FERNANDO PESSOA



 


FERNANDO PESSOA

BERNARDO SOARES
O Livro do Desassossego
ORGANIZAÇÃO E INTRODUÇÃO DE RICHARD ZENITH
ASSÍRIO E ALVIM EDITORES (1998) (534 p.)


O HOMEM

            Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888. Seu pai faleceu de tuberculose, tinha ele cinco anos. Sua mãe voltou a casar pouco depois com um comandante da marinha, nomeado cônsul de Portugal em Durban. Pessoa acompanhou-a e foi lá que fez a instrução primária numa escola de freiras irlandesas. A língua inglesa tornou-se quase materna, ao ponto dele mais tarde dizer que pensava em Inglês e sentia em Português. Fez o liceu em Durban, e depois de alguma instabilidade familiar frequentou uma escola comercial noturna, pensando em ir para a Universidade, o que chegou a conseguir mais tarde, concluindo o Intermediate Examinations in Arts na cidade do Cabo. Os primeiros escritores que o marcaram foram, como não podia deixar de ser, Shakespeare, Edgar Allan Poe, Milton, Byron, Keats. Já em criança lhe era reconhecido o talento para escreve. Em Durban sentia-se um pouco perdido, órfão de pais e de pátria. A mãe ao voltar a casar deixou de ter tempo para ele, pois ainda teve mais quatro filhos e filhas. Isto marcou-o. Ele cresceu sem amor, o que lhe empederniu a sensibilidade, que ficou amorfa, em proveito da sua reflexibilidade, mais sofrida que pensada. Depois de várias idas e vindas acabou por se matricular em Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, curso que abandonou ainda no primeiro ano, preferindo ir consultar os nossos clássicos na Biblioteca Nacional. Dominava o Português, o Inglês, o Francês, o Espanhol e o Alemão.

            Ficou a viver em casa da avó Dionísia, doente mental, e das suas criadas. Esta morreu em 1907, e, com a herança que recebeu fundou a «Empreza Ibis – Typographica e Editora – Officinas a Vapor» que não tarda a ir à falência. Tinha que garantir a sua sobrevivência e arranjou trabalho como tradutor e correspondente comercial. Alugou um quarto na Baixa, fazia uma vida solitária. A sua ambição era a carreira literária, aos sete anos já escrevia poemas. Na África do Sul chegou a vencer o Prémio Rainha Vitória num trabalho escolar. Em Lisboa tentou relacionar-se com o meio literário. Em 1912 estreou-se como crítico na revista Águia, e em 1914, como poeta, na revista Renascença. No ano seguinte abalançou-se a um projeto maior fôlego, começou a escrever na revista esotérica Orpheu, que chegou a dirigir com Mário de Sá Carneiro, porém, esta publicação não ia durar muito, dado os seus ideais futuristas, demasiado avançados para o tempo. Em 1924 insiste em fazer publicações na revista Athena, fundada por si e Ruy Vaz. O que era precisa era escrever, fosse o que fosse: em 1926 dirigia com seu cunhado a Revista de Comércio e Contabilidade, e em 1927 colabora na revista Presença. Socialmente tinha uma vida bastante apagada, em 1929 restabelece contactos com uma apaixonada que conhecera na África do Sul em 1920, Ofélia Queiroz, porém, ele era um inibido, este namoro não ia dar certo.

