SOLJENITSINE
Arquipélago
de GULAG
Tradução
direta do russo de:
Francisco
A. Ferreira, Maria M. Llistó, José A. Seabra
Livraria
Bertrand (Volume I, 1975) (509 p.)
O HOMEM
Alexandre Issaiévich Soljenitsine nasceu em 11 de dezembro de 1918,
em Kislovodsk (Cáucaso), e faleceu em 03 de agosto de 2018 em Moscovo. Era
filho póstumo de um oficial czarista, morto num acidente de caça. O seu avô
materno, que tinha uma grande propriedade agrícola na região, apoiou inicialmente
a mãe, Taisia Soljenitsine, na sua educação, mas com a instauração do regime
comunista e a nacionalização da produção, já não pôde fazer como queria. Agora
o Estado era quem mandava. Dada a sua vocação para as letras e ciências foi
mais tarde parar à faculdade estatal de Rostov, onde estudou Matemática, mas já
então se interessava por Literatura, História e Filosofia, que estudava por
correspondência.
Rebenta a Segunda Guerra Mundial e
é chamado a serviço no exército, é promovido ao posto de capitão, comando uma bateria
de artilharia e é condecorado duas vezes. Sentia-se animado, era um livre
pensador, tinha um diário íntimo e correspondia-se com alguns amigos. Para seu
grande azar intercetaram uma das suas cartas a criticar Estaline. Apesar de integrar
uma força vitoriosa já no interior da Alemanha, em 1945 foi preso por forças do
NKVD e acusado de fazer propaganda antissoviética, ao abrigo do celebro art.º
58 do Código Penal da então União Soviética. Foi mais tarde condenado a oito
anos de trabalho forçados seguido de exílio perpétuo, que fez no Cazaquistão.
Segue-se o seu cumprimento de pena
por diversos campos de trabalhos forçados. Uns anos depois conseguiu ser
transferido para a Sharashka, um instituto científico destinado aos intelectuais,
onde pôde ler livros e escrever o seu primeiro romance, O Primeiro Círculo.
Mas acaba por cair em desgraça, e em 1950 é enviado para um campo de prisioneiros
políticos em Ekibastuz, no Cazaquistão, onde trabalha como pedreiro, mineiro e
metalúrgico. Em 1953 inicia ali o seu exílio e é tratado a um tumor. Colocam-no a
lecionar nos liceus, e à noite continua a escrever.
Regressou por fim à Rússia europeia,
casou e teve filhos. Andava a escrever clandestinamente o Arquipélago de
GULAG, quando a sua datilógrafa, Elisavieta Voroniáskaia, foi detida e sujeita
a seis dias de interrogatório, acabando por revelar o sítio onde estava o
original. Quando chegou a casa, com o desgosto enforcou-se. Face a esta
tragédia, Soljenitsine manda publicar de imediato o livro no estrangeiro a
partir de uma outra cópia. Em 1970 era-lhe atribuído o Prémio Nobel. Não o pôde
ir na altura receber, pois receou que, partindo já não deixassem entrar. Foi expulso
da Sociedade de Escritores Soviética, retiraram-lhe a sua nacionalidade e em
1974 expatriaram-no.
No estrangeiro, depois de passar pela
Alemanha e pela Suíça, fixou-se nos Estados Unidos da América, onde vai
publicando livros, mas fecha-se muito. O seu exílio prolongou-se por vinte anos.
Só com a abertura do regime soviético pôde regressar à Rússia, o que fez em
maio de 1994, vivendo ali uma segunda experiência de russo. Ele, que inicialmente
terá visto com simpatia o regime czarista, a quem pai servira, aderiu mais
tarde ao Exército Vermelho. Porém, ao ver a violência e iniquidade que existia
à sua volta passou a ser crítico do sistema, que considerava totalitário.
Na última fase da sua vida tornou-se
conservador e até religioso, simpatizante da antiga Mãe Rússia. No discurso em
Estocolmo, quando posteriormente recebeu o Prémio Nobel, considerou que nunca
pensou publicar aquele livro, a quem até tinha medo de mostrar aos seus mais íntimos,
e que tudo aquilo «se devia à ausência de Deus naquela sociedade». Manifestada algumas
dúvidas sobre a democracia ocidental, e simpatizava com regimes musculados.
Chegou a apoiar e a criticar Ieltsin. Era simpatizante de Vladimir Putin. Na
sua cabeça, por onde desembocaram muitas influências, debateram-se numa luta
dolorosa muitas ideias, por vezes antagónicas.
TRÊS FOTOGRAFIAS BEM ILUSTRATIVAS DE SOLJENITSINE
(retiradas do próprio livro)
1ª. No exército: Vê-se nesta foto um jovem com grande alegria de viver, com um brilho cintilante no rosto arremessado ao futuro: – alimentam-no grandes esperanças. A caneta na mão direita prenuncia que quer escrever, que está ali para observar o que o rodeia, terá muito que contar. Esboça um suave sorriso, parece feliz. A cabeça, inclinada levemente para cima, ostenta um visível orgulho na farda que enverga.
