ALFRED DÖBLIN









ALFRED DÖBLIN
Berlin Alexanderplatz (592 pág.)
Tradução de Sara Seruya e Teresa Seruya 
Prefácio de Teresa Seruya
Publicações Dom Quixote


O HOMEM

                             Alfred Döblin nasceu em Stettin, hoje Szczesin, na Polónia, em 10 de agosto de 1878. Os seus pais eram comerciantes abastados de origem judaica. Formou-se em medicina e segue neurologia, trabalhando desde 1905 em cidades com Regensburg, Freiburg e Berlim. Não tardou, contudo, a iniciar-se na atividade de escritor e intelectual. Logo em 1912 intervém numa exposição itinerante do Futurismo, personificada pelo italiano Marinetti. Ele tinha ideias próprias quanto à estética e quanto à doutrina belicista ali propalada, fazendo sair um texto sob a forma de Manifesto, Aos romancistas e seus críticos. Programa Berlinense. Assim, em 1916 recebe o prémio Theodor Fontane de Literatura. Durante a Primeira Guerra Mundial serve como médico na frente Alsaciana. Em 1920 passa a fazer parte da Associação dos Escritores Alemães, tornando-se presidente da mesma em 1924. Integra um movimento em torno de Herwarth Walden e sua revista, Der Sturm. A sua notoriedade internacional é alcançada em 1929 com Berlin Aexanderplatz. A situação política na Alemanha altera-se com o aparecimento do nazismo. Döblin vê-se obrigado em 1933 a emigrar para a França, e em 1940 para os Estados Unidos da América. Em 1941 converte-se ao catolicismo, causando alguma controvérsia à sua volta. Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945 regressa à Alemanha, entusiasmado com o renascimento cultural que se esperava da Alemanha do pós-guerra. Em 1949 inclui-se entre os membros fundadores da Academia de Ciências e Literatura Alemã de Mogúncia. Com o tempo passou a sentir-se menos integrado política e culturalmente no seu país, e em 1956 vai viver para a França. Porém, o seu estado de saúde já revelaria algumas fragilidades. Pouco depois regressa à Alemanha, onde morre em 1957, em Emmendingen, Baden, muito afetado pela síndrome de Parkinson.

 

A OBRA

                A obra literária de Alfred Döblin é diversa e volumosa, para além dos romances, tem os ensaios, histórias, teses e obras traduzidas para alemão. Estão guardadas num museu e representam uma época, a República de Weimar. Citemos algumas das suas obras principais, escritas em Alemão (uma boa oportunidade para aprender esta língua), mas muitas delas traduzidas em Inglês, Francês, Português e Espanhol. Citamos aqui algumas: 


    – 1913 Die Ermordung einer Butterblume (contém 12 histórias que constituem o texto-chave do modernismo e expressionismo alemão)
    – 1916 Die drei Sprünge des Wang-lun (que lhe granjeou o prémio Fontane)
    – 1918 Regreso de las tropas del frente. Noviembre (tradução em Espanhol de 2013)
    – 1918 Wadzeks Kampf mit der Dampfturbine Der Schwarze Vorhang
    – 1920 Wallenstein (épico sobre a Guerra dos 30 Anos, traduzido para Francês em 2012)
    – 1924 Berge Meere und Giganten (romance futurista de ficção científica)
    – 1925 Reise em Polen (a dolorosa saída da Polónia, traduzido para Francês em 2018)
    – 1927 Manas (uma obra épica em verso livre)
    – 1929 Berlin Alexanderplatz (traduzido em Português em 1992, Portugal)
    – 1934 Babylonische Wandrung (um romance sobre o seu exílio)
    – 1950 Eine deutsche Revolution (iniciado em 1918, mas concluído em 1949-50)
    – 1956 Hamlet, oder die lange Nacht nimmt ein EndeHamlet (último romance de Döblin)



