MARGUERITE YOURCENAR





MARGUERITE YOURCENAR
Memórias de Adriano
TRADUÇÃO DE MARIA LAMAS
Ulisseia (2008) (262 p.)
Romance





       Antes de escrever criticamente sobre as Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, convém tecer algumas considerações sobre três aspectos, ainda que de modo sintético, já que estão muito glosados por aí no Mundo Virtual, e são secundários, embora importantes para a compreensão do livro. São eles: o imperador, a autora e a síntese da obra.
       O imperador Adriano (76-138 d. C.) chegou ao trono em 117, dando continuidade a uma série de cinco grandes imperadores da dinastia Antonina, iniciada em Nerva, que vai ser mal sucedida por Comodus. Nascido em Espanha (Itálica, próximo de Sevilha) de uma família nobre de origem romana, perdeu o seu pai aos nove anos, sendo adoptado por Trajano, seu primo.  Ainda jovem recebeu funções no exército imperial, onde se veio a destacar contra os Partos, e foi mais tarde nomeado para cargos importantes, de que se destaca o de governador da Síria. Cultivou a cultura grega, que admirava, favorecendo o helenismo: está no embrião do Império Bizantino. Era casado com Sabina, de quem vivia afastado, embora lhe mantivesse a dignidade para salvar as aparências, pois privilegiava as ligações homossexuais. Herdou um império, alargado por Trajano à sua máxima extensão, que resolveu pacificar em vez de expandir. Politicamente cometeu um ou outro exagero: mandou eliminar os seus opositores principais (expansionistas); tratou com severidade os cristãos, que considerava uma seita de fanáticos; e usou de extrema violência contra os judeus, que dizia serem dogmáticos e arrogantes. Foi ele que mandou apagar o nome de Israel nos mapas do império e o substituiu pelo da Palestina. Tinha, contudo, o seu lado humanista: amante da cultura e da arte, mandou construir o Panteão de Roma, bem como o Castelo de Santo Ângelo, a sua villa em Tivoli, e muitos outros grandes monumentos, que se perderam; criou bibliotecas, que considerava hospitais da alma; promoveu a escrita de livros, sobretudo de história; deu mais direitos às mulheres, que passaram a ter acesso às heranças; suavizou o tratamento dos escravos, desencorajando os maus tratos e pondo limitações à sua venda, que ignorava a separação dos elementos da mesma família; humanizou a justiça, proibindo a violência gratuita na aplicação da pena de morte; e fixou o Direito, promulgando o Édito Perpétuo.
       Marguerite Yourcenar (1903-1987), órfã de mãe a partir do parto, foi criada pelo pai, que era bissexual. Ela própria viria a ter esta inclinação. Tendo-lhe sido ensinado o grego pelo seu progenitor, dedicou parte da sua vida à pesquisa histórica. Nasceu na Bélgica, mas viveu na França, de onde viria a emigrar para os Estados Unidos da América (Maine) para fugir à Segunda Guerra Mundial. Foi a primeira mulher a ser eleita membro da Academia Francesa. Tem muitas outras obras publicadas. Há um certo paralelo entre a sua vida e a do imperador Adriano, Talvez ela se identificasse um pouco com ele. Como é compreensível, revelou sempre pouco de si própria.
       O romance Memórias de Adriano demorou mais de duas décadas a ser escrito e é fruto de várias tentativas, que ela foi abandonando ao longo do tempo por as achar imaturas, inapropriadas, ou inconseguidas. Houve um período em que chegou a ter vergonha de estar a escrever uma tal obra. É composto de seis partes, um prólogo e um epílogo, para além de apontamentos. Para se aperceber melhor da obra convém ler esses Apontamentos, que nos dão uma ideia esclarecedora da sua tormentosa elaboração.