2ª. Na prisão: Aqui vê-se um jovem já despojado da sua dignidade, completamente aturdido com a sua nova situação. Até parece que lhe roubaram a maturidade que tinha. A cabeça está levemente inclinada para baixo, em sinal de submissão, e o olhar voltado para dentro, defensivo, confundido pelo absurdo. Há uma revolta inclusa, uma dor que quer conter dentro de si, ainda não acreditando no que lhe está a acontecer.
3ª. Quando libertado: Nesta última foto vemo-lo de rosto carregado, quase hirto, como se carregasse o peso do mundo. Os olhos revelam uma fixidez cadavérica, e estão cheios de olheiras, que lhe configuram uma máscara de acre sofrimento. A sua pose é frontal, de quem está pronto para enfrentar a adversidade, e a cara rasgada por rugas, à força de sofrer. Já a boca está bem fechada, os dentes cerrados, cheios de revolta. Aparece muito mais magro, ainda atónito, mal acreditando que foi solto.
A OBRA
A obra de Soljenitsine estende-se
aos domínios da História, da Dramaturgia e do romance, mencionam-se aqui apenas
as mais importantes, ou que mais facilmente se prestam à sua leitura na Língua
Portuguesa. Citemos com a data da publicação original alguns dos seus livros:
– Um Dia na Vida de Denisovich (1962; romance)
– O Pavilhão dos Cancerosos
(1966; romance)
– O Primeiro Círculo (1968;
romance)
– A Casa de Matriona (1971; romance)
– Agosto de 1914 (1971;
ensaio)
– Arquipélago de GULAG (1973;
romance)
– Lenine em Zurique (1975;
ensaio)
– O Erro do Ocidente (1976;
ensaio)
– Como Reordenar a Nossa Rússia
(1994; ensaio)
– Two Hundred Years Together
(2002; ensaio)
– Zacarias Escarcela e Outros
Contos (Edição da Sextante Editora;2014)
– Compotas de Damasco e Outros
Contos (Edição da Sextante Editora;2015)
O
LIVRO, Arquipélago de GULAG
– Resumo do Livro
O Arquipélago de GULAG,
significa um conjunto de campos de prisioneiros, dispersos por toda a União
soviética, que chegou a albergar milhões de presos. GULAG é uma sigla
correspondente em russo a «Administração Geral dos Campos de Trabalho
Correcional».
Como fontes, o autor usa a sua
própria experiência, rica em peripécias, escritos de vários autores, mesmo
comunistas que velavam pela pureza do regime, pela sua segurança, pela
administração da justiça, a relatos de jornais da época e a testemunhos de uns
duzentos e vinte e sete antigos prisioneiros. O livro é um ensaio político de
natureza autobiográfica, passado na União Soviética, de 1918 a 1956.
Nesta análise apenas se incide no I
Volume, que com contém duas partes: A Indústria Carcerária e o Movimento
Perpétuo, mas para os mais curiosos recomenda-se o II Volume, com mais cinco
partes: Extermínio pelo Trabalho, A Alma e o Arame Farpado, Os
Trabalhos Forçados, O Desterro, e, Não há Estaline.
Primeira Parte
I – Detenção: Neste capítulo
se descreve a forma como as pessoas eram detidas, que não diverge muito das
formas clássicas de detenção. Normalmente, de modo a não dar nas vistas, a não
criar alarme social. As pessoas podiam ser presas numa busca à casa, de manhã,
quando iam trabalhar, num fim de um espetáculo. Chegavam as autoridades junto
de uma pessoa e alguém informava: «Você está preso!» Era uma situação
aberrante, muitos nem sabiam de que estavam a ser acusados. Normalmente,
ficavam tão atordoadas que nem reagiam. Ninguém via ninguém ser preso, mas
sabia que aqui e acolá algumas pessoas subitamente desapareceram. Gerava-se
então um clima de terror, como se habitassem um universo de Kafka. Era sabido
muitas pessoas terem sido presas, mas ninguém, por medo, tentava averiguar ou
protestar. Tal tarefa estava no tempo do autor a cargo da NKVD, (Narodnyi
Komissariat Vnutrennikh Del) sigla em russo de Comissariado do Povo para
Assuntos Internos. A forma como as pessoas eram detidas eram variadas e
engenhosas. Neste capítulo são descritas algumas dessas situações.
