MACHADO DE ASSIS
Dom Casmurro
Biblioteca Visão
O
HOMEM
Joaquim Maria
Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de Junho de 1839. O
pai era pintor de paredes, descendente mestiço de escravos alforriados, e a
mãe, uma portuguesa natural dos Açores, lavadeira: portanto, filho de gente
humilde. Não teve possibilidades de prosseguir os estudos, ficou-se pela
instrução primária, e desde cedo se viu obrigado a trabalhar. Foi sacristão,
empregado de uma livraria, aprendiz de tipógrafo e revisor de tipografia.
Sempre trabalho mal remunerado, mas ligado às letras, a sua grande paixão. Era um autodidacta: toca
a estudar, toca a trabalhar, fez-se a ele próprio. Não demorou que começasse a escrever
poesia e a traduzir e escrever livros. Em 1869 casou com a portuguesa Carolina Augusta
Xavier de Novais, também ela entusiasta pela literatura, que o continua a incentivar
e a apoiar na sua doença, a epilepsia. Com tanto labor rapidamente ganha prestígio nas letras. Em
1872 consegue entrar como oficial para os quadros da Secretaria de Estado do
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Com este emprego garante a sua
sobrevivência económica. Todavia, continua a escrever e a meter a sua penada no
jornalismo. Em 1897 faz parte dos sócios fundadores da Academia Brasileira de Letras,
de que se torna presidente até à sua morte, em 29 de Setembro de 1908.
A
OBRA
Machado de Assim
era senhor de uma grande fluência na Língua Portuguesa, com um estilo simples, preclaro,
e uma pureza de linguagem que rapidamente o impuseram no Brasil como o primeiro
inter-pares. Inicialmente seguiu a corrente romântica, mas em 1880 aderiu ao
realismo. Cultivou vários géneros: a poesia, com Crisálidas (1864), Americanas
(1875); o romance: Ressurreição
(1872), A Mão e a Luva (1874), Helena
(1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú
e Jacó (1904), Memorial de Aires
(1908). Para além de contos, crónicas, peças de teatro e obras de crítica
literária.
O
ROMANCE DOM CASMURRO
1. Sinopse
Não vou fazer uma sinopse do livro,
por aí tantas vezes glosada. É preciso que o leitor leia a obra, que não é
assim tão extensa. Se já o fez é bom que o volte a fazer, para se refazer das suas
passagens ilustrativas, serenas e doces. Também não vou tecer uma crítica judiciosa
da obra, mais que esgotada, e nem sequer uma recensão, mil vezes produzida. Estas
palavras terão mais a função de apresentar este autor com mais veemência aos
leitores portugueses. Convém, contudo, que alerte desde já
o leitor para o perfil e peso de algumas personagens, com a finalidade de
tornar a leitura do livro mais fácil para quem ainda não o fez:
- No núcleo da obra está Bentinho (Dom
Casmurro), que narra a sua própria vida. Personalidade frouxa, mas ainda assim
com um sustentado equilíbrio psicológico e filosófico, que o faz ir dominando
as circunstâncias, pois, na verdade, sobrevive a todos os seus desaires.
Dominado pela mãe, soçobra aos encantos de Capitu, afundando-se de ciúmes, até
se estabilizar na memória do que foi.
- À volta do núcleo da obra está um
anel de personagens como a mãe de Bentinho, D. Glória, a matriarca da família,
que dirige com firmeza, não só no aspecto material como no espiritual, seguindo
a tradição, e lhe marca o destino. E Capitu, a namorada de infância e futura
esposa, mulher fascinante, que lhe povoa a vida de amor e sedução, mas também
de ciúme e azedume.
- Segue-se um terceiro anel de
personagens, apesar de tudo importantes, como Escobar, seu colega de seminário,
de quem vai ser quase inseparável, Sancha, amiga de Capitu e futura esposa de
Escobar, de carácter mais conservador. Poderei acrescentar Ezequiel, seu filho,
que considera bastardo, José Dias, homem sem posses, que quer estar de bem com
toda a família, e ainda o Padre Cabral, uma figura representativa da igreja
como instituição, dando aqui uma dimensão do seu poder e prestígio.
2. Impressão Geral
Trata-se de um romance escrito na
primeira pessoa, com carácter autobiográfico, por isso, muito intimista, aqui e
ali, rico em pormenores ou com muito colorido, como quando fala da traição. O
livro pode ser considerado por dois vectores principais:
- A narrativa de uma paixão, que se
inicia na puberdade e vai até à velhice, nas suas diversas cambiantes. Há aqui
um aspecto que o autor desenvolve mais intensivamente, e que marca a obra, embora
usando uma linguagem suave: o ciúme e a traição;
- A reconstrução da sociedade do Rio
de Janeiro na segunda metade do século xix, onde são aflorados alguns aspectos
remanescentes da escravatura, como o tratamento de “preto” com a carga racial
que tinha. O poder da igreja, cujos padres e bispos chegaram a ter influência
no império, é também evidente. A ascensão social também é retratada, verifica-se
por exemplo, com o ingresso no clero. Ser padre já era uma honra, cónego seria
mais prestigiante. As pessoas são preconceituosas, muito sensíveis à
crítica social. A sociedade do Rio de Janeiro é então bastante provinciana,
vive muito das aparências, e a vida sexual fortemente vigiada e reprimida.
Perpassa pelo livro um certo humor
nostálgico. O autor passa por assuntos de uma incontornável gravidade com uma
irreverente leveza. Dirige-se preferencialmente às leitoras, com quem aqui e
ali entra em diálogo, fazendo-lhes propostas com uma certa ironia.