Continua a trabalhar como correspondente comercial e tradutor. Do seu labor literário, nas diversas intervenções que fez nas revistas literárias deu origem ao Modernismo Português com Mário de Sá-Carneiro, Luiz de Montalvor e Ronald de Carvalho. Em 1934 publica A Mensagem, desqualificado num prémio a que concorrera, por, desleixadamente não atingir as 100 páginas, o mínimo que deveria ter, e que ele facilmente conseguiria completar se estivesse atento. Para corrigir este erro António Ferro conseguiu lhe fosse atribuído ainda nesse ano o Prémio Antero de Quental na segunda categoria. Um pouco desencantado com a vida vai escrevendo para o seu baú, mas já se sentia um tanto desencantado com a vida, cada vez mais abúlico. Em 29 de Novembro de 1935 sentiu-se mal, escreveu mesmo num papel e em inglês antes de sair: I know not what tomorrow will bring, (Não sei o que amanhã me trará). Ele já suspeitava que iria partir para outras paragens. Diagnosticaram-lhe uma cólica hepática. Sabia-se que bebia bastante, naturalmente para fugir ao tédio que o perseguia, à solidão, ao vácuo em que se parecia comprimir a sua vida. O seu funeral realizou-se no dia 2 de dezembro para o Cemitério dos Prazeres. Em 1988 foi traslado para o Mosteiro dos Jerónimos.

Normalmente quando nos referimos aos autores incidimos sobretudo nas suas obras. Pois aqui vão ser destacadas também as qualidades morais de Fernando Pessoa, um homem pacífico, compreensivo e bondoso, que não alimentava ódios nem invejas, voltado para si mesmo, onde se encontrava a sua realidade mais profunda. O que ele queria é que não o chateassem. Sendo um génio, era humilde e trabalhador, um sonhador. Não era daqueles que se atravessava à frente dos outros para chegar em primeiro lugar. Aquilo que sofreu fê-lo meditar e ver mais longe. Como quase toda a gente, seduzia-o a celebridade, disso deu conta nos seus escritos, mas fazia pouco por ela, ao ponto de por fim a glória em esfígie lhe ser quase indiferente. Embora estivesse consciente do seu valor, eram os amigos que o alertavam para isso, contentava-se em viver como um estóico no seu pequeno quarto. Era curioso, quis conhecer muitas teorias, muitas religiões, diversas organizações, mas não se deixou tomar por elas. Queria alargar a consciência da humanidade. Em Deus, que às vezes usava no plural, acreditava quase como por instinto, sem O poder abranger. Olhava com espanto e ternura para a humanidade, admirando-se como ela conseguia viver com uma euforia louca, própria da ingenuidade e inocência com que vivem as crianças.

 

O espólio pessoal de Pessoa: a arca e os livros

A OBRA

 Obras Publicadas em Vida:

 – Antinous (1918)

            35 Sonnets (1918)

– English Poems I – II e III (1921)

O Banqueiro Anarquista (1922)

Mensagem (1924)

– (Trabalhos avulsos publicados nas revistas em que colaborou)

 

Obras Póstumas:

São as mais numerosas, e para algumas há o problema de saber decifrá-las dos seus escritos. Inclui literatura epistolar, peças de teatro, muita poesia e prosa, teoria literária, estudos linguísticos, teorias filosóficas, cartas astrológicas, horóscopos, etc., criações escritas em mais do que uma língua, utilizando para tal desde cadernos de notas a panfletos, tudo o que desse para escrever. O seu espólio literário com cerca de 25.000 folhas está arquivado na Biblioteca Nacional e ainda não foi completamente inventariado e publicado. Às vezes publicam-se seleções, excertos e antologias para baralhar tudo. Consultar, por favor, o espólio da Casa de Pessoa. Leia-se apenas como guia:

 – Poesias de Fernando Pessoa (1942)

Poesias de Álvaro de Campos (1944)

A Nova Poesia Portuguesa (1944)

Poesias de Alberto Caeiro (1946)

Odes de Ricardo Reis (1946

Poemas Dramáticos (1952)

Poesias Inéditas I e II (1955-56)

Quadras ao Sabor Popular (1956)

Textos Filosóficos (1968)

Novas Poesias Inéditas (1973)

Cartas de Amor de Fernando Pessoa (1978)

Carta de Amor de Fernando Pessoa (1978)

– Sobre Portugal (1979)

Textos de Crítica e Intervenção (1980)

Cartas de Pessoa a João Gaspar Simões

Cartas de Pessoa a Armando Cortes Rodrigues (1985)

Obra Poética de Fernando Pessoa (1986)

