STENDHAL





Resultado de imagem para stendhal

 
STENDHAL
O Vermelho e o Negro
Tradução Maria Manuel e Branquinho da Fonseca
BIBLIOTECA VISÃO/ COLEÇÃO NOVIS (2000)


O HOMEM
            Henri-Marie Beyle (Stendhal), nasceu em Grenoble em 23 de janeiro de 1783 e faleceu em 23 de março de 1842, em Paris. Órfão desde muito cedo, ficou ao cuidado do pai e de uma tia. Foi um tanto rebelde à educação religiosa e monárquica. Era republicano e um tanto revolucionário. Em 1796 distinguia-se em matemática na Escola Central de Grenoble. Mandaram-no para a Escola Politécnica, mas adoeceu, acabando por se empregar no Ministério da Guerra. Era agora seu protetor um parente afastado, Pièrre Daru. Como ajudante de general foi para a Itália, onde cultivou a literatura e começou a escrever sob o nome de Stendhal. A vida militar não o seduziu. De seguida é intendente do exército francês em Brunswick, servindo a França de Napoleão, de quem era partidário, e em diversas funções. Em 1814, com a sua queda fixa-se na Itália, na altura sob o domínio da Áustria. Mas mesmo ali acabou por ter problemas. Tinha posições políticas favoráveis aos italianos, na altura lutando pela sua independência, pelo que foi perseguido pelos austríacos, tendo de abandonar aquelas paragens, passando por Londres, só regressando a Paris em 1821. Teve uma vida social e amorosa intensa. Pôs-se a escrever biografias sobre músicos como Haydn. Mozart, Rossini, sobre escritores como Racine e Shakespeare, falando de cidades como Roma, Nápoles, Florença e Angoulême. Escreve romances, disserta sobre a história da pintura em Itália. Porém, a sua obra só seria reconhecida cinquenta anos mais tarde. Morre de apoplexia em plena rua em Paris aos 59 anos de idade.  


A OBRA
            A obra de Stendhal é variada e vasta. Ele era possuidor de uma grande cultura, nomeadamente no âmbito da literatura, pintura, teatro e música, conhecia bem alguns países vizinhos, tinha uma visão abrangente da sociedade do seu tempo. Muita da sua obra foi publicada postumamente, distinguindo-se aqui, como de leitura obrigatória:
O Vermelho e o Negro (1830)
A Cartuxa de Parma (1839)


Resultado de imagem para filme o vermelho e o negro
Do filme O Vermelho e Negro (1983) com Gregory Peck e Christopher Plummer de Jerry London

O ROMANCE O Vermelho e o Negro

– PERSONAGENS PRINCIPAIS
Julien Sorel: É a  personagem principal do romance. Filho de um carpinteiro de Verrières, dado às letras, o pai manda-o para o seminário. Contudo, ao fim de algum tempo desencanta-se daquela vida, e é o cura Chélan, que simpatiza com ele, que o vai recomendar como percetor ao senhor Rênal, em Verrières. Enamora-se ali da senhora Rênal. O marido para evitar o escândalo fala com o abade Pirard, que o indica para secretário do senhor de La Mole, em Paris. Mas Julien é um jovem apaixonado, altivo, e enamora-se por Matilde, a filha do patrão. É um indivíduo mediano, magro, pele clara, cabelos castanhos, muito sedutor. Possui uma prodigiosa memória, é inteligente e ambicioso, consciente da sua classe social de origem, e com aspirações a subir socialmente. É ambicioso e gosta de se vestir bem, tem sonhos de glória de Napoleão. Apesar de dizerem que sabia a Bíblia de cor, não acreditava em Deus, que considerava déspota, cheio de ideias de vingança, como escreve no início do capítulo XLII, Segunda Parte. Admirava Napoleão e as ideias revolucionárias do seu tempo, odiadas naquela época, a da Restauração. Facilmente seduz e se deixa seduzir. Atenda-se que a vida dele no romance se estende dos 18 aos 23 anos.   

        Senhor Rênal: Presidente da Câmara Municipal de Verrières. Dono de uma fábrica. Homem abastado, adverso às ideias liberais e jacobinas, com grande jeito para a gestão da sua empresa. Ascende à nobreza, é seguidor das regras aristocráticas, contratando Julien Sorel para percetor dos seus filhos.
            Senhora Rênal: Esposa do senhor Rênal, mãe de três filhos. Mulher a quem o marido negligencia, um tanto carente e ingénua, reservada, que se deixa seduzir pelo percetor dos seus filhos, Julien Sorel. Manipulada pelo seu confessor, denuncia numa carta Julien ao marquês de La Mole.
            Senhora Derville: Amiga da senhora Rênal, que Julien chegou a pensar em conquistar, e que interferia das relações daquela com este.
            Elisa: Criada dos Rênal, que se apaixona por Julien, e vai desempenhar um papel na intriga contra este.

