VITORINO NEMÉSIO








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VITORINO NEMÉSIO
Mau Tempo no Canal
Análise muito interessante de João Miguel Fernandes Jorge
Relógio D`Água Editores (2014)

O HOMEM
            Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu na Praia da Vitória (Ilha Terceira) em 19 de Dezembro de 1901, e faleceu em Lisboa, em 20 de Fevereiro de 1978. Foi poeta, prosador, romancista, ensaísta e intelectual de grande craveira. No fim da vida conhecê-lo na televisão como homem calmo e cordial, com grande poder de expressão, vocacionado para as letras, mas não era isso o que se deduzia dele na juventude, quando dava mostras de ser um rebelde, pouco aplicado, até parecia Leão Tolstói na juventude. Foi expulso do Liceu de Angra de Heroísmo e só concluiu o curso liceal em 1918, como aluno externo, e apenas com dez valores. No liceu só gostou do professor de História. Era aberto às novas ideias, na Horta tinha participado em reuniões anarco-sindicalistas e republicanas, e no âmbito literário. Por esta altura, a findar a Primeira Guerra Mundial, a cidade da Horta era muito procurada por embarcações estrangeiras, havia grande comércio marítimo, as companhias dos Cabos Telégrafos Submarinos tinham ali um nó no Atlântico, a vida à noite era muito animada. Em 1919 ofereceu-se para prestar serviço militar, o que lhe permitiu vir para a Metrópole. Tira em Coimbra mais alguns disciplinas do secundário para lhe dar porventura acesso a outros cursos universitários, e, em 1921, matricula-se no curso de Direito. Não gosta do curso e três anos depois muda-se para Históricas e Filosóficas, e em 1925 para Filologia Românica, anda à procura da sua vocação. Em 1930 a sua vida toma novo rumo, transfere-se para a Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu o curso de Filologia Românica com elevada classificação, e pouco depois começava a leccionar. Em 1934 doutorou-se em Lisboa, na Faculdade de Letras, com o célebre ensaio A Mocidade de Alexandre Herculano. Ente 1937 e 1939 deu aulas na Bélgica, e em 1958 no Brasil. Tornou-se muito conhecido quando entre 1969 e 1975 apresentou na televisão o programa “Se bem me lembro”, e em 1976 foi director por algum tempo do jornal, O Dia. Recebeu em 1944 o Prémio Ricardo Malheiro pelo romance Mau Tempo no Canal, em 1965 o Prémio Nacional de Literatura, e em 1971 o Prémio Montaigne. Teve uma vida muito intensa e fructuosa, mas porventura inquieta e esforçada, quando faleceu pediu para ser enterrado no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra, mas que os sinos, em vez de tocarem o dobre a finados tocassem à aleluia.



A OBRA
            A obra do Vitorino Nemésio é constituída pela poesia, pelos romances, pelos ensaios e críticas, pelas crónicas, de que se vão citar:
                        Na poesia 3, de 6:
            O Bicho Harmonioso (1938), o primeiro a ser publicado
            Eu, Comovido a Oeste (1940)
            Caderno de Caligraphia e poemas a Magda (2003), póstumos
                        Na ficção a totalidade das suas obras:
            Paço de Milhafre (1924)
            Varanda de Pilatos (1926
            Mau Tempo no Canal (1944)
            Quatro prisões debaixo de armas (1971)
                        No ensaio e crítica só se citam 3, de 5:
            A Mocidade de Alexandre (1932)
            Relações Francesas do Romantismo Português (1936)
            Conhecimento de Poesia (1958)


ROMANCE AQUI ANALISADO Mau Tempo no Canal

            TEMPO E ESPAÇO ONDE SE LOCALIZA
            O romance decorre de 1917 a 1919, portanto, num período em que Vitorino Nemésio estava nos Açores. A acção tem lugar nas ilhas do Faial, do Pico e São Jorge, estendendo-se à Terceira e a Lisboa.