O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro (1925) (1986)

Primeiro Fausto (1986)

O Desassossego de Bernardo Soares (1986)

A Hora do Diabo (1997)

A Educação de um Estóico do Barão de Teive (1999)

 

PRINCIPAIS HETERÓNIMOS EM 4 LINHAS

 Alberto Caieiro: (1889-1919). Tem ascendente sobre os outros heterónimos. Nasceu em Lisboa, mas viveu no campo. Ama a natureza. Órfão desde cedo, foi criado pela sua tia-avó. Morreu de tuberculose em 1915. Ficou-se pela instrução primária, usa um estilo simples, valorizando o sentir ao pensar. Foi o autor de O Guardador de Rebanhos. (É o bucólico camponês)

 Ricardo Reis: nasceu no Porto em 1887, esteve nos jesuítas e cursou medicina. Gosta da simplicidade em oposição ao que é moderno, para ele decadente. É erudito, latinista. Utiliza uma linguagem clássica e recorre à mitologia pagã. Escreveu poemas como: Para ser grande, sê inteiro. (É o médico que não exercia, muito conservador)

 Álvaro de Campos: nasceu em Tavira e formou-se em engenharia naval na Escócia, não chegando a exercer a profissão. Cultiva desde o decadentismo ao simbolismo, o modernismo, mas a modernidade angustia-o e torna-se pessimista: o que há em mim é sobretudo cansaço. E mesmo niilista no poema Tabacaria. (É o engenheiro naval)

 Bernardo Soares: É um simples ajudante de guarda-livros que Pessoa conhece numa casa de pasto, com quem sente alguma afinidade (é ele menos o raciocínio e a afetividade), daí Pessoa dizer que ele era um seu semi-heterónimo. Vivia em Lisboa na Baixa. Escreveu o Livro do Desassossego. (É o ajudante de guarda-livros)

 NOTA: Mas há muito mais heterónimos, só nos Textos Heterónimos estão lá 25 nomes, mas houve investigadores que encontraram no seu espólio mais de uma centena. Citemos alguns: Ricardo Reis, Frederico Reis, Vicente Guedes, Gervásio Guedes, António Mora, Alexander Search, Rafael Baldaya, Barão de Teive, Thomaz Crosse, David Merrick, Pêro Botelho, Abílio Quaresma, Maria José, Carlos Otto, Dr. Pancrácio, Diniz da Silva, Pantaleão, Eduardo Lança, João Caeiro, etc. E ainda existe Fernando Pessoa, propriamente dito e os seus arremedos.

 

FOTO-ANÁLISE DE FERNANDO PESSOA

 

Fernando Pessoa em cima, ainda jovem, com o olhar todo voltado para dentro. Parece estar com receio que com esta foto o fotógrafo talvez aprisione irremediavelmente a sua alma para sempre. Fecha-se atrás de um fato preto, com um chapéu e uma gravata que garantam à sua figura a dignidade que deve ter todo o ser humano, mesmo em desgraça. Usa esta roupagem como escudo com que se queira defender do mundo que o rodeia para se refugiar na sua consciência. Estávamos em 1915, parece estar de luto por Alberto Caeiro. Na sua cabeça há um redemoinho de ideias por onde vagueia atarefado, talvez com muitos projetos criativos, porém, inertes na sua vontade. Com o bigode pretende afirmar a sua virilidade. Ele não está ali, anda fugido pelo infinito, dele apenas se vê a sua imagem.


Fernando Pessoa já na casa dos quarenta. A sua pose nesta foto é mais descontraída, ainda que esteja compenetrado, como à procura de se lembrar de alguma coisa importante. Não usa o chapéu, de que raramente se privava. Toda a luz que haja a quer absorver na cabeça, de testa alta, para estender à vontade as suas ideias. Mostra já alguns sinais de degradação física. Está sem dúvida ausente, concentrado sobre paisagens interiores, porventura perdido no meio de um sonho a tentar afinar as suas metafísicas. Não abdicou da velha gravata, como se lhe fosse necessária para não faltar com dignidade à sua bela alma. O casaco e a gravata aparentam não ter muito trato, é um homem votado ao desmazelo, a perder a auto-estima, evidenciando uma indisfarçável miséria. Apresenta-se cansado, exposto à passividade, talvez desiludido com tudo à sua volta. Nem qualquer glória futura em esfígie já o seduz. Se não se sente nauseado é porque alguma ideia luminosa ainda o distraia.