            Fouqué: O único amigo de Julien, negociante de madeiras, liberal, que sempre lhe manifestou o seu apoio, até na morte. 
            Senhor Valenod: Vice-presidente da câmara de Varrières, diretor do asilo e rival de Julien na corte que faz à Senhora Rênal. Homem encorpado e formoso, de bigodes negros. Tem um conflito latente com o senhor Rênal.
            Cura Chélan: É o padre de Verrières, protetor de Julien, a quem recomenda ao senhor Rênal. É amigo do abade Pirard.
            Abade Pirard: Diretor do seminário de Besançon, que dá proteção a Julien. É jansenista e vê-se obrigado a pedir uma cura em Paris para renunciar ao cargo. É ele que indica o seu protegido ao marquês de La Mole.
            Abade Castanède: Vice-diretor do seminário, hostil a Fillard e às suas ideias, e, portanto, inimigo de Julien.
            Abade Fillard. Vigário de grande influência em Verrières, ligado ao bispo de Beçanson. É também inimigo do padre Pilard e do marquês de la Mole por uma questão de terrenos.

            Amanda Binet: Criada de um café, que conheceu Julien, e com quem se envolveu, quando este vem para Paris.
            Marquês de La Mole: Ministro do rei, em Paris, que emprega como secretário Julien Sorel. É o pai de Matilde por quem ele se enamora, contra a sua vontade.
            Matilde de La Mole: Uma loira de olhos azuis, filha do marquês de la Mole. É inteligente e espevitada, sonhadora, zomba dos homens da sua classe e aprecia o secretário do pai, Julien, que lê Voltaire.
            Marquês de Crassenois: Pretendente a Matilde, com quem está prestes a casar, conforme o gosto do pai dela. Morre num duelo na defesa da honra da sua amada.

            Senhor Charles de Beauvoisis: Aventureiro com quem Julien tem uma disputa que o leva a travar um duelo, de que se feriu. Mais tarde serão amigos.
            Conde de Altamira: Amigo de Julien, próximo de madame de Fervaques, condenado à morte em Espanha.
            Senhora Fervaques: A marechala, uma mulher puritana com quem Julien se procura dar bem para chegar a Matilde. 
            Príncipe Kurasoff: Um nobre que vai arranjar uma estratégia a Julien para ele reconquistar Matilde, simulando uma paixão pela senhora Fervaques.



– BREVE RESUMO DO LIVRO
Primeira Parte
            O Vermelho e o Negro está dividido em duas partes, cada uma correspondendo nesta edição a um livro. Esta primeira parte é composta por 30 capítulos. Nela se descreve a vida de Julien Sorel, filho de um carpinteiro, que não admirava os intelectuais e o manda para o seminário. Mas ali ele também não se dá, é admirador de Napoleão, não segue as ideias jansenistas. Através da influência do cura Chélan entra no castelo do senhor Rênal como percetor dos seus filhos. Tem uma vasta cultura e domina o Latim, conseguindo conquistar os filhos do patrão. Apesar de tímido, tem um caráter altivo e romântico, e facilmente se deixa atrair pela senhora Rênal, uma mulher que apesar de casada nunca conheceu o amor. Há ali uma criada, Elisa, que ele rejeita, e que vai favorecer a intriga, espalhando o boato dos seus amores ilícitos. O senhor Rênal recebe uma carta anónima e a situação complica-se. Para remediar as coisas fala com o abade Chélan, que o recebe Julien de volta no seminário de Besançon. No seminário já não é bem aceite pelos seus camaradas. Tem de ser o padre Pirard, que simpatiza com ele, a arranjar-lhe um lugar de secretário na casa do marquês de La Mole. Ainda consegue ter um encontro secreto com a senhora Rênal, a sua paixão é atroz. E lá segue para Paris para assumir as suas novas funções.  