II – História da Nossa
Canalização: Será mais a história da organização judiciária do seu país, de
como as diversas instituições comunicavam entre si e de como a justiça
funcionava. Como é natural, numa sociedade, nem todos pensam da mesma maneira,
há sempre tendências, o que, para a revolução bolchevique não era admissível,
todos tinham de alinhar pela «pureza» das suas ideias revolucionárias. Ora para
velar por esta ortodoxia foi criada por Lenine em 1917 a Tcheka (Comité de
Emergência). Uma polícia secreta para, como ele próprio disse, fazer uma «limpeza
da terra russa de todos e quaisquer os elementos nocivos». (Ela seria
substituída pela Direção Política Conjunta do Estado de 1913 a 1934, e a seguir
pela NKVD (sigla atrás explicitada), de 1934 a 1946), e a seguir pelo KGB
(Comité de Segurança do Estado). Quanto às leis, durante a Revolução de 1917,
depois de uma fase confusa em que se seguia a consciência revolucionária,
passou a seguir-se o Código Penal de 1926, cujo artigo 58º permitia as mais vis
arbitrariedades (é ler no livro a partir da página 65). Ali se ilustra a
aplicação deste artigo com muitas nuances.
III – A Instrução: Refere-se
à elaboração do processo acusatório. O artigo 136 do Código Penal Russo de 1926
estipulava que o investigador não tinha o direito de obter declarações
ou a confissão do acusado por meio de violência ou ameaças. Ora isto foi letra
morta durante todo este período. É quase inacreditável os requintes de
violência que os investigadores usavam para que os acusados confessassem as
suas culpas, reais ou imaginárias, porque isso revelaria o seu grau de
eficiência profissional, evitando mais perdas de tempo na instrução: Citemos
algumas dessas torturas (umas poucas, de tão hediondas deixamos no livro à
disposição do leitor): utilização da noite para interrogatórios; uso da persuasão
quando o acusado estava mais fraco; o contraste psicológico de situações,
intimidando-o; a humilhação prévia, obrigando-o, por exemplo, a ter o rosto colado
ao chão; o uso da mentira, em que se inventava depoimentos falsos; o
aproveitamento das suas pessoas mais chegadas para o fragilizar; o método
sonoro dos ruídos atordoadores; o apagar o cigarro na pele do acusado; o método
luminoso de o encandear; o fazê-lo vergar pela sede; a tortura do sono; o espancamentos,
o esmagamentos das unhas; o uso da camisa de forças. E outros mais. Com tais
instrumentos ao dispor dos procuradores, raro era o acusado que resistia a não assinar
a confissão.
IV – Os
debruns-azuis: Esta era a designação, na gíria, para designar os elementos
da NKVD, a que chamavam também «carrascos da noite», ou membros da Instituição
Noturna, pois o seu objetivo era culpabilizá-los, e esse era o período do dia
em que os acusados estavam mais vulneráveis, mais debilitados física e
psiquicamente para assinar qualquer confissão que desse como finalizado o seu trabalho
investigativo. Naquele tempo, mais fácil do que arranjar testemunhas que
acusassem os réus e os levassem à condenação, seria conseguir que eles
assinassem uma confissão da sua culpa. Eles sabiam que o resultado assim obtido
não era sério, mas durante muitos anos prosseguiram neste trabalhinho. E
chamavam-lhes debruns azuis porque usavam as insígnias fixadas nas extremidades
das golas (debruns) dos seus vistosos uniformes azuis. O autor descreve aqui,
para além dos seus vícios, o poder intimador que tinham, mesmo perante oficiais
de alta patente. Fala da sua própria prisão, e de muitos episódios concernentes
ao seu modo de proceder.
V – Primeira Cela – Primeiro Amor: As celas onde
os presos eram encarcerados variavam de campo para campo, mas no geral não respeitavam
as condições mínimas que deviam ter. Todavia, ao fim de algum tempo os presos acabavam
por se adaptar e ficar familiarizados com elas – eram o seu mundo. O autor
começa por nos relatar a sua experiência pessoal. Vai parar à prisão de
Lubianka, em Leninegrado, onde é alojado com mais cinco presos (mais tarde iria
para lá outro), numa cela que fora pensada pelos técnicos para dois presos.
Para lhe ampliarem a lotação recorreram a beliches. A cela tinha um postigo
perto da porta onde os guardas entregavam a alimentação ou lhes davam os documentos
a assinar. Para quem vinha da guerra, do campo de batalha, este podia ser até
um dos melhores lugares do mundo para se viver em segurança. Não havia aquecimento,
mas as retretes funcionavam. Tinham direito a um banho quente de dez em dez
dias, recebiam uma ração igual à de quando eram livres. Esta cela ainda foi das
melhores por onde passou.