 

O LIVRO DO DESASSOSSEGO

 A)    RESUMO, QUE NÃO O CHEGA A SER

Este Livro do Desassossego é um projeto que há muito Fernando Pessoa tinha em mente e queria publicar, e que uma inexplicável inércia foi protelando, como se começasse a ficar desiludido com o que escrevera, e tivesse perdido o entusiasmo inicial com que o começou a escrever, em que que se queria fechar em casa e começar a pensar em grande para alargar a consciência da humanidade. Não teve tempo de o rever, como à frente se explicará. Porém, nos seus escritos deixou diversos apontamentos a indicar como desejava que se organizassem estes fragmentos.

Durante décadas estiveram adormecidos dentro do seu baú, até que finalmente, em 1982 apareceu uma primeira versão deste livro com recolha e transcrição dos textos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, com prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho. A Ática editou o livro que teve grande aceitação. Mais tarde, em 1997, a Relógio d´Água faria uma nova reedição. Bem, nós lemos um exemplar da primeira versão  na juventude, emprestado por uma biblioteca municipal, mas o que estamos a analisar é o da Assírio & Alvim, de 1999, organizado por Richard Zenith, um americano que aprecia muito a Literatura Portuguesa, e lhe fez mais umas afinações e acrescentos. É um “Prémio Fernando Pessoa», gosta de Portugal.  

Zenith não se pôde afastar muito do trabalho inicial, indo encadear os fragmentos da maneira que achou mais racional, ao todo 481, para além de Os Grandes Trechos, privilegiando a sequências das ideias em relação à sua cronologia. Oscilou entre os seus estados de alma, as suas vivências, os seus traumas, as suas incursões pela moral, pela metafísica, pela maneira como olhava a natureza e contemplava Deus, toda a sua visão do mundo. A disposição dos textos não é perfeitamente linear, porque tal não o permitem os textos, alguns dos quais, mais extensos, acrescentou ao fim. Esta obra de Fernando Pessoa é a publicação que está mais próxima de um romance, que ele não chegou a escrever. 

Seja dito, que sendo um trabalho em prosa, grande parte das suas páginas são perpassadas de uma inextrincável poesia, de cogitações toldadas de profunda metafísica, de confissões enternecedoras, quase uma autobiografia da sua consciência, que não dos seus feitos, das suas realizações, pois ele privilegiava o pensamento em relação à ação, o sonho em relação à realidade. Gostava de se isolar do mundo para se encontrar a si mesmo. Tinha horror às multidões, dificuldade em envolver-se em qualquer relação mais profunda –, cultivava a solidão. Dos fragmentos selecionados apenas doze são de Pessoa, os restantes são atribuídos a Bernardo Soares.  

Como escreveu Zenith na sua introdução, muito importante, e Bernardo Soares o foi dizendo no decorrer do livro, o que temos aqui não é um livro, mas a sua subversão e negação», um anti livro. Esta cheio de descrições profundas, temos de gastar muita reflexão para o podermos apreender. Daí que talvez seja aconselhável ao leitor o ir lendo aos poucos, já que ele exige muito trabalho dos neurónios. O Livro do Desassossego, é a obra de Fernando Pessoa que podemos recorrer para melhor o compreendermos. Nos seus fragmentos são feitas inúmeras incursões pela Filosofia, pela Moral, pela Religião, pela Política, pela Psicologia, pela Sociologia, dando-nos uma visão alargada do mundo. É uma romagem ao interior da sua própria alma em tom pessimista: um microcosmos que parece ser maior do que o mundo.



