ALBERT CAMUS






ALBERT CAMUS
A Peste
Tradução e Prefácio de Ersílio Cardodo
Editora Livros do Brasil (2008) (280 p.)
Colecção Nobel
 O HOMEM
     Albert Camus nasceu em 7 de Novembro de 1913, na Argélia, em Oran, então cidade francesa, e faleceu a 4 de Janeiro de 1960 num desastre de viação a caminho de Paris. Órfão de pai, morto na Primeira Grande Guerra, a mãe teve que o levar para Argel para a casa da sua avó materna, onde viveu num bairro operário, e teria sido tanoeiro como um tio, se os seus professores não tivessem visto nele dotes de inteligência e diligenciassem para que prosseguisse os estudos. Apesar da sua origem humilde, de ser um pied-noir, nem por isso se queixa deste período, em que foi criado num ambiente de liberdade, como um arbusto selvagem, furtando-se porventura a alguma opressão e aos preconceitos com que a maioria dos seres humanos são socializados na infância. Mais tarde conseguiu doutorar-se em Paris com uma tese sobre O Helenismo e o Cristianismo, mas por manifesta infelicidade foi acometido de tuberculose, não podendo exercer o professorado.  Pertenceu  à "Resistência Francesa", e durante algum tempo ao Partido Comunista.

A OBRA
     A obra de Camus é muito estudada. Quem quiser especular sobre este autor não lhe faltarão fontes, foi objecto de vários estudos, tema de muitas teses. O que se pretende aqui fazer é uma síntese inspiradora. Os seus romances não obras volumosas, grandes tratados de Psicologia Social, livros com novas matrizes linguísticas, não, são até livros pequenos. Ele também não mostrou tudo o que seria capaz, morrendo aos 40 anos de idade. Usa um estilo sintético, um discurso frio, por vezes como estivesse a fazer uma crónica, e nem sempre interligado, talvez por influência de Kafka. Porém, os seus livros contém em si mesmos uma moral, uma filosofia, expressa numa revolta latente, que faz com que se revistam de grande importância para a Literatura. Ele escreveu na França, e após o nazismo e o fascismo fazerem a sua aparição, ainda sob o efeito da Guerra Civil de Espanha, da Segunda Guerra Mundial, que abalaram o mundo e o deixaram num beco de irracionalidades, num certo vazio de ideias, sobretudo no Ocidente. E ele não era apenas um escritor, era um jornalista, um dramaturgo, um ensaísta, um filósofo, muito voltado para a sua época, cujos dilemas conhecia muito bem. As suas ideias, muito centradas no ser humano, tocadas pelo amor, com um sentido ético e preocupadas com a justiça são libertadoras. Foi-lhe atribuído o Prémio Nobel em 1957.

A FILOSOFIA
     A filosofia que o norteia, não sendo um sistema muito estruturado, assenta no absurdo que representa para si a vida, em que parece faltar um sentido coerente às coisas, onde o sofrimento excede o admissível e a injustiça paira ao nível do irracional. A este mundo absurdo ele vai contrapor a revolta, uma tomada de posição construtiva para harmonizar o mundo, de modo a torná-lo menos injusto, mais razoável. Uma revolta que implica uma maior mobilização pessoal, uma maior intervenção social. Este pensamento pode ser encontrado em A Peste em muitos dos seus diálogos.
     Ele quer um papel mais empenhado do ser humano na construção do mundo, liberto de ideias desligadas daquilo que é importante para a sua felicidade. Camus considera-se um "Não Crente", não acredita num Deus que não é verificável pelos seus sentidos, mas não será bem um ateu por inteiro, porque descrê fundamentalmente por ver o mundo abandonado à sua sorte, sem uma verdadeira Providência a regulá-lo. A inexistência de Deus é revelada pela Sua ausência, pela sua indiferença perante o sofrimento humano, perante o mal. A Bíblia para ele também não é uma fonte de conversão, pois ali é dado a conhecer um Deus cruel, caprichoso e vingativo. E nem Cristo o convence, pois para Camus, Ele é mais um inocente neste caos em que está mergulhado o mundo. O seu pensamento neste aspecto variou. Ele considerava que o mundo tal como o conhecíamos era "um escândalo de Deus". Bem lá no fundo era um revoltado contra o Seu mutismo: seria sobretudo um céptico.
     É considerado existencialista, então um sistema filosófico em afirmação, defendido pelo seu confrade, Sartre, com quem teve um relacionamento nem sempre amistoso. Mas ele próprio negou fazer parte desta corrente. Contudo, como com o seu pensamento pretende construir o Homem a partir de si próprio, um pouco à revelia da sua herança cultural, livre de preconceitos, é perceptível que se pretende realizar antes daquilo que queiram que ele seja, sente-se dono do seu destino, e assim, a existência precederá a essência.