VI – Essa Primavera: Em
junho de 1945 chegavam à cadeia de Butirki rumores do fim da Segunda Guerra
Mundial e da vitória da União Soviética. Sabia-se que estava preparada uma
grande parada na Praça Vermelha em Moscovo. Mas o facto, que podia dar azo a
uma amnistia geral, antes piorou a situação, com uma nova enxurrada de presos a
entrar nos campos. Foi uma Primavera que não deu frutos. Uma primeira vaga resultou
dos prisioneiros soviéticos na posse dos alemães, que regressavam à pátria.
Foram considerados «traidores», enquanto na verdade, a pátria é que os traíra: primeiro
porque os conduzira mal na guerra; segundo por os abandonara à morte no
cativeiro; terceiro porque depois disso à chegada ainda os iam condenar. Outra
vaga de presos seria a dos civis soviéticos que estiveram retidos no
estrangeiro sob o domínio alemão, e que regressaram por fim à pátria: eram
acusados de espiões. Além disso viram muita coisa, podiam trazer ideias
subversivas. Outra vaga foi a das etnias acusadas de terem colaborado com os
alemães durante a guerra, como sejam os cossacos. Alguns destes grupos foram
escandalosamente entregues pelos Aliados, quando sabiam que isso para eles significava
uma morte certa.
VII – Na Secção de Máquinas:
Numa box perto da estação de Butirki, cheia de máquinas de comboio, estavam os
presos recém-chegados, noutro compartimento um major da NKVD esperava-os para
os notificar das penas a que foram condenados. Soljenitsin vai lá, onde estão também
máquinas de escrever, e é-lhe apresentado um extrato do despacho da Comissão
Especial de Deliberação do Comissariado do Povo da Segurança do Estado da URSS.
É um nome demasiadamente pomposo, para se fortalecer de uma autoridade que
talvez lhe faltasse. Foram-lhe aplicados oito anos de campo correcional de
trabalho. Ainda se indignou, protestou, mas acabou por assinar, não havia outra
saída. O autor fala um pouco da história da competência das troikas policiais e
de como foram sendo criadas siglas para prender os adversários políticos,
banalizando as acusações. Vejamos alguns exemplos: ASA: Agitação antissoviética;
KRD: Atividade contrarrevolucionária; PCH: Presunção de espionagem; KRM:
Opiniões contrarrevolucionárias; VAS: Incubação de espírito antissoviético;
SOE: Elemento socialmente perigoso, e assim por diante. Não faltava motivos para
prender quem quer que fosse, pelos motivos mais fúteis. O autor narra aqui vários
casos concretos e termina augurando que um dia a «verdade» precipitar-se-ia, inevitavelmente.
VIII – A Lei Criança: Com a Revolução
Russa de 1917, os códigos penais foram quase ignorados, não se respeitavam as
leis burguesas, as leis criavam-se ao sabor da paixão revolucionária, fuzilavam-se
as pessoas à noite nas prisões, às vezes com um iro na nuca, às descaradas. Só
mais tarde houve a preocupação de encobrir estas condutas. Ainda em 1918 o tchequista
de Rizam, Stekmakh, organizava fuzilamentos no pátio da prisão em pleno dia,
para que os presos que ali estavam condenados à morte vissem bem o que lhes ia
acontecer. Havia tribunais populares, distritais e revolucionários, uma grande
confusão. Eles não se regiam pela lei, que para eles estava caduca, eles
regiam-se pela consciência revolucionária: imagine-se no que isto iria dar. Por
esta altura já se destacava o dinâmico Comissário do Povo para a Justiça da
URSS, Nikolai Krilenko, a exercer a sua função grande rigor e sem contemplações
(nosso aparte: mais tarde também ele foi condenado à morte, curiosamente por
propaganda antissoviética, na Grande Purga de 1938). O autor pormenoriza os
Processo do «Boletins Russos», o Processo dos três comissários do Tribunal
Revolucionário de Moscovo, o processo de Kossirev. Aqui se mostra a lei ainda
infante, incipiente, saída da Revolução de Outubro.
IX – A Lei Atinge a Idade Viril:
Com os bolcheviques no poder sob a chefia de Lenine, e as dificuldades de
manter a revolução, a lei teve de endurecer. Surgiram processos difíceis de
gerir, mesmo para Krilenko, como o Processo da Direção Central dos
Combustíveis, o Processo sobre o Suicídio do Engenheiro Oldenborguer, e os diversos
processos contra a religião. De repente, a religião ortodoxa russa é
desapossada dos seus bens e alguns dos seus prelados fuzilados. Krilenko disse
mesmo que «não estavam ali para gracinhas». Como se sentisse que havia um certo
vazio na lei, pouco depois entrava em vigor o Código Penal de 1 de julho de
1922. Avança-se com o grande Processo dos Socialistas Revolucionários. Eles até
ali tinham sido aliados dos bolcheviques no derrube do czarismo, mas eram agora
uma oposição ao seu poder totalitário e foram acusados de serem os iniciadores
da Guerra Civil, de terem estado contra o governo legal do Governo Operário-camponês,
de traírem a pátria na Paz de Brest-Litovsk, e por aí adiante. Este longo e
complicado processo, é aqui reproduzido com algum pormenor. Não podia haver contemplações
para quem ousasse opor-se ao novo poder.