 
As três ilhas em que a acção incide mais

O canal a que se refere o autor é entre a Horta e a Madalena

Mas há outro canal maior, o de S. Jorge, entre as ilhas de Pico e Faial, e a ilha do mesmo nome

Urzelina é uma freguesia da costa sul da Ilha de São Jorge, um pouco acima de Calheta

A Ilha Terceira fica um pouco acima da Ilha de São Jorge



            PERSONAGENS PRINCIPAIS (AQUI INTEGRADAS EM FAMÍLIAS)

            Família Durmo e Clarks
            Diogo Dulmo: Homem valdevinos que engana a mulher e negligencia a administração dos seus bens, pai de Margarida, proveniente de família origem holandesa
          D. Catarina Clark: Mãe de Margarida, senhora pouco presente na vida do marido e na educação da filha, com origem inglesa
            Margarida Clark Dulmo: A personagem principal do romance, filha de Diogo Dulmo e D. Catarina Clark, das moças mais lindas do Faial, com olhos azuis sobre arcadas fortes. É uma jovem muito levantada, a quem o pai bateu por namorar com João Garcia. Os pais têm nome na região e algum cariz aristocrático, mas estão falidos. Ela é muito disputada, até o seu tio tinha ideias nela. Depois da morte deste, sem saber para onde se voltar casa com André Barreto, mas é uma segunda escolha.
            Roberto Clark: Tio de Margarida pelo lado da mãe, guarda-livros em Londres. Homem dos quarenta anos, muito sociável e generoso, com grande entusiasmo pela vida das ilhas. Promete levar Margarida para Londres e até casar com ela. Tenta socorrer da peste Manuel Bana, velho criado da família, e vem ele a morrer dela.
Pedro e Cecília: irmãos de Margarida
            Mateus Dulmo: Tio de Margarida
            Maria das Angústias: Governanta dos Dulmos
            Manuel Bana: Velho criado dos Dulmos
            Corina e Francisca Peters: Primas de Margarida
            Otília: A costureira da família
            Chica: Criada da cozinha dos Dulmos

            Família Garcia
            Januário: Solicitador afirmado da cidade da Horta, endinheirado, sagaz, mas de origem humilde, que procura casar bem o filho, João Garcia
         João Garcia: Estudante distinto e futuro oficial miliciano no exército, filho de Januário, educado, não muito audaz, que tenta namorar Margarida, e a quem a família rejeita, por ser filho de gente modesta. Vem ao fim a casar com Laura
          Emília Faria: Mulher de Januário e mãe de João Garcia, que foi infiel ao marido com o capitão Mota, e que aquele expulsa de casa, tendo o filho nove anos. Morre de peste
            Ângelo: Tio de João Garcia
            Jacinto: Tio de João Garcia, farmacêutico na cidade
            Maria Florinda: Avó de João Garcia
            Ladeira: Escrevente de Januário
            José Mónica: Cocheiro de Januário
            Tenente Espínola: Amigo de João Garcia
            Damião Serpa: Amigo de João Garcia que ao fim tem uma conversa com Margarida
            Os Avelares: Credores de Diogo Dulmo, e clientes de Januário

Família Barreto
            Caetano Barreto: Barão de Urzelina, pai de André Barreto, homem voltado para a produção de leite, que procura modernizar
            D. Angélica: Senhora de fino trato, mãe de André Barreto, que recebe quase como princesa Margarida Dulmo, quando esta foi parar a sua casa
            André Barreto: Jovem rico, filho de Caetano Barreto e de D. Angélica, que, vindo da Ilha de S. Jorge em visita à cidade da Horta, corteja Margarida, que, após algumas desilusões acaba por casar com ele.

            Grupo dos baleeiros do Pico
            Tio Amaro de Mirateca: Trancador de baleias no Arioche, como ali chamam ao Oceano Árctico, pessoa pitoresca, que reproduz o falar mais castiço dos Açores, a que mistura termos ingleses da pesca.
            João da Cezílha: Baleeiro
            O Intrevadinho: Deficiente físico, filho do Tio Amaro
O Tromba: O vigia da baleia na ilha do Pico
Josezinho da D. Ana: Vendeiro do sítio
Silveirinha: Mestre-escola do sítio