       Analisemos agora o livro, que consta fundamentalmente de uma longa carta. Nada de mais basilar. Na primeira parte, Animula vagula blandula,  o imperador Adriano, já gravemente doente, ao ver aproximar-se a morte dá-nos a conhecer o destinatário da sua carta, Marco Aurélio, futuro herdeiro do império, ainda demasiado jovem, que ele faz preceder por Antonino, um cônsul da sua confiança: e nela como se apresenta de corpo e alma ao leitor. 
       Na segunda parte, Varius multiplex multiformis, fala-nos da família, sobretudo do avô e do pai, numa quase ausência do elemento materno, embora fale de mulheres, em que se incluiu a sua, a imperatriz Sabina, que trata com respeito, mas alguma distanciação. Volta-se a seguir para os problemas da expansão do império, mais directamente focalizado na Ásia, recorda Trajano e fala da sucessão deste, que teve muita mediação ou mesmo intervenção de Plotina, mulher de Trajano (que sempre o viu como a um filho, embora não venha claramente expresso no livro).
       Na terceira parte, Tellus stabila, reflecte sobre a problemática da administração do império, bem como da sua pacificação, nem sempre fácil, nalguns territórios conseguida à custa da construção de longas muralhas. Fala da sede de poder dos seus inimigos, que teve sempre bem controlados até ao fim da sua vida; da filosofia grega, que admirava e cultivava; dos direitos da mulher, que alargou; da escravatura, que humanizou; da astrologia, a que dava bastante importância; da estatuária, que favoreceu.
       A quarta parte, Saeculum aureum, é dedicada em exclusivo a Antínoo, a paixão da sua vida: um jovem, que talvez não suportando o que ele esperava de si, se suicida no Egipto, onde vai ser sepultado segundo o rito da região. No local onde morreu é fundada uma cidade com o seu nome, e ele próprio é deificado num templo. O resto da sua vida passou-o a encomendar estátuas de Antínoo, como para o ressuscitar. Elas nunca o conseguem representar na sua exacta beleza, mas ele não desiste de as mandar esculpir.
       Na quinta parte, Disciplina augusta, ele volta a expressar a enorme perda que representou para si a morte de Antínoo, de todo insubstituível. Passa pelo tema da guerra e fala da campanha contra os judeus, que demorou três anos, desgastou o exército  e conduziu à criação da Palestina. Debruça-se mais uma vez sobre a sua sucessão, já que, tendo adoptado Lúcio para seu sucessor, este sucumbiu à doença.
       A sexta parte, Patientia, começa pela leitura de uma carta que recebe do governador da Arménia, referindo uma situação particular no império, como para dar sentido à vida do imperador. Mas a sua doença agrava-se, é dolorosa e insuportável. Ele não se quer suicidar, não se quer dar a si próprio esse direito,  embora o tenha autorizado a outros. Isto pressupunha uma fuga, que ele não admitia aos seus soldados. Pede a um seu servo mais chegado que o mate, mas ele julga-o imortal e suicida-se; pede a seguir a um seu médico, mas ele, sujeito ao juramento hipocrático, envenena-se. Face a estas recusas resolve aceitar o sacrifício da vida como uma imensa paciência.
       Memórias de Adriano é um livro extraordinário, escrito com grande intensidade, indo até ao interior mais insondável de uma alma complexa, como é a daquele imperador: um homem de grande experiência e assaz sabedoria, com um elevado sentido de  Estado, gerindo um império de muitas nações, que em grande parte visitou e pretende deixar pacificado; um homem dotado de uma enorme sensibilidade, curioso das coisas do mundo, mas também do seu mistério, das suas crenças, dos fundamentos da realidade mais profunda.
       Nos Apontamentos dá para ver todo o rigor, toda a devoção, toda a minúcia com que Marguerite Yourcenar foi reconstruindo a sua obra, adensada das variáveis com que se regula a vida, que para ela vão desde as físicas às psicológicas, incluindo as políticas, culturais, sociais, religiosas, não ignorando nem a arte nem a ciência. Ela tenta levar-nos até ao coração de um dos impérios mais marcantes da História, para ali nos deixar a vaguear, perplexos, na sua antiguidade tão pós-moderna.