 


UMA SÍNTESE DO LIVRO
     Deve esclarecer-se que se trata de uma ficção, pois, se é verdade que houve um surto de peste em Oran em 1948, ele remete-a para durante a guerra, pretendendo com isso atacar o nazismo que, qual peste, ocupou a França durante a guerra. É uma obra complementar de  outras, como ele mais tarde disse, e está carregada de grande simbolismo. Através da ficção ele tem mais liberdade para lhe dar o sentido que pretende, fazer dela uma alegoria à ocupação nazi. Oran é a França e a peste o exército nazi.
     O livro está dividido em cinco partes. Na primeira é apresentado o tema: na cidade de Oran, onde não havia aves nem estações do ano, começam a aparecer ratos mortos, que pouco depois desaparecem, surgindo a seguir os primeiros casos de peste. O Dr. Bernard Rieux, mais tarde revelado como o narrador do romance e uma das suas personagens mais interventiva, juntamente com o Dr. Castel estudam o caso. Este último, mais velho, é o primeiro a diagnosticar a doença, mas os dois vão ter que silenciar esta descoberta: as autoridades não querem alarmar a população. São introduzidas outras personagens importantes, como Joseph Grand, funcionário camarário que vive uma vida austera e anda a escrever um livro; Cottard, um indivíduo errático, com um passado duvidoso e uma actividade suspeita, instável emocionalmente; M. Othon, magistrado a quem morre um filho durante a peste; o presidente do município, que é demorado nas suas decisões, mas quem por fim declara o "Estado de Sítio" e encerra a cidade ao exterior.
     Na segunda parte, a cidade confronta-se realmente com a peste. As suas portas são fechadas, os transportes ferroviários paralisados, os navios desviados do seu porto, o correio proibido, resumindo-se ao envio de curtos telegramas. A população sente-se então prisioneira, a viver um exílio. Surge aqui mais uma personagem importante, a do Padre Paneloux, que faz uma prédica traduzindo o pensamento da Igreja, que atribui a peste a um castigo de Deus. Outra personagem pode ser destacada, é a de Raymond Lambert, um jornalista ocasionalmente em visita à cidade, que ali fica retido pela peste. Vai mais tarde tentar fugir através de Gonzales, mas por fim desiste para ajudar aquela gente, embora tenha deixado a mulher em Paris. Organizam-se então brigadas sanitárias, administrando-se um soro contra a doença.  As personagens tecem aqui algumas considerações filosóficas.
     Já na terceira parte, que ocorre já em Agosto, a peste está no seu auge. Aumentam as dificuldades de subsistência, recrudesce a violência, aumentam os saques. As pessoas, confundidas com a desgraça, enfrentam-na como podem, mas há desvios, actos de loucura. Algumas tentam a fuga, que é sustida pelas autoridades, que prendem alguns prevaricadores e fuzilam dois ladrões. Outras já vêem nos tumores a sua libertação. A peste tende a nivelar a todos por igual, atinge soldados, religiosos e prisioneiros. Aumenta o número de mortos diários e os funerais têm de ser abreviados. Nos cemitérios, tendo-se esgotados as campas e os jazigos, recorre-se a valas comuns. E por fim já nem há respeito pelos mortos, enterrando-se mulheres e homens, uns ao lado dos outros. Há longas filas em frente das lojas: as pessoas estão rendidas à desgraça.
     Na quarta parte, a partir de Setembro e Outubro, a cidade já se mentalizou para a situação de calamidade que está a viver, as pessoas vão mesmo a um espectáculo de ópera de uma companhia que ali ficou retida, que repete uma peça de Gluck, "Orfeu e Euridice". É descrito com algum dramatismo o tratamento e a morte de uma criança, um filho de M. Othon. O Padre Paneloux adoece e acaba por morrer. Chega-se ao Dia de todos os Santos e a efeméride não é comemorada, porque ali todos os dias são dias da morte. Aquele torpor parece não ter fim. Rieux e Tarrou têm mais uma conversa a nível filosófico. Joseph Grand é acometido pela peste, mas para surpresa dos médicos recupera. E também os ratos agora reaparecem, mas vivos e energéticos.
     Na quinta parte, já em Janeiro, a peste dá sinais de estar a ser debelada. O facto é muito comentado, todavia, no frenesim daquilo tudo estar a terminar, as pessoas andam impacientes e há mais algumas tentativas de fuga. Por infelicidade, M. Othon, que tinha estado de quarentena depois do empestamento do filho, é contaminado e acaba por morrer. E o mesmo acontece a Tarrou. A esposa de Rieux, que estava internada fora da cidade num sanatório também morre. Finalmente em Fevereiro abrem-se as portas da cidade e a esposa de Rambert vem ali buscar o marido. Cottard é acometido de um ataque de loucura. Rieux e Grand ouvem tiros juntos de sua casa e ficam preocupados. Ele acaba por ser preso.  Há grandes celebrações, mas no meio de tanta alegria são esquecidos os mortos. Mas por um lado isto até é bom: é preciso recomeçar. Contudo, uma certa alienação é notória, pois  a peste continua por aí à espera de toda a gente.

