ALMEIDA GARRETT





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ALMEIDA GARRETT
Viagens na Minha Terra
Bertrand Editora, Lda 
           
O HOMEM
            João leitão da Silva nasceu em 4 de Fevereiro de 1799, na cidade do Porto, no seio da burguesia abastada. Na adolescência, com as Invasões Francesas foi viver para a ilha Terceira, nos Açores. Estava-lhe destinada a vida eclesiástica, um seu tio era bispo de Angra, mas em 1816 acaba por vir para Coimbra, onde se matriculou no curso de Direito. Era muito cioso do seu nome: ainda na infância este foi alterado para João Batista da Silva Leitão, e em 1818 iria adoptar os apelidos Almeida Garrett, (Garrett seria um apelido da sua avó), passando a chamar-se João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett.
            Aderiu à Revolução Liberal de 1820, e em 1823, após a Vilafrancada viu-se obrigado a fugir para Inglaterra, onde conheceu melhor a literatura inglesa e entrou em contacto com as ideias românticas. Começou então a escrever. Em 1824 partiu para a França, aprofundando-se ainda mais nas novas correntes literárias. Regressado a Portugal, em 1826 dedicou-se ao jornalismo, dirigindo o diário O Portuguez, o semanário O Cronista e colaborado da Revista Universal Lisbonense. Em 1828, com a vinda do rei D. Miguel para Portugal e o agravamento da repressão absolutista, volta de novo ao exílio, vai para Inglaterra. Em 1831 regressa à Terceira como voluntário das tropas liberais de D. Pedro (mais tarde D. Pedro IV), participando a seguir na defesa da cidade do Porto.
            Vivendo em pleno Romantismo, de que foi introdutor em Portugal, a sua vida sentimental foi sempre muito intensa: soçobrado a um amor repentino com Luísa Cândida Midosi, de apenas 14 anos, viria a casar com ela onze meses depois, em 1822, e a divorciar-se em 1836, supostamente por adultério, quando estava em Bruxelas. Mas não demorou a juntar-se a Adelaide Deville Pastor, de 17 anos, com quem viveu amancebado até à morte desta em 1841, e de quem teve uma filha, Maria Adelaide. Mas outros amores o assoberbaram. Mais tarde veio a ser amante de Rosa de Montúfar y Infante, a célebre Viscondessa da Luz, de contornos atribulados, já que ela era casada com o Joaquim António Velez Barreiros, 1º Barão e 1º Visconde de Nossa Senhora da Luz. Almeida Garrett era homem culto, de grande presença e de muitos amores, frequentava os salões mundanos, atraindo o elemento feminino. Era um exemplo de elegância masculina, um dandy daqueles tempos.
            A sua vida sempre esteve muito ligada à política, já em 1832 Mouzinho da Silveira o tinha chamado para a Secretaria do Estado do Reino. Em 1833 foi encarregado de Negócios em Bruxelas, na Bélgica, chegando mesmo a ser nomeado para embaixador na Dinamarca. Contudo, o seu pensamento não se encaixa bem nas ideias do partido Cartista e em 1836 adere ao Setembrismo. É aqui que inicia a carreira parlamentar e toma iniciativas em prol do teatro, levando à criação do Conservatório Nacional de Lisboa em 1836 (inicialmente Conservatório Geral de Arte Dramática), e à construção do Teatro Nacional D. Maria II, inaugurado em 13 de Abril de 1846. O golpe de Costa Cabral em 1842, instituindo um governo reformador mas musculado e nepotista, fê-lo arredar de novo da área do poder.
            Afastado da política activa, em 1850, com mais 50 personalidades assina um manifesto com a lei da Imprensa, a chamada “Lei das Rolhas”. Com o fim do Cabralismo e a vitória da Regeneração em 1851, é chamado outra vez à política, onde exerce diversos cargos. Nesse mesmo ano é feito visconde de Almeida Garrett por D. Pedro IV. Em 1852 volta a ser eleito para o parlamento, sendo chamado a ocupar temporariamente o lugar de Ministro dos Negócios Estrangeiros. Mas já estará enfraquecido e doente. Prossegue a vida parlamentar, onde se destacava como grande orador. Em Março de 1854 chegou mesmo a criticar o então todo-poderoso Ministro do Reino, Rodrigo de Fonseca Magalhães. Mas a sua saúde vai-se degradando, e em 9 de Dezembro de 1854 morre em Lisboa, vítima de cancro hepático, quando muito ainda havia a esperar da sua produção literária.

