Camilo José Cela
A Colmeia
Tradução
de Carlos Ramos
Livros RTP
(Leya) 2018
O
HOMEM
Camilo
José Cela, nasceu em Padrón, na Galiza, a 11 de maio de 1916, e faleceu a
17 de janeiro de 2002. Nasceu numa família da classe média, numa frateria de 9
irmãos, e veio a tornar-se marquês de Iria Flavia, já no tempo de Juan Carlos I.
A sua vida foi acidentada. Aos quinze anos foi acometido de tuberculose, de que
se veio a curar no sanatório de Guadarrama. Quando em 1936 eclodiu a Guerra Civil
participou ao lado das forças nacionalistas de Franco. Foi ferido por uma
explosão de granada perdida, que o retirou daquela guerra. Frequentou a
faculdade Complutense de Medicina, mas voltou-se para as letras, para as quais
se sentia mais vocacionado. Com a vida a fugir-lhe dedicou-se a seguir ao
jornalismo e casou. Todavia, era um humanista, e não pôde concordar
inteiramente com a política do ditador. A
Colmeia foi censurada em Espanha, mesmo sendo ele colaborador do regime, invocando-se
ser demasiado ousado no campo sexual, tendo inicialmente saído em Buenos Aires.
Nesta situação era natural que se tornasse cada vez mais oposto ao franquismo.
Quando foi implantada a democracia em Espanha aderiu ao novo regime, ocupou um
lugar na Real Academia Espanhola. De qualquer modo, não se pode negar que andou
um pouco ao sabor dos tempos, beneficiando com a política, que o valorizou. Mas terá seguido a sua consciência, as pessoaas também mudam. Entre outros galardões, em 1987 era galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias,
e em 1989 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel Literatura.
A
OBRA
Citam-se apenas alguns dos seus
livros mais importantes. Ele escreveu também poesia, contos, e tem obra
jornalística. Foi o iniciador do Tremendismo,
uma nova forma de neorealismos de inspiração italiana, ampliando a dimensão
mórbida da realidade.
–
La família de Pascual Duarte (1942)
– Pabellón de Reposo
(1943)
– La Colmena (A
Colmeia) (1942)
– San Camilo (1936).
S. Camilo (1951)
–
Oficio de Tiniebras, (Ofício de Trevas) (1973
– Rol de Cornudos
(Rol de Cornudos) (1976
– Mazurca para dos
mortos (Mazurca para Dois Mortos (1984)
– El asesinato del
perdedor (O Assassínio do Perdedor) 1994
–
La cruz de S. Andrés (A Cruz de Santo André) (1994)
– Madera de Boj
(Madeira de Buxo) (1999).
Ando à procura do livro na minha biblioteca |
O ROMANCE A Colmeia
PRINCIPAIS PERSONAGENS (no total à
volta de trezentas)
–
Dona Rosa. A dona do Café “La
Delícia”. Uma senhora dominadora, com fama de ter muito dinheiro no banco e um
tesouro algures escondido em casa. Trata com dureza os seus empregados, que
explora, e chega a ser violenta com clientes mal pagadores. Para ela, o café que
gere é o seu mundo. Fora dele só lhe fazem frente o bar de Celestino Ortiz e o prostíbulo
de D. Jerusa. Representa a insensibilidade social, a avareza, o
conservadorismo. Está voltada para o passado.
–
Martín Marco: Um aspirante a
escritor que vive na miséria. É uma pessoa sensível, com a consciência da
injustiça porque se rege aquela sociedade, a personagem mais autobiográfica do
autor neste livro. Tem dificuldade em arranjar emprego e se integrar na vida
social. Um tanto confuso, deambula pela cidade acossado pelas autoridades, possuído por um temor
que se apossou de quase toda a gente. É irmão de Filo. Representa a miséria, o
medo, a consciência social, a mudança. Está voltada para o futuro.