Segunda Parte
            A Segunda Parte consta de 45 capítulos. Julien chega a Paris numa carruagem da mala-porta: Está farto do ambiente da província, a grande capital fascina-o. O marquês de La Mole rapidamente vê nele grandes qualidades, e o mesmo se dá com a sua filha, Matilde, farta do pedantismo dos aristocratas seus amigos, que lhe admira a sua inteligência e vivacidade. Matilde é uma jovem de rara beleza, facilmente Julien se consegue apaixonar por ela. Além disso, era uma maneira de subir socialmente. O pai opõe-se àquele casamento, instado pela filha, que por fim diz estar grávida. Ele, para evitar maior vergonha tenta enobrecer Julien Sorel, e  faz com que seja promovido tenente dos hussardos em Estrasburgo. Entretanto, por influência do seu confessor, a senhora Rênal denuncia ao marquês de La Mole a ambição de Julien naquela união. A partir daqui ele passa a opor-se de modo determinado ao casamento da filha. Julien, desvairado, vai à igreja de Derrières, onde a senhora Rênal assiste à missa, e desfere-lhe dois tiros. É preso em Besançon, pensa que a matou, mas só a feriu num ombro, ela depressa recupera. Na prisão recebe a visita de vários amigos, incluindo a de Matilde e da senhora de Rênal que o querem salvar. Mas ele é orgulhoso, e mesmo no julgamento, tomando a palavra, pede a sua condenação num discurso hostil contra as classes dominantes. Tem vários inimigos, entre eles, o senhor Valenod, que, pertencendo ao júri, leva a que o condenem à guilhotina. Nem mesmo a opinião pública favorável lhe valeu. Ainda se esperava um apelo ao rei que não resulta. Depois de executado, o seu velho amigo Fouqué compra o corpo ao carrasco. Matilde que lhe dê a cabeça dele, que beija na testa. Procede-se ao seu enterramento numa gruta de uma montanha que ele apreciava, a qual transformam num sepulcro sumptuário. A senhora Rênal morre ao fim de três dias, depois de beijar os filhos.


– APRECIAÇÃO GERAL

            O Vermelho e o Negro faz uma ponte entre o romantismo e realismo, ainda que vá lá mais atrás e cite os clássicos como Virgílio, Horácio e Cícero. Se, como romântico, ele descreve os amores exacerbados de Sorel com a senhora Rênal e Matilde, retrata a mulher de uma sedução irresistível; tinge as personagens de um excessivo sentimentalismo; cultiva o gosto pela morte, quando nos fala de suicídios por amor, a imolação perante a injustiça de uma classe exploradora, sublima a paixão em túmulos nas montanhas; e ainda quando se amarra ao nacionalismo napoleónico; idealiza uma sociedade que urge revolucionar, tem fome e sede de justiça. Como realista, ele procura descrever a sociedade no seu cerne, não se ficando pelo drama, mas indo ao fundo do problema, não ignorando a sua parte política, económica e social. O próprio enredo teve inspiração num caso real, para que o drama não fosse uma mera mistificação. Ele vê as diferentes relações sociais com algum distanciamento para as poder criticar, sente-se possuído pela ciência, pelas ideias positivistas, então a florescer. Tem preocupações em ser objetivo, verdadeiro. Sobre algumas cenas avança com preciosos detalhes, e como que pretende aproximar a realidade, tornando-a mais evidente e credível, como se fosse presenciada por ele.

            É um romance com uma componente psicológica muito elaborada, por vezes com dois focos sobre a mesma personagem, interpretando com grande pormenor e rigor o íntimo de cada uma, que parece ler. Desde Julien Sorel, apaixonado, inteligente, ambicioso, imprevisível, até Matilde, bela, mas farta dos vícios da sua classe, culta e sensível. Stendhal procura analisar as personagens em toda a sua amplitude, indo por isso até ao seu passado, que as vai marcar e serve para explicar, até às preocupações e paixões do presente, no qual lutam com os seus diversos recursos, que inclui a agressividade e a hipocrisia, mas voltado para o futuro, para as suas ambições, para a sua afirmação pessoal, para os seus legítimos desejos de ascensão social. Ele já tinha ouvido a ópera Manon Lescaut de Giacomo Rossini, analisado os amores tempestuosos de Nova Heloísa de Jean Jacques Rousseau, sentido o lirismo vibrátil de Cartas de uma Religiosa Portuguesa. Frequentemente passa para o leitor o próprio pensamento das personagens, usando a ferramenta narrativa: «dizia para consigo», descrevendo em pormenor a motivação das mesmas. Num período de revoluções, grandes dramas, cruzamento de classes sociais, propício a amores inconvenientes, até ali impensáveis, a paixões exacerbadas e violentas, que chocaram aquela época, é natural que ele lhe tente dar alguma racionalidade a estes comportamentos, tornando-os credíveis.  