A OBRA
            A obra de Almeida Garrett é muito importante e vasta, apesar de ter falecido aos 53 anos de idade. Ele foi poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, e grande orador, deixando publicados biografias, discursos, memórias e cartas. É de destacar o seu papel como introdutor do Romantismo em Portugal, e o ter dado um novo folgo ao teatro português, estagnado deste Gil Vicente, e de fixar os contornos modernos da Língua Portuguesa. Vamos referir apenas algumas das suas obras:
Poesia:
            - Camões (1825)
            - Dona Branca (1826)
            - Flores sem Fruto (1845)
            - Folhas Caídas (1856)
Teatro:
            - O Retrato de Vénus (1821)
            - Um Auto de Gil Vicente (1838)
            - O Alfageme de Santarém (1842)
            - Frei Luís de Sousa (1843)
            - Falar Verdade a Mentir (1846).
Romances:
            - O Arco de Sant`Ana (1845) 1º Vol, 1849 2º Vol.
            - Viagens na Minha Terra (1846).

O ROMANCE Viagens na Minha Terra

- Personagens principais
            - Frei Dinis: Um homem carregado de remorsos, outrora abastado, Dinis de Ataíde, ligado ao assassínio de três pessoas, que entra num convento mais para dar sossego à sua alma do que por qualquer vocação religiosa. Está voltado para o passado, é reaccionário e miguelista. Representa o conservadorismo de Portugal, cheio de falsas ideias de grandeza, mas estéril, com um comportamento pecaminoso.
            - Joaninha: Uma jovem meiga e ingénua, de belos olhos verdes, que se deixa apaixonar por Carlos, seu primo. Não é excepcionalmente bela, mas a sua presença irradia grandeza, espiritualidade. É a flor do campo, inocente e romântica, desfasada da história. Representa a heroína campesina típica destes tempos, incapaz de lidar com a realidade, que vai soçobrar às suas conturbadas vicissitudes.
            - Carlos: Neto de D. Francisca, um jovem, que depois de ter descoberto um hediondo segredo de família adere às ideias liberais do tempo e vai para Inglaterra defender a sua causa. Passa por França e vem mais tarde para Portugal, integrado nas forças de D. Pedro. É de natureza instável, acaba por deixar Joaninha, ligando-se a Georgina, depois de outras relações ocasionais. Por fim sacrifica tudo para ser barão. Tem muito da biografia de Garrett: é um herói romântico, apaixonado e inconstante, voluntarioso mas ingénuo, e por fim calculista.
            - D. Francisca: Velha cega, decrépita, avó de Joaninha, que falhou na educação dos seus filhos. Na sua família ocorressem incestos e assassinatos, que muito a desgostaram. É conservadora dos valores antigos, condescendente, mas não sabe prever o futuro. Representará a impreparação absolutista para governar Portugal.
            - Georgina: Namorada inglesa de Carlos, ingénua e doce, ao sabor daquela época, que perante as dificuldades de uma relação amorosa se refugia num convento. Mais uma vez o convento como uma fuga à realidade do mundo. É uma figura representativa do romantismo citadino. 


- Súmula do romance
            Para a análise deste romance, o mesmo vai dividido em seis partes, mas apenas para efeitos analíticos, já que o autor não o fez. Os capítulos vão sendo assinalados entre parêntesis.