–
Filo e Roberto Gónzález. Um casal com dificuldades económicas, cuja mulher
procura a todo o custo garantir a sobrevivência e manter as aparências. O
marido não para nos empregos. Têm cinco filhos e uma filha, Juanita, a quem descobrem encontros
secretos. É um modelo de família a viver em dificuldade, mas onde ainda preside
o amor.
–
Sr. Roque Moisés Vasques e D. Visi. Um
casal menos estruturado. D. Visi é irmã de D. Rosa, que considera o cunhado das
piores pessoas do mundo. Ele engana a mulher, mas esta não o reconhece. Uma das
suas filhas, Julita, é muito saída.
–
Paco e Victorita: Prisioneiros do destino. Victorita prostitui-se para
acudir à doença de Paco, de quem está noiva. A mãe é contra aquele casamento.
Ele está tuberculoso e é preciso acudir-lhe, já que todos se parecem esquecer
dele.
–
Pablo Alonso e Laurita, que se envolvem logo ao princípio do livro por motivos de
natureza económica. Ele olha as mulheres mais pelos seus dotes que pela sua
aparência.
–
Ventura Aguado e Julita: Os dois
mantém uma relação sustentado por motivos de natureza sexual.
–
D. Matilde e D. Assunção,
frequentadoras habituais do café de D. Rosa, onde gostam de falar.
–
Menina Elvira, de facto uma senhora
já de idade, ainda solteira, que faz vida de café, fugindo à solidão.
–
Suarez: Homossexual, filho de
Margot, a quem assassinaram. É reprimido pela sociedade.
– Ramón: Dono de uma padaria, casado com
Paulina.
– Francisco Robles: Médico que tem muito
que contar.
– Ramona Bragado: Dona de uma leitaria.
– D. Mario de la Vega: Dono de uma
tipografia que usa Victorita.
– D. Jerusa: Dona de um bordel,
consciente do seu mister.
– Celestino Ortiz: Dono do bar "La Aurora"
– Celestino Ortiz: Dono do bar "La Aurora"
– Julio García Morrazo: Um guarda que não gostava de trabalhar.
Do filme La Colmena (1982) de Mario Camus
Capítulo primeiro
A narrativa deste capítulo estende-se
por um dia: de manhã à noite. Começa por entre as mesas do café de D. Rosa, com
ela à volta dos seus clientes, toda ufana em dar-lhe vida. Para ela aquele café
é o centro do seu mundo, e o vai ser também para os leitores deste livro. Fala-se
da vida profissional de algumas pessoas, da guerra na Europa, de tabaco, cuja
qualidade serve para distinguir as pessoas e sair daquele aborrecimento. D.
Rosa dirige os seus criados com aspereza ou mesmo violência, e tem diálogos afirmativos
com o engraxador e com diversos frequentadores do café, entre os quais o
empregado da tabacaria. Os temas que ali se tratam são triviais, mas importantes
para aquela época, acabada de sair da Guerra Civil.
Capítulo segundo
Este capítulo começa por esboçar a
figura de Matín Marco, um homem de óculos de arame, sem recursos, que não pagou
um café que tomou, e é expulso e perseguido daquele estabelecimento a mando de
D. Rosa. Ressalta desde logo a sua situação de miséria, que afeta em maior ou
menor grau outras pessoas. Sobressai a seguir Pablo Alonso, um jovem bem
parecido e atlético que atrai as mulheres, entre elas Laurita. Conversa do Sr.
Roberto González, seu patrão, no bar do Celestino, onde Paco e Martín se
encontram. Vê-se neste capítulo a situação de marginalidade e miséria daquela
gente, facto realçado com o relato de duas senhoras já velhas, mortas à
punhalada. Entram outras personagens interessantes como o Sr. Ibrahim de
Ostololaza. O caso chega a um juiz.
Capítulo terceiro
Começa com Pablo a jogar com o Dr.