       O romance foge aos padrões normais do romance histórico, porque está escrito na primeira pessoa, e na forma de uma infindável carta, em que ela vai tentar fazer ficção para refazer a História, já que desta época, onde aparentemente nada acontece, porque é um período de paz, não abundam os grandes acontecimentos (até na Bíblia não se perde muito tempo a falar do Paraíso). Dela, salvo a campanha contra Israel, resta sobretudo o espírito, a que a autora teve de recorrer essencialmente. Para isso consultou muitas fontes e repisou os lugares por onde Adriano terá andado. Tão entranhadamente a autora nos leva ao interior da sua história, que nós acreditamos nela, embora saibamos estar perante uma construção.
       Marguerite Yourcenar, conhecendo bem o processo da corrente de consciência, vai utilizar os mecanismo da memória, fazendo-nos recuar no tempo, entrar na mente de Adriano e comungar da sua clarividência, das suas dúvidas e certezas de homem  do dealbar do século II d. C. Assenta arraiais dentro dela e consegue-nos transmitir, ou melhor, fazer sentir a disciplina e o pragmatismo romanos, ao mesmo tempo que nos induz o refinamento e sapiência gregas.
     Trata-se de uma obra muito elaborada, que foi sendo escrita e reescrita durante mais de duas décadas, obrigando a uma pesquisa criteriosa e incessante, a uma análise preocupada dos acontecimentos e do comportamento humano daquela época, usando uma linguagem fluída, intimista, cheia de observações profundas, presente naquela carta: confissão bem sentida, bem pensada, por quem esteve bem dentro da História, e dela faz frequentemente Filosofia.
       Quase nada no livro é supérfluo, incipiente, desnecessário, quase tudo nele é essencial, tem relevado interesse, mantém um discurso fortemente apelativo: quer sobrevoe conteúdos aparentemente menores, quer nos remeta para factos históricos com influência na História do Mundo. Nele se retrata desde os egoísmos mais grosseiros, aos fins mais altruístas; desde os primarismos mais arcaicos, ao humanismo mais requintado; desde o ódio mais mesquinho, ao amor mais puro. É um livro tocante, capaz de despertar consciências, enriquecedor, para ler mais do que uma vez.
       Mas diga-se lá o melhor que houver a dizer sobre este livro, que a sua linguagem não é inovadora, a sua estrutura não é homogénea, nem sequer inédita, ainda que a abordagem do tema seja original, o seu estilo não é grandiloquente, não possui grandes aprofundamentos psicológicos, um rol imenso de frases lapidares. Recorre a um discurso bastante simples, na forma de uma carta, também não é muito volumoso. Mas então por que é que este romance é dos mais belos textos literários de sempre? É claro, pelo espírito preclaro, coerente e profundamente humano com que todo ele está eivado; pela forma envolvente em que faz a reconstrução de uma época, abrangendo quase toda a sua infinita complexidade, e de um modo altamente reflexivo, em que as palavras, tomadas de lucidez, conseguem dar um sopro de vida às pessoas, trazendo-as até nós, à iminência de lhes tocarmos.
      Adriano na sua carta, tirada do imaginário da autora, como que nos empresta os seus próprios olhos iluminados para nos transpor para o passado e ali vivenciarmos todo um século, num período em que os deuses pagãos estavam a ficar desacreditados o cristianismo ainda não se tinha imposto, situação um pouco análoga ao período do pós-guerra, que Marguerite Yourcenar estava a viver. Por aquela altura já se vivia sob o Império do Homem, mais centrado em si, liberto das amarras de deuses reguladores, limitadores, repressores, mas que tem a consciência da sua fragilidade e limitações, uma lucidez de quem procura resposta para as suas dúvidas infindáveis, evidente nas palavras de Adriano, que declara ao fechar do livro que «quer entrar na morte de olhos bem abertos». Sim, um livro extraordinário.
           30/12/2011  Martz Inura