            1ª Descrição da viagem para Santarém (1 a 10)
            O livro compõe-se de 59 capítulos, forçados para a sua publicação em periódico, e dirigido especialmente às leitoras. Vai de 1830 a 1834. Numa segunda-feira, dia 17 de Julho de 1843, o nosso autor, dando um pequeno lampejo da Baixa de Lisboa, parte de barco do Terreiro do Paço para Santarém, onde não consta que Lord Byron tenha tecido elogios à lezíria (1). Tece algumas considerações sobre o progresso, o espiritualismo e o materialismo, que liga a D. Quixote e Sancho Pança, as ideias de Benthan, para quem a filosofia antiga era um sofisma, e critica os políticos de Lisboa (2). Dispersa-se em filosofias de Rei de Facto e Rei de direito a caminho do Pinhal de Azambuja (3). Fazendo as suas diatribes políticas, detêm-se a citar Démades e Addison (4). Chegado a Pinhal de Azambuja lembra-se de Dumas e Vitor Hugo para nos dizer como fazer um romance: Todo o drama e todo o romance precisa de: uma ou duas damas, um pai, dois ou três filhos de dezanove a trinta anos, um criado velho, um monstro encarregado de fazer maldades, vários tratantes e algumas pessoas capazes para os intermédios (5). Volta-se a seguir para a história e para a literatura, fala na Divina Comédia e do Fausto, de Napoleão, de Camões e de Os Lusíadas, de Vitor Hugo e Lamartine, de Colbert, Ricardo Smith e Say, e com isto chega a um café do Cartaxo (6). Põe-se aqui a fazer comparações ente o Bois-de-Boulonhe e o Cartaxo, a toda a glória que a Grã-Bretanha deve a Portugal, e cita Shakespeare, Lafitte e Milton, recordando que o marquês de Saldanha tivera ali o seu quartel-general durante a última Guerra de Sucessão (7). Sai do Cartaxo a falar da poesia de Teócrito e Vergílio, Gessner e Rodrigues Lobo, para entrar em nostalgia e recordar a última revista de D. Pedro ao exército liberal antes da Batalha de Almoster, chegando por fim à Ponte de Asseca (8). Perde-se então, ao estilo de artigo de jornal, a enaltecer a obra teatral de Manuel de Figueiredo. Discorre sobre de Portugal, sobre Lisboa e o Império, sobre a Revolução de Julho (1831), sobre Luís Filipe e Chateaubriand (9). Ao chegar ao Vale de Santarém faz uma descrição antológica, que se vai transcrever: O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita; não há ali nada de grandioso nem sublime, mas há como que uma simetria de cores, de sons, de disposição de tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali num reinado de amor e benevolência. É então que se depara com uma janela e a “Menina dos Rouxinóis” de olhos verdes (10).
            2ª Inicia a parte romanesca (11 a 25)
            O autor dispersa-se aqui a falar de El-rei da Dinamarca, que hoje nos pode parecer um tanto fastidioso, para chegar a casa de uma velha de setenta anos, bem passantes, e da sua neta Joaninha, onde verdadeiramente se começa o enredo do romance (11). Inicia-se o primeiro diálogo entre Joaninha e a avó. Tece em traços gerais a personagem Joaninha de olhos verdes, de dezasseis, que não era bela, mas que tinha uma admirável simetria de proporções, uma pose nobre, uma conversação cortês, era casta e ingénua, o que seria um adorável defeito. Culmina com a chegada de Frei Dinis (12). Outra vez a dissertar sobre frades, naquele tempo um tema recorrente, já que ainda eram nesta altura numerosos e poderosos ao lado das forças de D. Miguel. Numa sociedade que estava a substituir os frades por barões, D. Quixote era o frade (idealista) e Sancho Pança o barão (calculista). Entediado pela substituição dos frades pelos barões, ele é comedido a acusar os frades, e sobretudo as freiras, tão presentes na vida de então, na própria literatura (13) Aqui se começa a desenvolver o romance, Frei Dinis dá a manga a beijar à avó e à neta, e com uma palidez de estatuária pronuncia algumas palavras denunciando a sua desventura: tristes segredos que a capa que usa encobre (14). O retrato de Frei Dinis, que se fizera frade não por vocação, mas cansado do mundo. Não era do estilo de Condillac, um abade francês que não exercia funções eclesiásticas e preferia a literatura e a ciência. Frei Dinis não acreditava na liberdade e igualdade proclamada pelos liberais, e considerava as instituições monásticas fundamentais para a sociedade civil. Vivia sob o regime dos cilícios, da abstinência e da penitência. Daqui se prova que nem só de pão vive o homem, mas então de que viveria Frei Dinis? (15) Algo grave aconteceu na sua vida, que um dia era Dinis de Ataíde, e no outro Frei Dinis da Cruz. Doou todos os seus bem a