X – A Lei Tornou-se Adulta: Entretanto,
Lenine morria. Era preciso apurar o sistema legislativo, e apresentá-lo ao
mundo como o mais elaborado e perfeito. Para se pouparem a aborrecimentos
desnecessários expulsam alguns intelectuais mais críticos para a Europa e é
aprovado o novo Código Penal de 1926, que se manteve até Kruchtchev, o que
demonstra a sua razoabilidade, se a sua letra fosse cumprida. Krilenko teve de se
haver logo com o Processo da Minas. Segue-se o Processo do Partido Industrial,
ainda mais lamentável. Nem todos os setores estavam a produzir conforme o
planeado, ficando aquém das metas do partido. Ora tal facto só podia ser
atribuído à sabotagem dos engenheiros, que não fizeram o que lhes competia, não
ao governo. O desenrolar deste processo é aqui narrado com algum pormenor.
Depois de um suicídio são condenados ao fuzilamento por ligações e intenções
sabotadoras: Smirnov, Univer, Saburov e Vlassov. Nesta fase, Estaline já tinha
abandonado a ideia de processos públicos, que só serviam para denegrir o
sistema e alarmar o povo. Agora os condenados não só não podiam ser executados
imediatamente, como também deviam ser guardados, custasse o que custasse, e para
executá-los era preciso conduzi-los a um centro regional. O sistema tinha
adquirido maturidade.
XI – A Medida Máxima: Neste
capítulo historia-se a pena de morte na Rússia e depois na URSS. Ela estava
prevista nos códigos militares desde Pedro I, que, contudo, não a exerceu, o
mesmo se passando com Isabel. Esta, porém, não era branda, pois abusou dos
cortes do nariz, do ferrete para os ladrões e da deportação para a Sibéria.
Catarina II considerou-a útil para os delinquentes comuns, mas o czar Pavel aboliu-a.
Já Alexandre I restabeleceu-a para crimes militares. Até 1905 a pena de morte
era uma medida de exceção. Depois, de 1905 a 1908 recrudesceu: foram executadas
duas mil pessoas. O Governo Provisório no seu início aboliu-a, e depois
restabeleceu-a. Com a revolução de 1917 havia quem considerasse a pena morte
desajustado, Krilenko disse mesmo que a pena de morte tinha sido abolida. Lenine
foi contra a ideia de alguns dos seus camaradas, pois sem ela a revolução não
avançava. Com o agravamento da Guerra Civil, de junho de 1918 a outubro de 1919
foram fuziladas dezasseis mil pessoas, mais de mil por mês. São a seguir
narrados pelo autor episódios curiosos da sua aplicação.
XII – Tiurzak, a Reclusão
Presidiária: Aqui se explica o sentido forte da palavra russa para presídio,
que é ostrog, ligada ao rigor, ao arpão, a picos e a corno. O autor
brinca com termo corno para chegar ao corno tiurzak, ou seja, a reclusão
presidiária. De início, para o preso é tudo terrível, em Lubianka, por exemplo,
cultiva-se o silêncio. O recluso se falasse em «nós» era mandado referir-se só
a si, como se ele agora estivesse só no mundo e tudo lhe estivesse proibido.
Quando chegavam o espaço da cela era demasiado exíguo, mas com o tempo verificavam
que podiam até fumar, requisitar livros, tinham direito a pão branco e ao chá
com açúcar, a dar um pequeno passeio. Os guardas acabavam por se familiarizar
com os presos. Porém, nas prisões de transição e nos campos de trabalhos
forçados a situação era bem pior, e agravaram-se com a sua sobressaturação. O
autor refere aqui pormenores sobre a relação entre os presos políticos e os presos
comuns, sobre os isolamentos políticos, sobre as greves da forme e como eram
combatidas pelas autoridades, sobre a luta dos presos pela sua dignidade. O Arquipélago
de GULAG estava a crescer, muitos casos terminaram mal. O regime prisional
variava conforme as prisões, mas qualquer deles era o pior.