Francisco Robles uma partida de xadrez na Rua de S. Bernardo. Estão ali também quatro
parceiros a jogar dominó e um médico de doenças secretas, o Dr. López-Páton. Isto
passa-se à tarde, e dá uma ideia ao leitor de um mundo aborrecido e insípido,
desprovido de grandes ideais. Voltam ao café de D. Rosa, Laurita mete conversa com
Pablo. Aparece o empregado da tabacaria. D. Rosa trata com sete pedras na mão
os seus empregados. Aparecem ali mais uma série de personagens como Consórcio
López, Petrita, Martín Marco e Ventura Aguado, e tantas mais. Este capítulo
devia estar intercalado entre o quarto e o quinto.
Quarto capítulo
O guarda Julio Garcia Morrazo, que antes
andava a pedir com o pai que era cego, depois de vir da vida militar entrou par
a guarda. O pai, sabendo que ele não gostava de trabalhar, meteu uma cunha para
ele entrar para aquela corporação. Segue-se a narrativa de Victorita, que ama Paco,
um tísico, contra a vontade da mãe. Numa cena a seguir, Roberto muda as chaves
das calças e tem uma mulher à porta de casa. D. Ramona Bragado telefona ao Sr.
Mario de la Vega, dono de uma tipografia. No bar “Aurora, Vinhos e Petiscos”, Celestino
Ortiz tenta atrair clientela para ganhar mais uns cobres. Alguns casais
juntam-se, e as conversas convergem para o sexo, um tema muito recorrente no
livro para se sair do aborrecimento que é a vida.
Capítulo
quinto
Às oito e meia da noite do segundo
dia. Conversa de D. Visi, esposa do Sr. Roque, com Julita que desconfia dos
encontros da filha com Paco, que esta tuberculoso e precisa de cuidados
especiais. Chegam os sobrinhos da mulher de Pablo, Anita e Fidel, que lhe vêm
tirar do sossego. Victorita vai à Rua de Fuencarral à leitaria de D. Ramona Bragado,
anda preocupada com o namorado tísico. E assim, vão sendo apostos diversos
quadros neste capítulo, um dos mais volumosos. A ação estende-se pela noite
dentro, e revela alguns mistérios das personagens, que apesar de estarem muito
controladas umas pelas outras, têm uma individualidade própria, e muito para
esconder.
Capítulo sexto
Já é de manhã. Martín Marco descansa
no bordel de D. Jerusa. Esta administra com rigor e meticulosidade a sua casa, manda
as criadas lavar e engomar os lenções para que estejam sempre limpos e engomados,
e quer as camas asseadas. Embora se trate de higiene e asseio, dá a impressão
que pretende dar à sua casa um ar de respeito. É muito religiosa e todas as
manhãs vai à missa das sete. Algumas mulheres, como Margarita, Dorita, Purita e
Elvira, que se perderam à mão de homens só aparentemente sérios, trabalham ali.
Há gestos amorosos entre Purita e Martín Marco, mas a cidade amanhece, repete-se,
qual sepulcro, qual colmeia.
Final
Três dias depois, volta-se à
nostalgia da cidade de Madrid. Roberto lê o jornal enquanto a sua mulher Filo
chora e os os filhos assistem àquela cena, e continuará a chorar. D. Rosa vai
à praça às compras, procurando saber novidades. Pablo Alonso dobra o jornal e
vai ver Laurita. Na Rua dos Torrilhos, D. Jerusa encontra-se com Purita
Bartolomé e lê umas linhas de jornal. Num rádio ouve-se notícia sobre a reunião
de Yalta. Ventura Aguado fala com a namorada Julita. O Sr. Ramón fala com
Roberto, que faltou ao escritório, chegando depois a um acordo com ele. Martín
Marco vai ao cemitério à sepultura da mãe. Petrita fala com a patroa, Filo.
Rómulo lê o jornal na sua livraria. Martín Marco saiu por fim do cemitério com
um jornal, com o propósito de começar a trabalhar. Numa bijuteria pensa em
comprar uns brincos para Filo e outros para a sobrinha Purita. Quase toda a
gente se limita a ler as notícias, a ver a paisagem, é acomodada e passiva.