SIGNIFICADO DE "A PESTE"
     Camus não se limita a escrever uma história, ele vai à realidade impetuosa daquele tempo e impregna-a de uma moral, de uma filosofia, com que nos pretende fazer reflectir. Aqui é equacionada a ocupação, o exílio, a separação, bem retratados no afastamento das esposas de Rieux e Lambert. Aqui se manifestam gestos de solidariedade que excedem o que seria de esperar, pois há toda a vantagem em se estar do lado do bem. Estes gestos são bem patentes em muitas pessoas anónimas e em Rieux, Lambert e Tarrou. O primeira acha mesmo que não se deve desistir de lutar contra  adversidade, mesmo que se esteja perante uma derrota sem fim. Tarrou  vê mesmo a peste como a parte menos sadia do ser humano: O bom Homem é aquele que infecta pouco os outros e tem menos lapsos na prevenção da doença. No aspecto religioso é salientado que o ser humano perante as calamidades tende a voltar-se para a religião, negligenciando a luta contra o mal. Esta ideia é expressa pelo Padre Paneloux, que diz ser a peste um processo pelo qual Deus separa o trigo do joio. Rieux, que expressará o pensamento de Camus, não é dessa opinião, mostra-lhe a injustiça que é a morte de uma criança inocente às mãos da peste. Paneloux, que, como se disse, quase ao fim adoece, agarra-se a um crucifixo, à sua fé, recusa-se mesmo a ser tratado, tão confiante está nela, e acaba por morrer de doença duvidosa. Para Rieux foi a fé que o perdeu. Devemos lutar com todas as forças contra o mal, não estarmos à espera que algum Deus o venha fazer por nós, parece querer dizer-nos. Mas mesmo aqueles que lutam heroicamente contra o mal também podem perecer contra a sua perfídia, neste mundo absurdo, como aconteceu com Tarrou, que morre ao fim infectado, quando a peste já estava em regressão. O ser humano deve afirmar-se pela transcendência do seu espírito, centrar os seus objectivos na sua existência e não numa realidade abstracta que ninguém vê. Para quem conheça outras pestes, como as de Lisboa, em que chegaram a morrer 700 pessoas por dia, e durante longas semanas, sabe que este livro não traduz nem uma pequena parte do horror que é uma peste destas. Algumas foram tão horrorosas, que já não havia braços para enterrar os mortos, que ficavam pelos quintais, nem confessores nos confessionários para confessar os moribundos; não havia médicos para tratar dos doentes, nem notários para fazer os testamentos, tão estarrecidos estavam todos. Mas Camus traz esta história para a actualidade,  o seu objectivo terá sido outro. Ele quis preparar-nos para enfrentar as novas pestes que estavam e ainda estão para vir.
     6.7.2012 Martz Inura


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