A Festa do Chibo
Tradução de Miguel Serras Pereira
Tradução de Miguel Serras Pereira
LEYA (2010) (506 p.)
Goste-se ou não do autor, que a sua obra tudo sobreleva. Houve quem durante muitos anos desdenhasse dos seus livros, o pusesse à margem, o obscurecesse por ele vir marcado pela política, ao ter frequentado partidos com determinada conotação. Mas é indubitável que se trata de um escritor notável na sua área, a da política, dos maiores de sempre. Grande conhecedor do meio em que pisa, por nela ter participado, com algumas pinceladas de verdades simples, mas demolidoras, que se encaixam umas às outras como pedras de uma fortaleza inca, ele leva-nos ao cerne das questões, faz-nos compreender o que nós, mesmo lendo os jornais diários de um país, vendo os telejornais ou ouvindo os seus analistas políticos, dificilmente poderíamos vir a perceber.
Usa um estilo económico, as personagens raramente têm voz, e quando esta lhe é dada são concisas, mas expressivas, mostrando-se com nalguns casos com todos os requisitos de uma humanidade cruel, de uma insensibilidade atroz, mas impregnados de realidade. Emprega por vezes o calão, mas não ostensivamente, e onde ele se aceita com naturalidade, nos parece quase obrigatório. Na maioria dos capítulos usa o discurso indirecto, para melhor poder sintetizar as situações, empregando palavras que nos nos introduzem bem dentro da acção, fazendo-nos porventura perceber para além do que elas expressam. Num capítulo mistura as histórias, num processo experimental iniciado por James Joyce, mas não abusa dele, como que receando não estarmos preparados para a sua complexidade.
Não sendo natural de S. Salvador, consegue, talvez por isso, proporcionar-nos um olhar sobre a ditadura de Rafael Trujillo, mostrando à saciedade os seus métodos e vícios, como quando descreve um gabinete fantasma, que ele cria, pondo ali funcionários a escrever cartas para os jornais, como vulgares cidadãos, intérpretes da vontade do povo, a quem indignam alguns actos políticos, fazendo crer que há liberdade para criticar, mas que apenas servem para ele se ir livrando de inimigos incómodos, ou amigos de que se comece a cansar, ou que pensa já não lhe serem úteis, que, perante tais acusações caem inexoravelmente em desgraça. Para o ditador a política é amoral: acima de todos está o interesse do Estado. Os fins justificam os meios.
E de o outros exemplos nos poderíamos recorrer, em que ele nos retrata fotograficamente actos da máxima hipocrisia política, quando Trujillo manda assassinar um político que lhe está a ser incómodo, mas que tem o seu prestígio e algum passado útil ao regime. E depois de o ter mandado eliminar sem piedade, para branquear o acto envia telegramas inflamados de pesar à família, faz-se representar no funeral a alto nível e manda colocar junto do esquife a mais linda coroa de flores, chegando ao cúmulo de encarregar alguém de fazer um discurso apologético ao defunto, cheio de sentidas homenagens, profundas gratidões, associando-se à dor da família, como se aquele morte tivesse sido uma grande perda para a nação.
Ou ainda a farsa política que o ditador criou para ser tolerado pelos americanos, dando uma falsa imagem de democracia, de desapego ao poder, quando nomeou um Presidente da República fantoche, Joaquín Balaguer, porque Trujillo continua a ser o Generalíssimo, o Chefe, o Benfeitor, o Pai da Pátria Nova. O presidente que fabricou é um homem da sua confiança, que até sabe fazer belos discursos, mas que está ciente que uma palavra sua a mais à esquerda ou à direita pode significar a sua morte, que seria logo atribuída à oposição, e até serviria para o ditador mandar executar mais uns tantos opositores completamente inocentes, que seriam usados como bodes expiatórios para aquele assassinato, ou mesmo de delinquentes comuns, para se ver livre deles.