APRECIAÇÃO GERAL
A
Colmeia, um livro escrito a partir de sucessivas cenas à volta do café de D. Rosa,
é um pouco teatral. Inclui à volta de trezentas personagens, o que torna o
romance difícil para quem não conheça bem o meio, pois nem todos terão uma memória
tal que possa fixar numa primeira leitura tanta gente a vir ali representar. Não
possui um verdadeiro enredo, é de natureza fragmentária. As personagem são um
tanto passivas, desprovidas de grandes objetivos, rotineiras, com uma moral primária. A vida assim as moldou. A sociedade move-se por interesses não muito elevados, o dinheiro, o poder, o sexo. Nela
predomina a hipocrisia, não existe uma verdadeira solidariedade. Na música isto
lembraria Quadros de um Exposição de
Mussorgski, para o estarmos ali a ver os quadros ou a ouvir demoradamente os
trechos musicais. Porém, ao lermos o livro estamos constantemente a mudar de
cena. Temos de estar atentos se quisermos reconstruir um pouco daquela história.
Este livro faz uma crítica social à sociedade espanhola saída da Guerra Civil,
com uma classe dominante e uma classe dominada, a opressão do regime, uma economia arruinada pela guerra, com cidadãos passivos e desesperançados. O autor recorre ao sexo para dar alguma cor à vida, fala muito
de tabaco que serve para distrair e definir o status social.
A originalidade desta obra está em o
autor, a partir de milhentos cadinhos da vida, de bocados de alma, reconstruir uma cidade. Fixa padrões
sociais, estereótipos com que ele vai refazendo ali a vida. No estilo ele é um
experimentalista, um renovador da Literatura. A colmeia, propriamente dita, é feita de
células, de favos de mel. Os favos parecem-nos todos iguais, mas eles são na
realidade diferentes uns dos outros. Se os formos a analisar em pormenor havemos de lhes
encontrar muitas diferenças. Não são exatamente iguais, nem na configuração, nem
na quantidade do mel que possuem. Assim, são também as personagens deste livro. Se
lermos com profundidade esta obra ficámos de uma ideia geral de como era aquela
sociedade pós-Guerra Civil. Poderemos recorrer neste aspeto à pintura para
melhor explicar este livro. Ele emprega um estilo que parece impregnado de um
carácter histórico-realista do pintor
Gustave Klimt (1862-1918), bem expresso em O
Beijo: Cadinhos e mais cadinhos de gravuras, próximas umas das outras, não
totalmente dissonantes, mas diversas, às vezes correlativas, deixando antever a realidade através de
transparências.
Camilo
José Cela vai parar àquele café de D. Rosa e faz dele o centro do mundo
para retratar o que era aquela sociedade, saída da Guerra Civil, com muitas
pessoas a viver no limiar da pobreza, onde faltam empregos, apesar dos salários serem baixos. Há muita gente em Madrid posta à margem do sistema, sem perspetivas animadoras quanto ao futuro.
Fala-se da Segunda Guerra Mundial, mas ainda com os traumas da Guerra Civil a assombrá-la.
O autor emprega uma linguagem realista, sem pruridos, às vezes brutal. A
Academia Sueca distinguiu-o com o Prémio Nobel por empregar uma
prosa rica e intensa, com uma paixão controlada, mostrando uma versão provocadora
da realidade humana. Ele vai colocando cadinhos de vivências à volta deste
café, nem sempre ordenados, correlacionados, saltando para trás e para a
frente, trocando os capítulos, mas que no seu conjunto nos dão uma perspetiva
daquela sociedade, na realidade umpouco caótica no seu aspeto cultural, social e político (este erro, que
seria considerado imperdoável num jovem escritor, num escritor famoso torna-se
uma figura de estilo). Para além da sua originalidade formal, é o realismo, o
humanismo e a intensidade com que o autor escreve, que distinguem A Colmeia.
Martz Inura
07/12/2018
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