Segunda Parte – O Movimento
Perpétuo
Os
campos como força de trabalho: de www.uberflerch.com
I – Os Navios do Arquipélago: Desde o estreito de Bósforo no Mar Negro, até ao estreito de Beringue, no outro estremo da Ásia, que havia milhentas ilhas fazendo parte deste arquipélago de campos de prisioneiros, e era necessário transportar os presos de umas para outras em segurança, e de modo a não dar nas vistas. Para isso criaram prisões de trânsito. Em Moscovo havia comboios especiais que transportavam os presos às seis horas da manhã até aos seus locais de destino. Em períodos recuados eram transportados a pé ou em carroças, mas, sobretudo depois de 1918, passou a utilizar-se transportes motorizados, carrinhas, comboios e mesmo navios. Celebrizou-se a carruagem de comboio, stolipine, um vagão de carga adaptado, com nove compartimentos, dos quais, cinco eram destinados aos presos. Estes cinco compartimentos ficavam separados do corredor por uma grade que os deixava a descoberto. Comportava seis presos na tarimba de baixo e três na do meio; a de cima era para a bagagem. Porém, chegou a haver períodos em que meteram em cada compartimento trinta e cinco presos, e até mais. Nesta situação, é de imaginar as deficientes condições de higiene e alojamento. Nem nas jaulas os animais iam assim amontoados. E além disso, misturaram os presos comuns com os políticos, e os ladrões roubavam a estes o que podiam. As próprias escoltas espoliavam aos presos nas transições. No livro vem tudo em pormenor.
II – Os Portos do Arquipélago:
Com este título o autor refere-se aos locais onde os prisioneiros aportavam,
aos horríveis campos de trânsito, que perduraram funcionando em condições deploráveis
até à época de Kruchtchev. Um zek (prisioneiro) passava em média entre
três e cinco campos de trânsito. E era difícil dizer qual era o melhor.
Dependia das circunstâncias. Em Ivanovo, por exemplo, puseram uma vez numa cela
prevista para vinte pessoas, trezentos e vinte e três, imagina-se como viveram
ali os presos, as dificuldades que tinham para comer, para fazer as suas
necessidades, e sobretudo para os doentes que estavam nos beliches superiores.
Faltou o ar, tiveram de partir as vidraças das janelas para não morrerem
asfixiados. Outro campo de trânsito, como o de Kolima, perto de Vladivostoque,
os navios chegavam ali com milhares de prisioneiros, ignorando que não havia
campos suficientes para os receber, e não os iam levar de volta. Depois, para
qualquer coisa que fosse necessária para aquela gente, como baldes para servir
de latrinas, eles faltavam e não havia onde os comprar na Sibéria. Viveu-se ali
em condições indescritíveis. E no meio daquilo ainda havia os ladrões, os
gatunos que roubavam os presos mais submissos. Os próprias guardas também
surripiavam o que podiam às rações dos presos, sobretudo o açúcar, embora às
vezes lhes dessem do seu tabaco. Outro campo célebre foi o de Krasnaia
Pressnia, por onde quase todos passavam.
III – Caravanas de Escravos:
O transporte dos Zeks era uma operação delicada, que exigia segurança e discrição,
quer em carrinhas quer no stolipine eram desconfortáveis. Todos queriam
que fossem rápidas, não só o Estado como também os prisioneiros. O pior é que
as distâncias a percorrer normalmente eram longas. Todos preferiam, apesar de
tudo, o stolipine, a tal carruagem vermelha, tipo vagão de carga, com
gradeamento em cima em vez de janelas. Moscovo e Leninegrado eram as cidades
grande exportadoras de zeks para os campos, dispersos por toda a URSS.
As operações de entrada e saída eram sempre aviltantes, dado a segurança que
envolviam, e onde eram humilhados e às vezes espoliados dos seus parcos bens. Chegou-se
a recorrer a carruagens sem tarimbas ou estufas, e imagine-se a viagem que
aqueles infelizes faziam, de dias inteiros, através da Sibéria gelada. Quem
tivesse o azar de ir na carruagem dos gatunos era forçosamente roubada, espoliada
de qualquer peça de roupa boa que levasse vestida, e da própria alimentação. Dadas
estas condicionantes os prisioneiros eram muitas vezes transportados em piores
condições que o gado. Eles amaldiçoavam aqueles vagões vermelhos: chegar ao
destino para eles era um alívio. Mas à chegada esperava-os o banho de receção
no campo, que lhes era imposto e até necessário, mas realizado em condições
normalmente degradantes, como para os praxar logo à entrada. Eles passaram
pelas prisões transitórias com más condições, das quais se queriam ver livres, mas
iam parar aos campos de destino com regimes ainda mais severos.