Dando provas da sua erudição
clássica, faz referências a vários autores europeus, desde Homero a Camões, de
Platão a Bacon, e para se apoiar no tratamento da traição vai inspirar-se na
peça Otelo de Shakespeare, levando Dom Casmurro ao teatro.
3. A Mulher
A mulher é aqui tratada com elevação,
tem prerrogativas de matriarca, como é o caso de D. Glória, que mantém com
pulso de ferro a direcção da família e a administração dos seus bens. Possui
ainda predicados de ninfa, a Capitu, cuja beleza fascina os homens, Bentinho ao
confirmar para si a traição, não a assassina, o que é frequente no
comportamento de muitos maridos enganados, em vez disso decide suicidar-se: ela
é intocável. Contudo, é um fraco, não o consegue fazer, nem sequer envenenar Ezequiel,
de quem se julga não ser o pai, e leva Capitu para a Suíça, deixando-a ali a
viver na abastança, simulando visitas, tudo para salvar as aparências de um
casamento feliz.
4. A Traição
Esta traição ainda continua por
provar, a não ser que o leitor lhe veja um jeito, pois o narrador fictício, D.
Casmurro, é um cimento obsessivo, não é homem de confiar. É o autor, na sua
narrativa, que dá pistas para que o caso seja reanalisado, quando diz pela boca
de Capitu, que os olhos de Ezequiel “só tinham parecenças com mais duas
pessoas: na de Escobar e na de um amigo do papa”. Ora abre-se aqui a hipótese
de Ezequiel ser realmente filho de Dom Casmurro, e Capitu, essa sim, ser filha
bastarda, podendo mesmo ser meia-irmã de Escobar (capítulo CXXXI). Por outro
lado, Escobar, ao admitir vir a casar a sua filha Capituzinha com Ezequiel,
cria a ideia que este não será seu filho, pois pressupõe-se que não queria ver
casados dois meios-irmãos (capítulo CVIII). As conclusões de Bentinho cheias de
certeza de que Ezequiel é a cara de Escobar, podem não passar de convicções
doentias de homem ciumento, infelizmente, ainda habituais nos nossos dias,
levando a hediondos crimes, com presunções algumas vezes infundadas, que a jurisprudência
tem estudado. Bentinho fica enciumado quando Capitu, ainda namorada,
simplesmente olha para um jovem que passa a cavalo; perturba-se com a nudez dos
seus braços vistos em público; desconfia dela, quando a mãe, D. Glória, a passa
a tratar com algum distanciamento, bem como a Ezequiel, ignorando que aquela
impressão podia explicar-se por uma mera aversão de sogra; morre de ciúmes quando
ela chora, muito naturalmente, a morte do seu melhor amigo comum, Escobar, por
quem, ele próprio verte algumas lágrimas. Vê semelhanças deste em quase todos
os traços de Ezequiel, obviamente excessivas. Diga-se contudo, que para quem
quiser ir mais longe na análise do adultério, há aqui a explorar vislumbres de
mulher infiel em Capitu, com o seu olhar “oblíquo e dissimulado”, e conformações
de um macho alfa em Escobar e de um macho beta em Bentinho.
5. Visto pelo Lado Negativo
Tem
havido críticos que condenam esta obra pelo ar desencantado com que Machado de
Assis descreve aqui a vida, onde persiste alguma azedume e incompreensão, fruto
talvez das suas frustrações, ora uma tal crítica é injustificada, ele apenas
retrata aqui um de muitos mundos, que não é naturalmente dos mais felizes, nem dos
mais perfeitos. A vida das pessoas nem sempre prima por ter uma moral elevada, por
ser um mar de rosas, e é necessário que seja descrita, e até estudada. E a moral é construída pela época, muda com o tempo. De notar
o comportamento bonançoso de Dom Casmurro, para não dizer "manso", revelando uma
boa dose de humanidade, alguma ternura a rememorar o passado, ainda trespassado
da beleza de Capitu. Também dá grandes saltos no tempo, mas de uma maneira
sub-reptícia, quase não se dá por eles.
Outros esperariam aqui uma obra de
uma estofo psicológico ainda mais desenvolvido, com uma mais extensa panóplia
de personagens, construindo melhor a sociedade do seu tempo, ora os autores
não podem estar sempre a criar obras com uma dimensão psicológica colossal de um
Dostoiévski, em Crime e Castigo, ou com
uma panóplia extensa de personagens nos moldes de um Tolstoi, em Guerra e Paz, ou mergulhado até às
raízes mais profundas da sociedade em Os
Miseráveis de Victor Hugo, de um gigantismo avassalador, tem que haver também
obras mais leves e simples disponíveis para os leitores, que reconstruam o
seu mundo grão a grão, com as pequenas pérolas de que ele também é formado.É interessante confrontar este romance com Madame Bovary de Gustave Flaubert, que também versa o tema.
6. Visto pelo Lado Positivo
Entrar
na narrativa deste livro é como caminhar ao sabor da leveza do vento, é beber da
água mais saciada e cristalina, é ver na atmosfera mais límpida. Que beleza! Sem
artificialismos, utiliza uma linguagem de uma pureza vítrea, em que as palavras
vão sendo projectadas como uma luz que nos ilumine, nos preencha de pensamentos
e emoções veementes. A realidade é-nos transposta de transparência em
transparência, puríssima, como feita de imagens que componham um filme. Dom Casmurro é um livro a não perder, com
grande influência na Literatura Brasileira, sobretudo por estar perto das suas
origens, e muita importância na Língua Portuguesa. É imperioso que deste lado
do Atlântico Machado de Assis continue bem vivo.
18.12.2013
Martz Inura
Martz Inura
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