O LIVRO Berlin Alexanderplatz

        – PRINCIPAIS PERSONAGENS


        Franz Biberkopf: É a personagem principal do romance, o anti-herói que o autor nos pretende retratar. Sai da prisão de Tegel, onde acaba de cumprir 4 anos de prisão, depois de ter morto num ataque de ciúmes Ida, a mulher com quem vivia. Exerceu várias profissões. Quer fazer uma vida decente mas o destino empurra-o para o desemprego, para a marginalidade. Fixa-se em Berlin, na Alexanderplatz, um antro da criminalidade. Fisicamente não é bonito, tem um rosto moldado pela aspereza, é corpulento e desajeitado, na casa dos trinta anos. Já sob o ponto de vista psicológico não se pode dizer que seja má pessoa, contudo, não é muito inteligente, é ingénuo e fácil de enganar. Tem um fundo bom, mas a sua personalidade enferma de algumas falhas, é violento quando alcoolizado, demasiado impulsivo e ciumento, o que o levou a assassinar a sua companheira, Ida. Teve uma visa difícil, sofreu muitas contrariedades e traições, tornando-se desconfiado e misógino. Perde o braço esquerdo num acidente provocado por Reinhold. Vive de expedientes ilegais, dedica-se ao proxenetismo. Só no fim do livro autor o tenta reabilitar.
        Reinhold: É a personagem antagonista de Biberkopf, que é amigo dele e confia ingenuamente na sua amizade, pois é agressivo para si, ao ponto de o mandar para baixo de uma viatura, quando discutia com ele, acidente no qual perdeu um braço. Reinhold é um homem magro, alto, espertalhaço, organizado, rígido consigo mesmo, embora de aspeto doentio, que se dedica ao proxenetismo inveteradamente. É sádico e explora o lado masoquista de Biberkopf. Trata mal as suas mulheres, de que facilmente se desfaz. Está ligado à criminalidade. É violento, possessivo, de uma mentalidade perversa, assassina Mieze, que estava naquele momento voltada para uma relação séria com Biberkopf, por esta lhe esta lhe estar a ser difícil, induzindo falsamente as culpas para ele, dizendo que o ajudara no crime.
        Ida: Mulher que inicialmente vivia com Biberkopf, que ele mata quase sem querer com a bebida, por estar convencido que ela o andava a atraiçoar.
        Minna: Ligada a Meck, irmã de Ida, que Biberkopf estupra quando saiu da prisão. É casada como o serralheiro Karl.
        Karl Matter: Funileiro, companheiro de Minna e de Mieze, que pertence ao bando de Pums. 
      Lina: A primeira mulher de Biberkopf, depois dele ter saído da prisão. Teve dois abortos. É chamada de a polonesa, filha do camponês Stanislau.
        Mieze: prostituta atraente, de 20 anos, amiga de Eva, que se torna uma das amantes de Biberkopf. Com o tempo inclina-se para uma relação séria com ele, sendo assassinada por Reinhold.
       Eva, cujo verdadeiro nome é Emilie, é uma das mulheres de Biberkopf, amiga de Mieze. Está apaixonada por ele e quer que Eva lhe dê um filho. A amiga engravida, mas tem um aborto espontâneo. É Eva que com Herbert manda Biberkopf para o hospital de Magdburgo para se recuperar depois do acidente em que perdeu um braço e o trata e esconde, quando é procurado pela polícia.
        Herbert Wikhow: Proxeneta, amante de Eva, amigo de Biberkopf antes da sua prisão, um larápio que apanha dois anos de prisão por crimes contra a propriedade alheia. Está implicado na morte de Mieze por a ter ajudado a transportar para um parque onde foi enterrada.
        Otto Lüders: Tio de Lina, um homem sensato sem filhos, franzino, que vende cadarços. Estupra e rouba uma viúva indefesa que tinha caído nas boas graças de Bibeerkopf.
        Gotlieb Meck: Ligado a Minna, membro da associação de negociantes de gado, que tenta arranjar um emprego para Biberkopf.
       Cilly: Uma das primeiras mulheres de Biberkopf, de que Reinhold se desfez, bastante pachorrenta. Mais tarde volta para Reinhold.
     Willy: Um jovem ex-presidiário, carteirista, que leva Biberkopf a várias reuniões políticas, é fanático e arrogante.
      Herr Pums: O chefe do Gangue, a que estão mais ou menos ligados várias personagens deste romance, é distante e intimidador.
        Trude: uma das mulheres de Reinhold.