D. Francisca, avó de Joaninha, ficando só com o necessário para pagar a sua entrada no convento. Tem uma conversa azeda com Carlos, neto de D. Francisca e primo de Joaninha, com quem se desentende, e este resolve embarcar para a Inglaterra, aderindo às ideias liberais. Este facto, a acumular a outras desgraças, fez chorar muitas lágrimas à sua avó, que acabou por cegar (16). Depois de oito dias de ausência do Vale, Frei Dinis aparece, vindo de Lisboa. Diz-lhe que Carlos está no Porto, integrado num pequeno exército de D. Pedro, mas ela não acredita e evoca a sua queria e desgraçada filha. Ele aquieta-a, mostrando-lhe uma carta do cônsul da França, provando que ele está vivo, que dá a ler a Joaninha (17). Joaninha lei a carta, mas só para si, não a leu em voz alta, como pediu a sua avó, seria uma carta de amor. Do que Carlos lhe dissera, seria apenas metade da verdade. Estava agora Carlos do lado de D. Miguel, e Frei Dinis do lado de D. Pedro, para a velha senhora: entre vencidos e vencedores, a vontade de Deus que fosse feita (18). Acontece que em 1833 os liberais (constitucionais) estão a tomar o poder em Portugal, enquanto D. Miguel se fortifica em Santarém, as tropas de D. Pedro estão com o quartel-general no Cartaxo. A guerra civil levava a devastação e a ruína ao vale, e Joaninha vinha de manhã para a janela sentir aquele tempo, em que os rouxinóis cantavam ao seu lado nas árvores, idilicamente, daí a passarem a designar por “Menina dos Rouxinóis”. Com o início dos combates ela chegou a velar pelos enfermos daquela pavorosa guerra. Um dia veio um oficial de Lisboa (era Carlos), que, não conhecendo ainda bem a disposição da suas forças, quis inteirar-se de uma jovem que estava ali à volta, talvez fosse uma espia, e indo lá verificou que ser nada mais nada menos que Joaninha (1)). Joaninha dormia, toldada pela verdura das árvores, com reflexos daquela manhã, e Carlos está fardado, galante, e isto presta-se para o autor fazer alguma dissertação ao gosto romântico. Ela conta-lhe que a avó está cega, cega de tanto chorar (20). Eles ficaram ali os dois, no Vale de Santarém, Carlos e Joaninha, até as estrelas luzirem no céu, embrenhados no delírio romântico daquele encontro, mas depois tiveram de regressar cada um ao seu lado, Joaninha ao dos realistas, e Carlos, agora capitão, ao lado dos constitucionalistas. Mas ele ainda teve dificuldade em se identificar perante as suas sentinelas, que à noite mal o distinguiam, e o censuram pelas suas fraquezas perante a freira de S. Gonçalo na Terceira e da inglesinha (21). No dia seguinte Joaninha escreve uma carta a Carlos, dando conta do periclitante estado de saúde da avó, mas isto seria um estratagema para o atrair a si. Carlos viu-a uma mulher feita, não a menina que fora, está tentado por ela. Mas ele tem já outro amor, o da inglesa Georgina. O último beijo de Joaninha ainda o queimava por dentro, e ao fim da tarde vai ao encontro dela (22). O autor perde-se a em considerações à volta de Carlos ir ou não ver Joaninha, e a sua avó, uma velha decrépita e cega, que tinha por trás a figura quase sinistra de Frei Dinis, que o obrigara a sair dali e ir para Inglaterra. Seria que Joaninha sabia o segredo? Põe a tecer um poema vulgar, de sabor romântico à “Menina de Olhos Verdes”, e aproveita para citar pomposamente Homero e Virgílio, Sófocles e Horácio, Camões e Tasso, Corneille e Racine, Poper e Molière, fazendo alardes da sua cultura literária (23). Distingue o homem que Deus fez e o homem que a sociedade tem contrafeito, o homem natural e o homem social, reflectido nos instintos e no pensamento de Carlos. Joaninha recebe-o e diz-lhe que ela cegou à força de tanto chorar por ele, talvez por ser mau cristão, se ter afastado de Deus, por escrúpulos que lhe infundira Frei Dinis. Há um segredo que liga a avó a Frei Dinis, e destes com os primos Joaninha e Carlos, que não chegam a ser aqui aclarados. Ela quer convidá-lo a ir ver a avó ao lado realista, mas ele alerta para o perigo das sentinelas. Ele franze a testa e ela fica admirada, ao verificar que ele se parece assustadoramente com Frei Dinis. Ele beija-lhe a mão (24). Continuam ali os dois desfrutando de momentos felizes. Ele quer vir ali todos os dias, mas às sextas-feiras vem ali Frei Dinis, e ele disse nunca mais o querer ver. Viria no dia seguinte, no Sábado. Eles continuam a falar, mas Joaninha verifica que os olhos dele perderem a magia de um amor antigo, e diz-lhe que ele já não a ama, foi conquistado por outra mulher. Despedem-se com um óculo tímido e recatado (25).