Mário Vargas Llosa sabe descrever com extremo apuro toda a sofisticação, feita de artimanhas, misérias, horrores, que ultrapassa o nosso imaginário, com que Abbes García, o chefe da polícia política, tortura as suas vítimas, usando sistemas retirados de entre os mais refinados da História. E o seu preciosismo é máximo, quando envia para uma estância de veraneio do ditador, a um canto da ilha, alguns dos seus inimigos políticos, e os manda abater e a seguir faz lançar ao mar, onde os tubarões se encarregariam de os devorar. E para este ainda ser mais perfeito, refinado, ordena que se abatam os briosos guardas que os vieram escoltar, dando-lhes o mesmo destino. Maquiavel à beira dele é um anjo.
E é soberbo ao mostrar-nos como é pernicioso concentrar demasiado pode numa só pessoa, quando descreve magistralmente o ridículo de certas situações, como quando Trujillo envia para um demorado périplo pela América Latina, aparentemente, com o objectivo de resolver inadiáveis problemas de Estado, quando na verdade, essa missão patriótica apenas se destina a que possa ficar a sós com a mulher dele, para, sem interrupções poder desfrutar dela durante uma temporada, não muito prolongada, porque tinha outras mulheres em lista de espera, ávidas de serem cortejadas e tomadas por ele, que é o Benfeitor, O Pai da Pátria Nova, facto que, dada a sua alta dignidade, de uma nobreza que transcenderia toda a moral, muito honraria os maridos.
Mas para ele nem tudo é mau no ditador, que põe a economia a funcionar, cria um exército moderno, torna o país mais seguro e menos dependente dos Estados Unidos. Na cidade de Trujillo, a capital, rebaptizada com o seu nome, e no resto do país, fazem-lhe os discursos mais laudatórios já alguma vez feitos, dignos de um Alexandre Magno, de um Napoleão, de um Bolívar. Ninguém referindo que ele pôs a economia quase toda nas mãos da família e amigos, 70 por cento nalguns sectores, e vai eliminando os seus inimigos políticos sem dó nem piedade. Segundo alguns, ele provoca mais mortes em S. Domingos que os mais violentos furacões, os mais mortíferos terramotos, as maiores guerras e calamidades que se abateram sobre aquele país. Mas não se revele mais do que existe de perverso neste romance.
Na capa do livro a editora fez notar que se trata de Um romance esplêndido, uma narrativa poderosa, que se estende aos últimos círculos do inferno numa descida pavorosa de horror e terror. Mário Vargas Llosa de regresso à sua melhor literatura. Uma obra magistral. Convenhamos que é publicidade, mas há muito de verdade nestas palavras. Este é um livro que, sendo eminentemente político, não deixa de nos alertar para as razões humanas que estão subjacentes a determinados actos políticos. Não faz juízos de valor sobre as situações tenebrosas que descreve, não toma opções morais, o leitor que se vá surpreendendo com elas. Dizem que o autor é de direita, daí lhe terem demorado o Prémio Nobel, mas dificilmente alguém num romance fará uma denúncia mais mordaz, mais implacável, mais eficaz às ditaduras sul-americanas. Este é um livro que não me dispenso de ter na minha biblioteca, como obra, em muitos aspectos, exemplar e única. Martz Inura
Não sendo natural de S. Salvador, consegue, talvez por isso, proporcionar-nos um olhar sobre a ditadura de Rafael Trujillo, mostrando à saciedade os seus métodos e vícios, como quando descreve um gabinete fantasma, que ele cria, pondo ali funcionários a escrever cartas para os jornais, como vulgares cidadãos, intérpretes da vontade do povo, a quem indignam alguns actos políticos, fazendo crer que há liberdade para criticar, mas que apenas servem para ele se ir livrando de inimigos incómodos, ou amigos de que se comece a cansar, ou que pensa já não lhe serem úteis, que, perante tais acusações caem inexoravelmente em desgraça. Para o ditador a política é amoral: acima de todos está o interesse do Estado. Os fins justificam os meios.
E de o outros exemplos nos poderíamos recorrer, em que ele nos retrata fotograficamente actos da máxima hipocrisia política, quando Trujillo manda assassinar um político que lhe está a ser incómodo, mas que tem o seu prestígio e algum passado útil ao regime. E depois de o ter mandado eliminar sem piedade, para branquear o acto envia telegramas inflamados de pesar à família, faz-se representar no funeral a alto nível e manda colocar junto do esquife a mais linda coroa de flores, chegando ao cúmulo de encarregar alguém de fazer um discurso apologético ao defunto, cheio de sentidas homenagens, profundas gratidões, associando-se à dor da família, como se aquele morte tivesse sido uma grande perda para a nação.