Estátua de Fernando Pessoa no Chiado, Lisboa

 

C) UMA APRECIAÇÃO DO LIVRO QUE NÃO O CHEGA A SER

 Trata-se de uma apreciação de um livro que, definitivamente, nunca o chegou a ser. Foi organizado a partir da sua ruína por mais do que um investigador. Da arca que deixou foram retirados fragmentos seus que justapuseram, pensando os pesquisadores de génios encontrar neles as suas raízes. O próprio Pessoa disse dele: Nestas impressões sem nexo, nem desejo de ter nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida (p. 54). Todavia, ele tem o propósito de o escrever, escreve no seu quarto da Rua dos Douradores, trabalha para o patrão Vasques: há alguns factos. Ele sente mais que reflete sobre a sua vida e o mundo, tomando às vezes posições contraditórias. Para ele escrever era uma terapia (p. 157). Cultiva muito os paradoxos e as metáforas. Está cheio de introspeções profundas, de meditações metafísicas, de descrições, muito focado no seu Ego.

                Todavia, mesmo quando se contradiz, é paradoxal, isto não tira verdade à realidade, talvez lhe acrescente até facetas de um mesmo objeto que se procure aclarar. O mundo será complexo, difícil de explicar, e ele mesmo não será uno, mas múltiplo; está num lugar que não é de sítio nenhum, parece perdido no infinito, a vaguear na sua consciência, viveu muitos tempos, muitos e nenhuns lugares, toda a realidade é transformada em sonho. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver (p. 120). Por outro lado, era-lhe impossível, ser feliz, pois dizia ele: A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor (p. 110). Às vezes mete pena vê-lo saborear com um deleite triste a sua obra, que só será apreciada quando ele tiver morrido há muito. Como se transportasse atrás de si uma maldição, diz: Serei compreendido só em efígie (p. 198).

                Apesar de fragmentário, escrito durante cerca de vinte anos, às vezes como um diário, de forma nem sempre regular, toca os mais diversos temas e estados de alma, o leitor ao lê-lo tem a noção que está perante uma obra com uma estrutura consistente, que o seu todo é coerente, que há uma verdade qualquer, ainda que transcendente atrás de tudo o que está escrito. É uma busca contínua do autor à procura de si mesmo, no meio de um permanente tédio, cansaço e náusea, que sabe nunca ir alcançar, mas que lhe é imanente. Ainda que ele o considere um livro estúpido, resultado das impressões diárias do seu desconvencimento com frio (p. 391). Num momento de baixa estima disse mesmo: Este livro deve ter um título que deve ter um título mais ou menos equivalente a dizer que contém lixo ou intervalo, ou qualquer palavra de igual afastamento (p. 504).

                A ação repugna-o, ele quer viver do sonho e para o sonho (p. 370), foi para ele sempre uma moléstia. Sente-se um nulo social, mas vislumbra um universo imenso na sua consciência, por isso se refugia no sonho, para fugir da realidade. Mas ele não tem como fugir-lhe, por que a páginas 508 afirma: a única coisa que existe para mim são as minhas sensações. A infância pesava-lhe muito sobre o que foi. Havia qualquer vazio nele que o obrigava a emigrar mesmo para outras vidas, a ser o «outro» para se esquecer si mesmo. Mas mesmo aí, longínquo, não encontra a paz que procura, a sua consciência é demasiado reflexiva para o aquietar. E ele sente com o pensamento e pensa com o sentimento. É extremamente infeliz: Nascemos já em plena angústia metafisica (p. 187). Sinto o tempo como uma dor enorme (p. 203). A morte é uma libertação (p. 273).