IV – De Ilha em Ilha: O
mesmo se podia dizer de campo em campo. Já vimos como era horrível o transporte
dos zeks, mas havia um, feito em barcaças solitárias de uma ilha para
outra do Arquipélago, a que designavam por caravana especial. Neste, as
condições eram razoáveis. Os presos chamavam a isso «passear», pois não tinham
de pôr as mãos atrás das costas, ou de se despir completamente para serem
revistados. Mas mudar de sítio tinha sempre o inconveniente de ter de se
despedir da família, sujeitar-se a ir não sabiam para onde. À chegada aos
campos era perguntado aos prisioneiros a sua profissão, a que os guardas podiam
recorrer em benefício próprio e do campo. O autor à sua chegada disse que era «físico
nuclear». Ele estudara um pouco sobre o átomo e não o puseram a fazer tarefas específicas
do campo, e ainda podia ser requisitado para os laboratórios, onde agora se
fazia investigação sobre a bomba atómica. Ora isto valeu-lhe talvez a vida, pois
ainda não sabia se teria resistido à dureza dos campos durante a sua
condenação. Ao meio da pena foi levado para uma das prisões, a que os presos
chamavam «ilhas paradisíacas», onde o regime se servia do trabalho intelectual
dos presos, que estes chamavam na sua gíria, charachki. Foi aqui que o
autor se encontrou com engenheiros, físicos e compositores famosos na sua época,
e pôde recomeçar a escrever.
– Uma apreciação Geral do Livro
O Arquipélago de GULAG, ainda
que formalmente romanceie algumas situações, é sobretudo um ensaio de cariz
político. Faz uma denúncia brutal do sistema judiciário soviético desde a época
czarista até ao período de Estaline, referindo-se aos seus códigos de justiça
arcaicos, aos procuradores que se arvoravam em persecutores, aos juízes que exerciam
as suas funções ao sabor da ideologia, aos julgamentos, que eram por vezes uma
farsa. E ainda tece uma crítica implacável ao cumprimento das penas, exorbitantes
para os crimes políticos, às escoltas que roubavam os presos, aos meios de
transportes inadequados e desumanos para os levar de umas prisões para as
outras. E mais nos relata ainda, que chegados por fim aos seus destinos, os
presos iam parar a celas apertadas, excedendo a sua capacidade, sem condições
de higiene, frequentemente com má alimentação e deficientes condições de alojamento,
em que eram muitas vezes pior tratados que animais. Contudo, que não seja visto
este livro apenas como instrumento para atacar o marxismo ou o comunismo,
porque isto desvaloriza o seu objetivo primordial. O autor criticou essencialmente
o sistema judiciário, e não se alongou nos outros, onde porventura poderá ter
estado menos mal. Noutros sistemas políticos também se verificaram exageros
deste tipo.
Bem documentado pela sua experiência
pessoal, Soljenitsine analisa bem a fenomenologia do culto do chefe, do líder
incontestável, aqui levada ao estremo. Em virtude do medo que a repressão
política inspirava, as pessoas viviam com receio, ou mesmo temor, pois,
qualquer palavra de sentido menos óbvio, ou gesto menos suspeito, podiam
significar a prisão, o desterro e a morte. É célebre aquele discurso quem
homenagem ao camarada Estaline do novo Secretário do Comité Distrital do
Partido na área de Moscovo, a substituir o anterior que fora detido. O simples
pronunciar o seu nome fazia levantar a assistência da pequena sala em que
falava. Quando chegou ao fim a assembleia levantou-se em ovação clamorosa.
Estavam ali elementos da NKVD (antecessora do KGB), e ninguém queria ser visto
a parar os aplausos, todos se esforçavam até para que parecessem entusiásticos
e autênticos. Passaram-se três, quatro, cinco minutos e ninguém parava, as mãos
já doíam, os mais velhos começaram a fraquejar. E ninguém ousava parar, a
situação, que começara por ser ridícula, estava a tornar-se aflitiva. Num clima
daqueles, fortemente repressivo, ninguém queria ser o primeiro a parar de bater
palmas, pois isto podia significar um menor apoio a Estaline, e, portanto, levar
à sua prisão por suspeita. Sorte foi um participante ter desmaiado por não
aguentar mais aquela maratona de palmas, e ter caído estrondosamente na cadeira,
dando um motivo providencial para que todos parassem.
No campo económico, ele refere que os
planos (quinquenais) para a produção industrial e agrícola estabelecidos por
Estaline, elaborados no conforto dos gabinetes citadinos sem terem em conta a
realidade do país, nem sempre eram viáveis na prática. Isto, apesar de nas
fábricas se sacrificar a qualidade à quantidade para cumprir as metas fixadas
pelo governo. A produção de vez em quando falhava os objetivos na indústria
fabril ou na produção agrícola, e então, face ao mal-estar do povo, tinha de se
criar um bode expiatório. O elo mais fraco neste caso eram os engenheiros fabris,
acusados de gestão danosa, de falta de entusiasmo, de negligência descarada, de
sabotadores políticos do regime ao serviço da burguesia. E o mesmo acontecia
com os chefes das empresas agrícolas, que chegaram mesmo a serem
responsabilizados pelas fomes endémicas ocorridas nalgumas regiões, não se
tendo em conta, por exemplo, as más condições atmosféricas desse período. E o
mais óbvio seria responsabilizar os políticos pelo desconhecimento do país, pela
sua falta de pragmatismo na elaboração dos planos.