            3ª Suspende o enredo para visitar a vila (26 a 31)
            Aqui volta a suspender a novela para visitar a vila (Santarém só seria elevada a cidade em 1886) e deambular pela literatura: Se eu um dia for a Roma, hei-de entrar na Cidade Eterna com o meu Tito Lívio, o meu Tácito nas algibeiras do meu paletó de viagem: Enaltece Duarte Nunes como reformador das nossas crónicas, e Shakespeare, que só o passou a entender quando o leu em Warwick, ao pé do Rio Avon, sob um carvalho. E continuou neste tipo de divagações presumidas (26). À sua chegada a Santarém enaltece o encanto da vila, da beleza dos seus olivais, disserta sobre a Feira da Vila, uma praça rodeada de belos edifícios, palácios, igrejas, conventos: encantadora, caprichosa como um poema romântico. Refere-se ao Convento de Jesus, ao Convento de S. Domingos, ao Convento de S. Francisco, ao Mosteiro das Claras, à igreja de Santa Maria da Alcáçova (27). Começa por se enfeitiçar pela igreja de Santa Maria da Alcáçova, para falar dos palácios que foram de D. Afonso Henriques, daquela que era a primeira vila de Portugal, para criticar a arquitectura que adveio ao terramoto de 1755, que restaurou com mau gosto o que caiu ou foi danificado: Não se podia cair mais baixo em arquitectura do que caímos – diz ele. Acaba por tecer laudas ao chefe do Partido Progressista de Portugal, e referir que do primitivo palácio de D. Afonso Henriques quase não resta nada, traduzindo a seguir os versos da introdução do Fausto de Goethe (28). Neste capítulo embrenha-se em considerações poéticas. Fixa-se à volta da arquitectura da cidade, das suas ruínas, das suas reconstruções. Durante o almoço falam de pessoas e factos importantes ligadas à vila, D. Afonso Henriques, S. Frei Gil, o Santo milagre, o Alfageme, o Condestável, Frei Luís de Sousa ali nascido e Pedro Álvares Cabral. Acaba transcrevendo a trova de Santa Iria, interrogando-se de quantas santas haveria em Portugal (39). A seguir conta a lenda de Santa Iria (Irene), que iria dar o nome a Santarém. A santa era de Nabância (Tomar), recusou a corte do jovem Britaldo e foi para um convento, mas lá também um monge se deixou enfeitiçar por ela. Como ela recusasse o assédio deu-lhe uma tisana que a fez passar por grávida, pela qual foi expulsou do convento. Já cá fora foi assassinada por Britaldo e atirada rio abaixo. As suas virtudes criaram-lhe fama de santa, e os coevos foram à sua procura rio abaixo, onde a encontraram num sepulcro próprio de anjos, em frente de Escalabicastro, porém, não a conseguiram dali tirar: era um milagre. Só mais tarde, no tempo da Rainha Santa Isabel, esta a conseguiu remover do rio e trazer para a vila, onde hoje ainda está (30). O autor deambula a seguir pela Igreja da Alcáçova, disserta sobre o busto de D. Afonso Henriques, passa pelas muralhas da vila, pelas Portas do Sol, numa literatura de viagens carregada de história, para só depois dizer que vai voltar a falar de Joaninha (31).
            4ª Reinicia-a o enredo com a chegada da guerra civil a Santarém (32 a 35)
            Volta-se ao romance com a intensificação dos combates, e com Carlos a ser ferido e a tornar-se prisioneiro. Vai parar às celas do Convento de S. Francisco. Ali internado, sem que ainda tenha recuperado a consciência é tratado por uma bela enfermeira, e quando recupera os sentidos é Georgina que vê. Está ali a tratar dele durante semanas, e quando ele recupera manda chamar a avó e a prima Joaninha, dizendo que ela já não tinha ali mais nada a fazer: descobrira que ele já não a amava (32). Georgina vai explicar-se para Carlos. Ela verificara que ele a tinha deixado de amar, quando passou a receber as suas cartas com menos fulgor, sabia agora que ele amava a sua prima Joaninha, que estava ali na presença da avó e de Frei Dinis (33). Frei Dinis vem perdoar a Carlos a maldição que ele pouco antes lhe tinha proferido, chamando-lhe filho, aqui se revela a sua paternidade, mas ele não se sente reconciliado com quem cobriu de infâmia a sua infância, acusa-o de ter assassinado o seu pai e cegado a sua avó. Tudo na presença de Georgina. Cá fora festeja-se a vitória dos constitucionalistas em Asseiceira, a causa está perdida para os realistas. Frei Dinis pede ao filho que o mate, que seja o executor das iras divinas (34). Segue-se este novo capítulo, que é o mais esclarecedor da intriga do romance. Georgina pede para Carlos pedir perdão a Frei Dinis, mas ele recusa. Pede-lhe que perdoe também à memória da sua desgraçada mãe. Aparece a seguir a velha D. Francisca, gritando que Frei Dinis é seu pai, e Carlos cai sem sentidos. Georgina diz que já não o ama e pede a Joaninha que tome conta dele, já que ele próprio pode ser o seu maior inimigo. Joaninha promete fazê-lo e diz que o ama cada vez mais. Carlos recupera os sentidos e acusa Frei Dinis de assassino, e o frade desculpa-se, dizendo que apenas se defendeu do pai de Joaninha e do marido de sua mãe, que o cercaram para o matar, nem sequer sabia quem eram. Ficaram ali no rio e foram dados como afogados (mas ele ainda iria matar a mãe de Carlos). Só então Carlos beija a mão de Frei Dinis e abraça a avó. Pouco depois parte para Évora, integrado no exército constitucional (35).