                O seu cansaço, termo que repete mais de uma dezena de vezes durante o livro, é tal que diz: De tal modo me converti em ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transforma num sentimento da imaginação – a memória de um sonho, o sonho em esquecer-me dele (p. 402). O conhecer-me em não pensar em mim. E neste torpor inferniza, queixando-se do terror que é sair das suas rotinas, da repulsa que sente ao tomar consciência da inconsciência de tudo que vê à sua volta. Para ele tomar uma decisão era aflitivo. Parecia-lhe imoral agir (p. 428), isso era privá-lo de sonhar. Agir entrava no domínio do ser, e existir é desmentir-se (p. 352). Para se defender do que o possa perturbar mergulha na solidão mais profunda, para o esquecimento da alma (p. 407).

                Na cidade de Lisboa, na Rua dos Douradores, cansado do seu papel de guarda-livros, ele contempla o mundo, que transporta todo para dentro de si: O universo sou eu (p. 145). Tudo o que vê é já um reflexo do que terá sido. Na ânsia de se esquecer de si mesmo divagava pelo sonho: a sua interioridade revia-se na exterioridade e vice-versa. Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente (p. 284). Perde-se naquilo que vê ou questiona, na metafísica do mundo, obtendo nisto alguém alento, talvez quase só literário: segue o curso dos seus sonhos, para ele mais poderosos que a realidade. Fechado sobre si, quer-se resguardar do mundo: Agir é a condenação violenta do sonho (p. 247).

                Talvez se Fernando Pessoa durasse mais alguns anos viesse a organizar este livro à sua maneira, o aliviasse de algumas repetições, polisse algumas das suas arestas, lhe fizesse alguns acrescentos importantes. Numa carta que escreveu a João Gaspar Simões, ele diz: Sucede que este «Livro do Desassossego» tem muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo (p. 504). Mas não o tendo feito o livro saiu mais espontâneo, quase puro, livre de contaminações de artifícios que o esvaziassem da sua pureza inicial, ainda assim em estado bruto é mais natural.  É uma biografia no domínio das ideias, encenada na sua consciência, em que triturou a realidade de sonho. Este livro é só um estado de alma, analisado de todos os lados, de todas as direções (p. 437). No aparente caos deste livro submergem ideias lucidíssimas. Este homem sofredor, inadaptado à vida, no seu dizer: um erro metafísico da matéria (p. 128), que não cabia dentro de si mesmo, era um génio sofredor.

Martz Inura, 31/05/2020


 

Post Scriptum 1

Carta a Fernando Pessoa

«Meu caro Fernando, vi o bilhete que deixaste em casa: «I know not what tomorrow will bring». Eu sei o que se passou a seguir e vou contar-te: «Tiveste muita sorte, levaram-te para o Hospital de S. Luís dos Franceses, e a 30 de novembro morrias como qualquer comum dos mortais. Estou a escrever-te, porque, apesar de teres sofrido lá um bom bocado, depois nem te deves ter dado conta do teu passamento para fazeres as tuas notas. Partiste cedo, foste um privilegiado, como Mozart, Edgar Allan Poe, Schubert, Emily Brontë, Kafka, até Cristo teve a tua sorte. Desembaraçaste-te finalmente desse cansaço constante que te atormentava, do tédio que era a tua vida na Terra. Aquela náusea que te perturbava desapareceu. Realmente, ainda não sabemos com que intenção o Tempo nos criou sem termos pedido, colocando-nos num Universo que segundo dizem não é feito de nada, resulta apenas de uma energia desconhecida, imaterial, porventura fruto de uma vontade, que falsamente se materializa em bolinhas invisíveis. Olha, os teus amigos não te enganaram quanto ao teu valor, agora és célebre, és «compreendido em efígie», todo o mundo fala de ti, como na tua inconsciência ambicionavas, mas isto não te deu proveito nenhum. Já tinhas essa noção, não te estou a dar novidade nenhuma. Mandaram-se para os Jerónimos, e aquilo lá é frio e monótono, passei por lá e não gostei, nos «Prazeres» estavas melhor, o Herculano também já se queixou. Além disso, deixaste lá sozinha a Ofélia, que tanto te amava, o amor dela sobreviveu à tua e à morte dela, dava àquele lugar um ar romântico: tiveste medo de casar com ela quando vivo, mas ela quis-te mesmo como marido depois de morto.