O sistema de repressão já era duro
no período czarista, embora tivesse assomos de humanidade, como quando Dostoievski
foi falsamente condenado à morte por fuzilamento, para lhe pregar um grande
susto, ou Alexandre I, que quis passar um dia numa prisão para verificar in
loco a que se sujeitavam os seus súbitos. Com a revolução foi aumentando progressivamente
a repressão até à época de Estaline, mesmo depois de 1945, em que tinha vencido
a guerra, e se esperaria que abrandasse o seu rigor persecutório. Na Revolução Russa
de 1917, depois de uma luta encarniçada dos vermelhos contra os brancos, que os
primeiros venceram, iniciou-se a perseguição impiedosa aos colaboradores do
antigo regime, a seguir aos social-democratas, depois aos socialistas
revolucionários, aos tolstoianos, aos trotskistas, e, por último, aos próprios
comunistas de quem se punha em causa a sua fidelidade a Estaline, num processo
contínuo de depuração do regime, que, ao menor sinal de desconfiança levava os suspeitos
à prisão, ao exílio, à morte, espalhando o terror entre a população. A máquina
de neutralização e extermínio não parava. Não podia haver contemplações, os
indivíduos politicamente perigosos tinham de ser retirados do sistema social.
Este livro, com muitos anos de
maturação, é um bom exemplo de como num país se pode falsear a verdade,
fomentar ódios políticos, exercer uma perseguição impiedosa a quem se oponha ao
sistema, praticar a tortura e a repressão, enfim, desumanizar-se. É
inacreditável como milhões de pessoas se podem deixar enganar e submeter ao
poder político. E este facto é exemplar não só para os povos da antiga União
Soviética, mas para os de todo o mundo, onde frequentemente eclodem ditaduras
de tipo ideológico ao serviço de uma classe ou de uma ideia. Raramente tem
havido a Oriente e a Ocidente alguém com rasgo intelectual e coragem política
para escrever livros assim. Nos tempos que correm ainda continuam a faltar, não
só nas ditaduras que ainda subsistem, como nalgumas democracias, que, por se julgarem
possessas da verdade, se sentem donas da liberdade, não havendo quem critique a
fundo os seus equívocos. De modo subtil, arredam da área do poder quem não
afine pelas suas ideias mestras, funcionando às vezes como uma ditadura
camuflada. A História continua a ser quase sempre escrita ao gosto de cada
ideologia, de cada maioria, é lavada para ficar com a cor que se pretende, de
modo a não estar dissonante com o sistema, não se rege, pois, pelos critérios do
rigor e da verdade. A liberdade é algo por que se tem de lutar constantemente.
Alexander Soljenitsine, servindo-se da sua experiência
pessoal, foi dos primeiros escritores a escrever sobre as prisões da URSS,
embora tenha havido outros intelectuais contra o sistema. Com Um Dia na Vida
de Denisovich tornou-se rapidamente conhecido. Já muito depois de ter cumprido
a sua pena, nos anos setenta passou a ser perseguido pelo KGB (Comité para a Segurança
do Estado). O Arquipélago de GULAG andou repartido por casas de
amigos para no caso de ser apreendido pela polícia política as perdas não serem
irreparáveis. É um livro que faz uma denúncia corajosa do sistema judiciário
soviético, ao mesmo tempo que nos dá uma amostra da vida social, das
dificuldades económicas que o seu país atravessou, e de como a política evoluiu
desde 1917, sobretudo no campo da justiça. Poderá ter uma visão particular das
coisas, quase religiosa, e depois tornar-se partidário de políticas musculadas
e ter-se voltado para o passado, mas tendo sofrido como sofreu, o que se
esperaria dele? Soljenitsine teve a coragem de escrever sobre algo que no seu
país não estava bem, e ninguém ousava questionar. As suas ideias foram criando
raízes nos dissidentes, e até nos membros do partido e das polícias de
segurança do Estado, que, condenando-as na altura, já sabiam que ele estava a par
das coisas. Temos aqui uma evidência: Vladimir Putin, elemento pertencente ao
KGB, mais tarde foi presidente da Rússia, e em 20 de setembro de 2000 teve um
encontro com ele para troca de impressões – é de imaginar a importância que lhe
dava –, e em 5 de Junho atribuiu-lhe mesmo um Prémio de Estado, que ele recebeu,
embora já o tivesse recusado anteriormente, vindo de Gorbachov, e depois de
Ieltsin. As suas palavras serviram como rastilho para o colapso da União
Soviética em 1991 (claro: como consequência dos desequilíbrios estruturais que
ela criara). Veja-se o poder que pode ter um livro, da importância da Literatura
como consciencialização social, como alavanca para mudar o mundo. Dixit
Martz Inura
18/12/2019
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