O canal entre a Ilha do Pico e do Faial


            RESUMO DO LIVRO
            Este romance é muito abrangente, está tão voltado para a sociedade, que o enredo é sufocado pela vivência daquele povo, e não nos vamos alongar muito nele, basta umas noções que nos dêem um fio condutor para lermos o livro. Ali se descreve a história de um amor entre Margarida Clark Dulmo, de uma família com pretensões aristocráticas e origens estrangeiras, e de João Garcia, de uma família nova-rica, que antes de ir para o Continente tirar o curso de oficial miliciano, então dado em Lisboa, na Junqueira, se vai despedir dela a sua casa às escondidas dos pais. O pai dela, Diogo Dulmo, dá por aquele encontro, que vai contra a sua vontade, já que entre as duas famílias havia uma antiga dívida a saldar, que deu disputa judicial, e quando a filha chega a casa bate-lhe barbaramente, proibindo-lhe aquele namoro. 
            A situação fica assim, confusa, Margarida faz uma visita aos Peters, onde conversa com as suas primas, vive naquela solidão, sob a ameaça do pai, um tanto revoltada. Surge então a peste nas ilhas, que começou a dizimar alguns habitantes, e alarma a população. Morre de peste D. Emília, mãe de João Garcia, separada do pai, Januário. Margarida escreve uma carta a João Garcia, em Lisboa a tirar o curso de oficial miliciano, a comunicar o facto. Esta separação tinha a ver com o adultério que ela praticou com o capitão Mota. Surge, entretanto, na cidade da Horta, Robert Clark, nos quarenta anos, tio de Margarida, muito aberto e cordial, cheio de iniciativas, oferecendo-se para arranjar emprego à sobrinha em Londres, chegando a haver a hipótese de casar com ela. 
            A habitar um quarto alugado em Lisboa, João Garcia sentiu muito a morte da mãe, de quem foi separado aos nove anos, e escreve uma carta de amor a Margarida, a que ela respondeu de um modo abrupto, dizendo que já tinha noivo. Ele fica confuso, mas não persiste em continuar com aquele namoro. Ela está a ser pressionada para o rejeitar, reage de um modo contraditório, quase provocante, ele é pouco atiradiço para o gosto dela, e a relação enfraquece. Pouco tempo depois, no Real Clube Faialense da cidade da Horta, onde convive a gente jovem, há um encontro numa mesa de cartas do tenente Espínola, o jovem oficial, João Garcia, já regressado à ilha, André Barreto e a jovem Laura. Esta é muito espevitada e faz-se a João Garcia.
            Segue-se a Semana Santa, com as festividades próprias das ilhas, voltadas para a religiosidade, Margarida anda um tanto solta, sem saber o que fazer à sua vida. Januário, pai de João Garcia, tem uma conversa com Honório, pai de Laura, esta parece vir a ser herdeira de D. Carolina Amélia, e estabelece-se uma certa familiaridade entre os dois. Robert Clark não para, e anda agora entusiasmado com os baleeiros do Pico, actividade que lhe merece muito interesse. Com as suas novas obrigações de oficial do exército e novo convívio, João Garcia quase esquece Margarida. Dá-se então um fogo numa das casas do solicitador Januário Garcia, mas ele tem uma apólice de seguro que cobre todos os prejuízos. 
            Por esta altura, Manuel Bana, criado dos Dulmos, cai subitamente doente com a peste, e, quando pensa que vai morrer, Robert Clark e Margarida vão em seu socorro tentar valer-lhe, embora o risco de serem contagiados seja grande. Com grande generosidade alimentam-no e tratam-no o melhor que podem. Eles estão na Ilha do Pico, o pai de Margarida está para tomar uma lancha para a vila da Madalena para ver como ela, mas há mau tempo no canal. Manuel Bana com a sua ajuda lá vai recuperando da doença. Ela parece não ter muito amor à vida, e, cheia de espírito juvenil arrisca-se a ir à pesca com os baleeiros em mares revoltos, e tem de dormir de emergência com eles numa caverna da Ilha do Pico.
            Meia fugida de si, acaba por ir parar à Ilha de S. Jorge, a casa dos Barretos: Caetano Barreto, barão de Urzelina, e D. Angélica, baronesa de Urzelino. Estes, possuem ali uma grande quinta e são grandes produtores de leite, já com métodos modernos, trazidos por um holandês. A baronesa gosta muito de Margarida, parece pressentir que ela vai casar com o filho, André. Margarida está algum tempo em Urzelino a pretexto do tempo não facilitar a travessia do canal de S. Jorge, ainda quer visitar a vila da Calheta (pequena baía, pequena angra), e só regressa a casa depois de receber um telegrama a comunicar que o tio Roberto está muito doente. Foi ali tratada como uma princesa. Quando chega à cidade da Horta o tio tinha morrido devido à peste, para grande consternação de todos. Manuel Bana resistiu, mas ele foi-se em cinco dias.
            Há por fim, já no epílogo, com um pequeno salto no espaço e no tempo, uma grande tourada na Ilha Terceira, na cidade de Angra do Heroísmo, em que Margarida vai assistir, já casada com André Barreto. As touradas eram muito festivas, porque não havia grande espectáculos nas ilhas, e as receitas revertiam para as casas de caridade da cidade. Ela segue em primeira classe no navio San Miguel e tem uma conversa com Damião Serpa, amigo de João Garcia, a quem contou que ele casara com Laura, mas que só a tinha amado a ela. Margarida desgostosa, pouco depois deita o anel de noivado ao mar, dizendo ao marido que o deixara cair. Este não a repreende, está feliz por ter casado com ela, comprará outro. Ela mostra-se alegre e exuberante, mas interiormente está triste. O sogro, Caetano Barreto, acha-a levantada demais, não gostou da exuberância dela na tourada, mas a baronesa, D. Angélica, nem quer ouvir falar disso, ela representa para si a filha que nunca teve, e diz que ela sofreu muito com o pai valdevinos, a mãe pouco atilada e a avó doente, que é uma excelente pessoa.