Agora põem o teu nome a tudo, às ruas, às escolas, às universidades, massacram inocentes alunos em exames depressivos, obrigando-os coscuvilhar a tua vida toda, a estudar as tuas ideias, até criaram um prémio com o teu nome, mas não é por gostarem mesmo de ti, a maioria nem te leu, não sabe quem tu foste, é só para vaidade deles próprios, para te roubarem um pouco da tua glória. Tu sabias bem que «emocionalmente nunca tiveste nenhum amigo, embora fossem todos simpáticos para ti». Bem, talvez a tua mãe um dia te tivesse amado, bem como o teu pai, mas por pouco tempo, e a Ofélia. A vida aqui no planeta continua a ser o mesmo tédio de sempre, o mesmo cansaço, uma náusea de manhã à noite, só que mais acelerado. O Sartre também se deu conta disso, podes falar com ele se o encontrares por aí. Temos de escrever qualquer coisa para que nos esqueçamos de nós próprios, ou absorvemo-nos a exercer a nossa animalidade mais crua e primária que nos distraia na inconsciência. Só assim conseguimos fugir à solidão. E agora temos aqui as placas, ecrãs, redes sociais para vivermos virtualmente: – isto é uma praga: ressuscitaram os mortos-vivos. Deste modo, facilmente nos esquecemos de nós próprios para nos diluirmos nos outros. Só em sonho se vai suportando ainda isto, quando não somos confrontados com pesadelos, até mergulharmos no vácuo, que o Tempo há de criar para nos engolir a todos.

Olha, a ciência ainda não conseguiu provar a existência de Deus, nem o vai conseguir, ela não sabe lidar com os infinitamente grandes nem com os infinitamente pequenos, senão por abstração, que é o mesmo que reconhecer que não percebe nada da realidade e passa por cima dela por esta ponte metafísica. E só Ele podia dar sentido a isto, nem que O tivéssemos de inventar, mas não tem havido ninguém com a imaginação e inteligência suficientes para o fazer como Ele é ou será à prova de dúvidas. Fizeram-te uma estátua no Chiado, estás lá ao sol e à chuva dia e noite, como se já não bastasse o que sofreste, a ponto de te teres multiplicado, pretensamente até ao infinito, para que te pulverizasses em átomos, e de ti já não restasse nada, ou talvez tudo. Quando lá passo tenho pena de ti. Felizmente que é tudo sonho, não te conseguem fazer mais mal do que fizeram –, toda a vida a viver sem amor, desterrado para a solidão mais absoluta, encarcerado na tua consciência. Bem, ao menos deram-te uma cadeira para te sentares e poderes descansar, mas os pombos às vezes vão pousar-te no chapéu, e imagina o que lá farão? À tua arca não a deitaram fora, também se o tivessem feito não te faria grande diferença, tudo é um tanto inócuo e nulo. Não falta quem ande por lá a escabulhar os teus estados de consciência, a tentar decifrar as tuas reflexões. É agora quase tudo o que de mais visível resta de ti. Onde a tua presença se nota mais e resplandece é no reino do invisível!  

                    Ricardo Campos

 

 

 