A Berlim nos princípios do século XX


            – RESUMO

        Franz Biberkopf acaba de sair da prisão de Tegel, onde cumprira uma pena de quatro anos de prisão por ter matado por uma questão de ciúmes a sua companheira, Ida. Depois de um período de liberdade fortemente cerceada e regulamentada é posto em liberdade e tenta integrar-se, mas vai encontrar uma cidade hostil, que lhe fecha muitas das suas portas. Depara-se com dois judeus, com quem tem uma conversa inspiradora sobre como encarar a vida. Depois de uma sessão de cinema vai às prostitutas, mas verifica que está impotente. Aquilo deixa-o frustrado. Regressa à casa de Ida e encontra a irmã, Minna, que estupra, afinal não está impotente. Resolve então arranjar um emprego, ser um homem honesto, junta-se a uma mulher, chamada Lina. Passa a vender jornais, por acaso da lavra no Nacional-Socialismo, contra as suas próprias ideias. Chega a ter uma contenda num bar onde predominam os comunistas. Desiste dos jornais e passa a vender artigos de costura e miudezas. Entretanto conhece o tio de Lina, Otto Lüders, e conta-lhe que uma viúva lhe pagou por sexo. Este aproveita-se desta informação para assaltar a casa da pobre mulher e a roubar. Biberkopf sente-se implicado, vende à pressa a sua mercadoria e foge para longe de Lina.

        O nosso anti-herói deambula pela cidade, meio perdido. Não arranja emprego, frequenta bares e abusa do álcool. Encontra-se de novo com os judeus, eles aconselham-no a arrepiar caminho, mas ele não aproveita. A sua vida de ociosidade só é perturbada quando o homem em cujo quarto dorme é acusado de ser cúmplice no roubo de uma empresa. Ele é obrigado a arranjar novo pouso. Vai procurar refúgio junto de Minna e talvez abusar dela outra vez, mas o marido estava lá e conteve-o. Tenta recomeçar uma sua vida honesta a vender jornais, e trava conhecimento com um indivíduo relativamente tímido e esperto, mas de má formação, sádico e criminoso, é proxeneta (no Brasil cafetão) e dispõe de diversas mulheres de que se vai desfazendo para Biberkopf, quando se chateia delas. Envolve-se com ele num assalto, e quando discutem durante a fuga é empurrado para fora do carro em andamento. Reinhold pensa que ele terá morrido, mas ele é levado para uma clínica por um seu amigo de prisão, Herbert, e consegue recuperar, perdendo contudo, um braço. Faz a convalescença em casa deste, onde Eva, mulher daquele, o trata com desvelo. Fica bom, mas perdeu um braço, que lhe dificulta arranjar trabalho, faz uma vida de proxeneta, explorando várias mulheres. Apaixona-se a seguir por uma delas, Mieze,

          Reinhold, para quem Biberkopf trabalha, não gostou de ver aquele casal apaixonado, ele quer que eles retomem a sua anterior ligação de proxeneta-prostituta, não gosta de ver ninguém feliz. Mieze recusa as suas investidas e ele, enraivecido, acaba por a assassinar, inculpando-o daquele crime. Ela é enterrada num bosque, e depois mudada de sítio para despistar a polícia, há um conivente nisto que revela onde está o cadáver. Com o tempo Biberkopf e Reinhold são acusados do crime e presos. O nosso anti-herói está inocente, sente-se confuso e entra em depressão. Internam-no então num manicómio. Ele recusa ser tratado, faz uma greve de fome, quer morrer. No meio de sonhos e alucinações em que a Morte o interroga (através de o monólogo interior) e ele acaba por admitir a sua culpa. Faz uma espécie de catarse e renasce regenerado (note-se que o autor é psiquiatra). Volta à cidade de Berlim e trabalha agora recatadamente como ajudante de porteiro, finalmente integrado naquela cidade.


– COMENTÁRIO GERAL DA OBRA

Há salientar os seguintes pontos importantes em Berlin Alexanderplatz:

            1º A descrição exaustiva da cidade de Berlim da década de 20 do século passado, em que Alfred Döblin nos recria a vida aos seus atribulados habitantes. O romance tem muita ação, um enredo assaz rico, daí ter sido adaptado mais do que uma vez ao cinema. A sua narrativa, contudo, nem sempre é linear, ele faz aqui e ali colagens de textos, como quando nos leva para o matadouro, porventura para tornar mais veemente a violência da vida, deixando-nos confusos, mas logo recupera a nossa atenção, ligando o fio à meada. Recorre a recorte de jornais, aos programas de rádio daquele tempo, às canções em voga, até aos anúncios, para retratar a atmosfera da cidade. Esta é feita pelos seus habitantes, mas as suas casas, os seus bares, as suas ruas, praças e avenidas, bem como as polícias, os tribunais e as prisões também os marcam. A cosmopolita Alexanderplatz é o palco principal deste romance, por onde todo o mundo passa, e floresce a criminalidade.