            O livro possui com uma forte componente social forte. O enredo passa-se na época da Restauração em França (após a queda de Napoleão, entre 1814 e 1830). Um período muito conturbado da História. O autor focaliza os conflitos na sociedade segundo três eixos. A oposição entre o povo e a alta burgesia e a nobreza; os primeiros ocupando os lugares mais baixos da escala social, prejudicado na distribuição da riqueza e na administração da justiça; e os segundos, detentores da riqueza e detentores de grandes privilégios. A oposição no clero entre os jansenistas e os jesuítas: os primeiros ligados à ideia da Providência, com uma moral complexa difundida por Otto Jansenius, bispo de Ypres; e os jesuítas, graves, bem organizados, voltados para a caridade, missionação, criação de escolas, a colarem-se às monarquias para reforçarem o seu poder, pregando a obediência ao Papa. E ainda uma oposição entre a cidade e a província: entre Paris cosmopolita, onde tudo se decide, as relações sociais são mais permissivas, com muita hipocrisia à mistura, grande apego aos bens terrenos e às honrarias; e Verrières, recolhida no passado, pacata, mesquinha, muito dominada pela igreja, conservadora, desterrada lá longe no seu mundo pequeno-burguês. O drama é muito aliciante, tendo várias adaptações ao cinema e à televisão.

            Esta obra, escrita por um autor para alguns franceses considerado estrangeirado, que escreveu neste romance logo no início da Segunda Parte: A história da Inglaterra serve-nos de espelho para o nosso futuro, poderá não agradar a todos. Alguns leitores acham-no chato, cheio de pontos obscuros, com erros cronológicos, carácteres ambíguos. Temos de ter em atenção que é uma obra de 1830, segue o estilo da época, e em muitos aspetos está muito avançada. Sobre o seu processo narrativo temos de refletir que o estilo do romance atual mais difundido, cheio de ação e suspense, pode ser no futuro considerado superficial, palavroso e pouco sério, como um produto que se pretende vender a todo o custo. Temos de nos concentrar em cada época e aceitar as diversas maneiras de escrever. O tempo recuperou este romance para a História da Literatura, e por algum razão o fez, não é um gosto isolado aqui e ali que vai beliscar a sua grandeza. É preciso alguma cultura histórica e política para o ler. Passa-se, como se disse, no período da Restauração de Luís XVIII, em transição com a o da Monarquia de Julho, de Luís Filipe, mais fortemente liberal, mas cheio de contradições. Travava-se então uma disputa renhida entre os realistas e os liberais. Fala muito de Danton, de Napoleão, de quem era grande admirador. O posicionamento ideológico do autor pode levá-lo a valorizar as ideias revolucionárias, nem sempre favoráveis à Igreja Católica, revelando tendências ateístas. Nietzsche, por razões óbvias tece-lhe muitos elogios. Ele, no fundo era um lutador contra a ignorância e o crime, como afirmou no livro.

            Stendhal emprega uma linguagem simples, sem floreados, dando-nos uma visão bastante alargada da sociedade do seu tempo. Está na posse de muita da ciência e filosofia então emergentes. Inspirado pelo positivismo e pelo darwinismo, procura descrever a vida com objetividade. A isto não é estranho ter viajado pela Europa e ter apreciados outras visões do mundo. No livro vê-se que estava imbuído da subtileza da música de Mozart, da recente filosofia de Loche (defensor do empirismo, da liberdade e da tolerância), da nobreza da pintura italiana. É admirável como já consegue escrever desta maneira desenvolta e moderna em 1830. Mais do que uma história de amor, nós vemos o fluir da sociedade francesa daquele tempo nos mais diversos lugares e situações. O Vermelho e o Negro – cores porventura tiradas às roupagens rubras e ao rosto das jovens donzelas e contraste com o hábito negro dos seminaristas; mas também as da revolução, da coragem e da vida, em oposição ao conservadorismo, ao obscurantismo e à morte –, é um soberbo romance. Numa período de grandes transformações políticas, económicas e sociais, de cíclicas revoluções, com a afirmação da burguesia perante uma nobreza decadente, e a perda de privilégios da igreja, faz um belo retrato da França daquela época. Era partidário de Napoleão, mas punha nele algumas restrições e apostava no comportamento sério dos homens. Na página 80 deste livro, capítulo IX da Segunda Parte, escreve: Napoleão tinha roubado milhões em Itália… Só Lafayette não roubou. Era preciso muita coragem para se dizer isto nesta altura. 

12/01/2019
Martz Inura



Nenhum comentário:

Postar um comentário