POST SCRIPTUM 2

De OS FILHOS DE UM DEUS ADORMECIDO

Homenagem Póstuma a Fernando Pessoa

Fernando Pessoa foi um jovem criado num meio de alguma ausência de afetos. Viu-se desde muito cedo quase entregue a si próprio, com o padrasto sempre em cima da mãe a engravidá-la. O mundo dele era um imenso deserto, uma náusea permanente. A vida doía-lhe. Disse ele: De tanto lidar com a sombra, eu mesmo me converti em sombra (p. 412). Para se suportar a si e à vida refugiou-se no sonho. Era contra o suicídio e resistiu estoicamente até à morte a vida que lhe deram sem ter pedido. Leia-se o que ele disse: A noite que venha, que cresça, que caia sobre tudo e nunca se erga. Que esta alma seja o meu túmulo para sempre, e que se absolute em treva e eu nunca mais possa viver sem [nem] sentir ou desejar (p. 477). E mais à frente: Vendo-me por fora, como quase sempre me vejo, eu sou um inapto para a ação, perturbado ante ter que dar passos e fazer gestos, inábil para falar com os outros… (p. 485). Ele foi criado por engano pela Providência. Quanto ao Livro do Desassossego ele diz: Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida!... (p. 492). Para a Marcha Fúnebre do Rei Luís Segunda da Baviera, escreveu: E para ti, ó Morte, vá a nossa alma, a nossa crença, a nossa esperança e a nossa saudação! Ele comungava da dor e da paixão do nosso Luís. E mais à frente especificava o que era a sua existência: A vida, espiral do Nada, infinitamente ansiosa por o que não pode haver (p. 493). Ele pertencia à comunidade dos que não apreciam a existência, dolorosa e molesta. Ele disse: A minha vida é inteiramente fútil, inteiramente triste (p. 358). E sobre a humanidade fez a pergunta: O que está tudo isto a fazer aqui? (p. 102). E tinha razão, só com a consciência em lume brando se pode levar esta vida sem qualquer queixume. Afinal, o Universo visível é minúsculo, os seus limites são conhecidos e são aqui ao lado, por outro lado é capaz de se comprimir na cabeça de um alfinete, a ponto de termos de inventar outros maiores dentro de nós; a Terra sempre foi demasiado pequena para quem cá viveu, e está cada vez mais poluída, sob demasiada pressão ambiental, difícil de viver, com os seres humanos a acabarem com as outras espécies: – é uma grande prisão, com uns a comerem-se aos outros, e de diversas formas, por vezes subtis; a Providência desiludiu-os, parece ter criado as leis da natureza e depois ter ido dormir, deixado andar tudo por aí ao Deus-dará.

Os Filhos de um Deus Adormecido são um grupo de humanos, desterrados nestes confins do universo, incapazes de fugir ao Tempo e ao Espaço, que se mostram estarrecidos como houve alguém capaz de os criar sem terem pedido –, à força, pondo-os a viver num mundo para o qual não veem sentido –, absurdo. Eles nem sequer aspiravam à felicidade, que, bem vistas as coisas, é uma ofensa a quem está a sofrer, e consideram os céus que para aí inventam uma luxúria desnecessária, stressante. As suas parcas coisas sejam distribuídas pelos apreciadores da Vida. Eles abdicavam de tudo para permanecer na Paz Absoluta, beneficiar do tal Eterno Descanso. Não era muito o que pediam! Os seres humanos, isso está mais que estudado, são os animais mais inteligentes à face da Terra, têm feito coisas admiráveis, mas são também os mais cruéis: capazes de continuarem a esfaquear a vítima, estando ela já morta; que têm prazer em fazer sofrer e ver agonizar os seus semelhantes; que aplicaram as formas mais aberrantes para torturar quem se lhes oponha; que foram capazes de inventar um Inferno a arder eternamente para supliciar quem não pensasse como eles! Mesmo aqueles que se querem passar por «bons» não são de confiar. As pessoas santas são em número muito reduzido para contrabalançar com a esta imensa barbárie. Os Filhos de Um Deus Adormecido, perguntam: Com que direito, com que justiça alguém os obrigou a nascer num mundo destes sem terem pedido?! Se não tivessem nascido sobraria até mais bens para os que gostam de viver, de ter, de fruir. Admiram-se como a Natureza, que tem dado tantos exemplos de sapiência e bondade tenha errado aqui tanto! Só uma Luz Transcendente lhes poderá dar uma resposta. Fernando Pessoa tentou abrir uma porta à esperança, fruto talvez da sua paciência e bonomia, mas terá sido um ápice da sua desgraçada vida, quando disse: Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. 

                                                                                   Dominus Fritz

 


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