            2º A sua técnica narrativa, em que recorre frequentemente ao monólogo interior, utilizado sobretudo com Biberkopf e Reinhold, o tal fluxo ou corrente de consciência, termo que já vinha de 1892 da Psicologia, com William James. Através deste recurso ele tenta retratar melhor a componente psíquica das personagens e dar outra dimensão ao romance, tornando-o mais denso e dinâmico, um tanto épico. Passa facilmente da primeira para a terceira pessoa, diversifica o discurso. Assume uma forma modernista no processo narrativo, de feições ditas expressionistas, que atravessou as várias correntes artísticas da Alemanha nos princípios do século XIX, que explorava a Natureza e o subjetivismo para melhor apreender a realidade, ao estilo de Manhattan Transfer de John dos Passos, voltado para Nova Iorque; e Ulisses de James Joyce para Dublin. À sua maneira já o tinha feito no século anterior, Eça de Queiroz, em Os Maias, com a cidade de Lisboa.

            3º A cidade de Berlim retratada pelo autor como uma espécie de Natureza viva que os seus habitantes têm de enfrentar no dia-a-dia. O autor vai focar-se na marginalidade, nas classes desfavorecidas. As suas principais personagens, ele vai buscá-las à rede de prostitutas e proxenetas da cidade, aos traficantes de estupefacientes, aos gangues, aos ladrões de meia tijela, enfim, aos desintegrados. Lida com instituições ligadas à criminalidade como a polícia, os inspetores da judiciária, os tribunais, os hospitais e as prisões, recriando para nós um mundo menos conhecido na literatura, cheio de violência e delinquência. O romance tem um pendor social e humano, um lado psicológico e psicótico. Como seria de esperar, durante o regime nazista esta obra foi considerada “degenerativa”, queimada e proibida.

            4º As personagens empregam a linguagem vernácula, coloquial. O dialeto de Berlim utilizado por aquela gente do bas-fond resvala frequentemente para o calão, mas nunca decaindo na grosseria ou sordidez. Seja dito que as traduções dificilmente nos poderão verter aquele linguajar castiço com exatidão. O autor descreve a vida das pessoas tal como ela é, e põem-nas a dialogar livremente, quase sem censuras. Emprega termos e expressões saborosas ao gosto popular, de uso frequente, como “gato-sapato”, ”não tás boa da pinha”, “ter debaixo d’olho”, “ser sacripanta”, “ter pancada”, “apanhar no toutiço”, “gente daquele calibre”, “andar no gamanço”, “a formiga ter catarro”, “dar na real gana”, “rais-te-parta” e tantos outra deste jaez. Os seus diálogos são vivos e realistas.

               O romance distingue-se ainda pela maneira como paraleliza a vida de Biberkopf com a história da República de Weimar daquele período – os sobressaltos por que passa a sociedade refletem-se nas personagens. Vivia-se numa Alemanha saída fragilizado do Tratado de Versalhes, economicamente debilitada, politicamente fragmentada e desunida, efervescente, onde começa a despontar, ameaçador, o Nacional-Socialismo. O que se passa na cidade – e ela é rica de acontecimentos –, tem repercussões em Biberkopf. Aqui e ali o autor refere-se à Bíblia, como quando fala do Livro de Job, porventura para o associar às provações do ingénuo Biberkopf, ou relata acontecimentos da História Greco-romana, para dar uma outra grandeza e amplitude ao romance. Tal processo pode tirar unidade de ação ao romance se não foi feito na perfeição. Ele próprio reconhce no seu apêndice que este livro tem muito de criticável. 

                6º Há um lado crítico neste livro, uma análise profunda do meio social, uma intrusão na interioridade dos indivíduos, um lado sarcástico, por vezes irónico sobre a realidade. Está implícito no romance que a sociedade é capaz de determinar o indivíduo. Entre Biberkopf e Reinhold, o autor contrapõe a individualização à socialização, o masoquismo ao sadismo, a desorganização à organização, a ingenuidade à perversidade. Biberkopf saiu da prisão cheio de boas intenções, mas as dificuldades de integração que vai encontrar levam-no de novo ao desespero e à criminalidade, não obstante ele ter um fundo bom. Alfred Döblin, que era médico psiquiatra, deixa morrer a personagem quase ao fim num manicómio, ressuscitando-a um tanto à pressa para lhe dar uma vida decente que nunca teve. O romance já ia longo, ele não teve espaço para mais. Enfim, Berlin Alexanderplatz é uma obra extraordinária que se recomenda, no seu género das mais bem escritas!

                    15 de junho de 2022
                    Martz Inura


























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