Ou ainda a farsa política que o ditador criou para ser tolerado pelos americanos, dando uma falsa imagem de democracia, de desapego ao poder, quando nomeou um Presidente da República fantoche, Joaquín Balaguer, porque Trujillo continua a ser o Generalíssimo, o Chefe, o Benfeitor, o Pai da Pátria Nova. O presidente que fabricou é um homem da sua confiança, que até sabe fazer belos discursos, mas que está ciente que uma palavra sua a mais à esquerda ou à direita pode significar a sua morte, que seria logo atribuída à oposição, e até serviria para o ditador mandar executar mais uns tantos opositores completamente inocentes, que seriam usados como bodes expiatórios para aquele assassinato, ou mesmo de delinquentes comuns, para se ver livre deles.
Mário Vargas Llosa sabe descrever com extremo apuro toda a sofisticação, feita de artimanhas, misérias, horrores, que ultrapassa o nosso imaginário, com que Abbes García, o chefe da polícia política, tortura as suas vítimas, usando sistemas retirados de entre os mais refinados da História. E o seu preciosismo é máximo, quando envia para uma estância de veraneio do ditador, a um canto da ilha, alguns dos seus inimigos políticos, e os manda abater e a seguir faz lançar ao mar, onde os tubarões se encarregariam de os devorar. E para este ainda ser mais perfeito, refinado, ordena que se abatam os briosos guardas que os vieram escoltar, dando-lhes o mesmo destino. Maquiavel à beira dele é um anjo.
E é soberbo ao mostrar-nos como é pernicioso concentrar demasiado pode numa só pessoa, quando descreve magistralmente o ridículo de certas situações, como quando Trujillo envia para um demorado périplo pela América Latina, aparentemente, com o objectivo de resolver inadiáveis problemas de Estado, quando na verdade, essa missão patriótica apenas se destina a que possa ficar a sós com a mulher dele, para, sem interrupções poder desfrutar dela durante uma temporada, não muito prolongada, porque tinha outras mulheres em lista de espera, ávidas de serem cortejadas e tomadas por ele, que é o Benfeitor, O Pai da Pátria Nova, facto que, dada a sua alta dignidade, de uma nobreza que transcenderia toda a moral, muito honraria os maridos.
Mas para ele nem tudo é mau no ditador, que põe a economia a funcionar, cria um exército moderno, torna o país mais seguro e menos dependente dos Estados Unidos. Na cidade de Trujillo, a capital, rebaptizada com o seu nome, e no resto do país, fazem-lhe os discursos mais laudatórios já alguma vez feitos, dignos de um Alexandre Magno, de um Napoleão, de um Bolívar. Ninguém referindo que ele pôs a economia quase toda nas mãos da família e amigos, 70 por cento nalguns sectores, e vai eliminando os seus inimigos políticos sem dó nem piedade. Segundo alguns, ele provoca mais mortes em S. Domingos que os mais violentos furacões, os mais mortíferos terramotos, as maiores guerras e calamidades que se abateram sobre aquele país. Mas não se revele mais do que existe de perverso neste romance.
Na capa do livro a editora fez notar que se trata de Um romance esplêndido, uma narrativa poderosa, que se estende aos últimos círculos do inferno numa descida pavorosa de horror e terror. Mário Vargas Llosa de regresso à sua melhor literatura. Uma obra magistral. Convenhamos que é publicidade, mas há muito de verdade nestas palavras. Este é um livro que, sendo eminentemente político, não deixa de nos alertar para as razões humanas que estão subjacentes a determinados actos políticos. Não faz juízos de valor sobre as situações tenebrosas que descreve, não toma opções morais, o leitor que se vá surpreendendo com elas. Dizem que o autor é de direita, daí lhe terem demorado o Prémio Nobel, mas dificilmente alguém num romance fará uma denúncia mais mordaz, mais implacável, mais eficaz às ditaduras sul-americanas. Este é um livro que não me dispenso de ter na minha biblioteca, como obra, em muitos aspectos, exemplar e única. Martz Inura