Pormenor da cidade da Horta


            COMENTÁRIO GERAL
            O romance faz referências geográficas que nem todos conhecem, a começar pelo canal, entre a Madalena e a Horta, de que muitos leitores não fazem ideia do que seja, e não aparece logo clarificada. Há lugares que é conveniente precisar para termos a noção de onde estamos, e não nos sentirmos perdidos, como Pedra Burra (casa de vinhos dos Dulmos), Quinta do Pasteleiro (pertença dos Dulmos), Quinta da Ribeira das Flamengas (pertença do Januário). Vitorino Nemésio usa termos como relha (arado), bagacina (fragmentos de lava), tagatés (carícias), caçoar (troçar), (abluído (despossuído), conchavo (acordo), picarota (cume, do Pico), tinote (juízo), caipora (infelicidade), fandulhas (largas), que a maioria dos leitores desconhece, fazendo com que às vezes se tenha alguma dificuldade em ler o livro, ainda que este vocabulário seja enriquecedor. O livro não é dos mais fáceis de ler, mas também não é vulgar, reduzido a uma história de amor banal, tem muitas outras variáveis, um povo por trás de si.
            Um insular tende a cultivar a interioridade. A vida social está aqui muito marcada por vivências antigas, por preconceitos, pela religiosidade do povo. A sociedade, apesar de não haver ali grandes fortunas, é ainda assim muito estratificada, vai do baleeiro ao barão. E vive-se segundo três patamares, como se houvesse três Açores: existem os residentes açorianos, que são o foco principal da acção; mas também os açorianos emigrados pelo mundo, com os quais se sentem ligados por relações muito fortes, e que ainda podem voltar; e ainda os açorianos falecidos, as gerações queridas que já partiram, com muito peso no consciente colectivo daquela gente. Vitorino Nemésio toca em todos os estratos da população, dissecando os seus anseios, os seus problemas, retratando-nos um povo sofrido, exilado do mundo, que luta arduamente para a sobrevivência, assim como assiste empolgado às touradas, aceita a morte das baleias, que encara como natural, necessária à sua sobrevivência. 
            Na maior parte do livro o autor emprega uma linguagem escorreita e sóbria, com um acentuado pendor clássico. Viveu aquele período, as suas descrições são pormenorizadas e intensas, têm um colorido autobiográfico. Aqui e ali cobre o romance de erudição das elites, citando nomes da música como Bach, Haendel, Chopin, Debussy, e aos seus 37 capítulos escolhe designações como nocturnos, barcarola, pastoral, andante, pòi allegro, non troppo, ou chama à presença o nome de escritores como Camões, Almeida Garrett, Antero Quental, Oliveira Martins, Byron, Tolstói, Herculano, Oncken ou George Sand. Porém, de vez em quando sai dessa erudição para mergulhar na cultura popular, dos seres e fazeres, e chama à narrativa os baleeiros da ilha do Pico, reconstruindo o seu falar pitoresco, às vezes quase incompreensível, mas que falado por gente boa chega a ter o sabor de verdadeira poesia, que ele quis fixar neste livro para a posteridade.
            Vitorino Nemésio usa referências históricas à presença de D. Pedro IV na Horta, e à fundação da cidade por um tal Huertere, cita os Anais de Drumond –, capta bem a insularidade dos ilhéus, a alma dos Açores, em que cada ilha tem vida própria, interioriza a sua distância, defrontando-se com um mundo hostil, pois se o chão é propício aos terramotos, o oceano fustiga com tempestades, os ares são palco de grandes temporais, e ao cimo da terra há pestes e fogos, porém, ainda assim é a sua casa-mãe, viçosa e luxuriante, que desde sempre lhes deu abrigo. Segundo José Martins Garcia o livro é “o remate de toda a idiossincrasia açoriana”. Na verdade, há bem delineado nas suas páginas a noção dos seus acanhados limites, o muro ou caminho que é simultaneamente o oceano, uma secreta solidão a cercar as pessoas, muita vida insular. Mau Tempo no Canal é um grande romance.

17/3/2018
Martz Inura





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