mascarenhas, a ir até Paris. D. Adelaide manifestou-se muito grata a Calisto, que descobriu que até ali não sabia o que era o amor.
            Ele chega-lhe a dedicar uns versos, mas esta relação não resulta, visto que o pai de Adelaide, para impedir qualquer paixão mais nefasta, a manda certo dia para Campolide. Entretanto, é apresentada a Calisto uma bela senhora brasileira, Ifigénia, viúva de um general, que, ainda intitulando-se ser sua prima afastada, lhe pede que obtenha uma tença, por feitos do seu marido. Esta relação amorosa cresce rapidamente, passam por Sintra, onde ela é assediada. Os dois são vigiados a mando da mulher, mas ele está tomado de amores pela brasileira, e acaba por lhe pôr casa em Lisboa.
            Teodora estranha a sua longa estadia em Lisboa sem vir a Caçarelhos, e mais ainda o não lhe ter respondido a três cartas. Calisto era um “anjo”, e está a sofrer um grande problema de consciência, contudo, a paixão sobrepõe-se à razão, não é sensível aos apelos da mulher, que ainda o ama. Há quem alerte Teodora para algum feitiço que mulher mundana lhe tenha por lá feito, mas ela recusa-se a acreditar em tal calúnia, e manda a Lisboa o mestre-escola, Brás Lobato, certificar-se. Ele lá foi, e, dando com ele, verificou que estava mudado, não só nas ideias como na vestimenta, comprovando que andava agora com outra mulher.
            Lá regressa a Caçarelhos a dar conta à morgada das suas diligências, mas Teodora não se resigna, ela quer recuperar o seu homem. Quer ir ela própria a Lisboa, é, porém, dissuadida pelo mestre-escola, que a aconselha a mandar lá um primo, Lopo de Gamboa. Este está falho de dinheiro, e sonha há muito com a morgada, a quem confessa uma paixão antiga, mas ela não desiste do seu homem, quer ir mesmo a Lisboa recuperá-lo. Vendo as coisas a complicarem-se, para evitar qualquer surpresa, Calisto regressa a Caçarelos. Ali, Teodora tenta por todos os meios manter aquele casamento, tem choros e mesmo espasmos, mas ele está mudado, ela já o consegue convencer, e ele começa a recolher dívidas de lavradores, a reunir dinheiros, e, depois de mais uma discussão diz que vai regressar a Lisboa, não pára lá mais de 48 horas.
            Contudo, nem com o vexame que sofrera Teodora desiste de Calisto, quer ir a Lisboa demovê-lo daquela loucura. O primo, Lopo de Gamboa, que tinha interesse nela, não a convence a desistir. E para que o propósito dela falhe, avisa hipocritamente o primo Calisto que já a não consegue deter mais em Caçarelhos, e que ela vai seguir muito em breve para Lisboa. Ao saber disto, o deputado Calisto, para evitar maiores escândalos, que já se começavam a alastrar aos teatros e aos salões, pede uma licença à câmara de deputados e vai para Paris com Ifigénia. Quando a morgada chega a Lisboa já não dá com ele nem com a amante. O resto fica por dizer. É ler o livro.

Personagens principais
            Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda: o protagonista da novela, morgado de Agra de Freimas, defensor dos bons costumes, da língua e cultura do Portugal Antigo, que Lisboa vai transformar.
            Teodora: esposa de Calisto, morgada, mulher provinciana.
            Dr. Libório de Meireles: parlamentar do Porto, liberal mas balofo.
            Abade de Estevães: clérigo que apresenta Calisto aos deputados.
            Ifigénia: viúva do general Ponce de Leão, amante de Calisto.
            Brás Lobato: mestre-escola da confiança de Teodora.
\           D. Catarina Sarmento: que desiste de adultério a conselho de Calisto.
            D. Adelaide: irmã de Catarina, que despertou o amor em Calisto.

Algumas conclusões
            Este romance está escrito numa linguagem vernácula de diversas roupagens, é rural e urbano, recorre a muitos termos em uso no tempo, hoje menos utilizados, como pipilar (piar), hemistíquio (metade de um verso alexandrino), gasofélico (irónico), sandio (insano), parcel (escolho), acróstico (composição poética), apostema (incha), e muitos outros, que algumas personagens usam para darem prova da sua “subida” cultura. Tem muitas citações em Latim, em uso na época, e frequentes referências aos autores clássicos, que eram a predilecção de Calisto Elói, alguns mal emparelhados, a revelar a falsa erudição deste, e mesmo dos primeiros grandes cultores da Língua Portuguesa, por vezes deslocados, mal compreendidos.
            A importância deste livro resulta em fazer a ponte entre os legitimistas (absolutistas) e os liberais, entre o passado e o presente; entre: o romantismo, que prolifera em muitas partes deste romance, detectado no sentimentalismo exaltado de algumas das suas personagens, no exacerbado culto do nacionalismo e medievalismo; e o realismo, que começa a despontar noutras, e mais para o fim, com as personagens a terem um comportamento mais frio, mais objectivo, a interessarem-se pela contemporaneidade. A própria narração torna-se mais factual. A queda do “anjo”, no fundo é esta metamorfose, como diz o autor na conclusão: Na qualidade de anjo, Calisto, sem dúvida, seria mais feliz; mas na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a vida. Pese embora o seu temperamento e impetuoso e apaixonado, Camilo considerava-se um escritor acima das escolas, chegou a ridicularizar o realismo no prefácio de Eusébio Macário, pois, ainda que sendo um espírito romântico, sentia-se livre para seguir qualquer uma delas.
            Por outro lado este romance (seja novela) constitui uma preciosa sátira política e social ao Portugal depois da Regeneração, ridicularizando os antigos absolutistas, tradicionalistas, legitimistas, na sua miopia em ver mudar as coisas em plena revolução industrial, ainda amarrados a velhos preconceitos, a relações sociais obsoletas, ridículas já naquele tempo, e ao mesmo tempo os novos liberais, sedentos de poder, já a cindirem-se, vazios e oportunistas, com os vícios burgueses da nova classe que se estava a formar, com uma cultura balofa, criando novas assimetrias, que iriam predominar até aos dias de hoje. Camilo parece divertir-se ao escrever este romance, recordemos aquela discussão entre Calisto e o Conde de Reguengo, em que, depois daquele de ter apregoado a sua estirpe nobre, este o adverte que ele procede de um filho natural, tem na sua origem um “coito danado”. O próprio nome do protagonista, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, é exagerado e burlesco. Algumas descrições são anedóticas, deslocadas, asininas. A Queda de Um Anjo é um romance de transição, bem dentro da sociedade do seu tempo, que devemos ler com muito interesse.

Martz Inura, 6 de Maio de 2015

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