            5ª Volta a interromper a sua história para falar de Santarém (36 a 42)
            O autor interrompe de novo a história para falar do Santo Milagre, embora ainda esboce um perfil de Carlos pouco abonatório, de homem céptico, calculista, imoral, que amou duas mulheres ao mesmo tempo, e que agora deu em agiota, quer ser barão e deputado (36). Volta a referir-se à igreja da Graça de fachada gótica, e à sepultura de Pedro Álvares Cabral, à igreja do Santo Milagre (igreja de Santo Estêvão), onde no século XIII de uma hóstia brotou sangue. Com as invasões francesas esta relíquia foi para Lisboa, que demorou a restituí-la à vila (37). Foi jantar a casa do seu amigo, que ocupava os reais paços de D. Afonso Henriques. Ainda montaram a cavalo e foram até à Ribeira de Santarém, passaram por um baile popular. Terminou já a pensar em Lisboa, embora pessimista: num mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda como a que nos fazem as leis… (38). Continua num tom pessimista, queixando das excelentíssimas hipocrisias que proferiram contra ele certos moralistas de requiem. Pede desculpa por não continuara o romance e vai dar uma volta pela vila, visitando o Colégio dos Jesuítas, todo filipino, falando dos templários e dos jesuítas. Mais algumas considerações literárias. Vai ao túmulo de S. Frei Gil e encontra-o vazio (39). Conta-nos um episódio passado em 1834, em que um franciscano e dois dominicanos vieram trazer à noite o corpo de S. Frei Gil ao Convento das Claras. As ordens monásticas masculinas estavam a ser extintas e ainda perduravam as femininas, não se sabia até quando. Isto explica a falta do cadáver do santo no capítulo anterior. O autor e reclama por um governo que saiba ser governo para regular a existência das freiras, aproveitá-las para as piedosas instituições de ensino da mocidade, de cura dos enfermos e amparo dos inválidos (40). A perspicácia do leitor deve dar para perceber que o franciscano que vou levar o cadáver às Claras era Frei Dinis. Do resto que aconteceu ao frade a Joaninha e à avó nada pôde o autor ajuizar, e ele não o iria inventar. Isto era já uma aproximação ao Realismo. Aproveita aqui para criticar alguns romancistas, ditos românticos, escrevendo livros insignificantes, que todavia todos os lêem, ainda que digam que não (actualmente o modelo repete-se: ao serem mais lidos os livros repetitivos e superficiais, tomados do sabor da época). Da história só soubera que, após a queda da cidade para os constitucionalistas, Frei Dinis fugira de Santarém, e que Georgina saíra para a estrada de Lisboa com Joaninha e a avó. Termina a lamentar-se da velha igreja gótica de S. Francisco, em ruínas, transformada em arrecadação militar (41). Protesta, escandalizado, contra o estado de ruína em que foram deixados alguns monumentos em Santarém, da profanação do túmulo de estilo bizantino de El-rei D. Fernando, que amava aquela vila, e que a brutalidade soldadesca imaginou lá dentro grandes riqueza e esventrou. Realça que Jesus Cristo foi condescendente para com muitos pecadores. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter: pegou num azorrague e zurziu-os sem dor (42).
            6ª Partida para Lisboa, quando entrevista ocasionalmente Frei Dinis (43 a 49)
            Numa sexta-feira partiu de Santarém (dia que o frade visitava D. Francisca), a vila tinha-lhe fustigado o espírito, ainda não tinha partido e já tinha saudades dela. Parou involuntariamente junto de uma janela, porventura a da “Menina dos Olhos Verdes”, e encontrou D. Francisca e um velho, que não podia ser senão Frei Dinis. (Repare-se a história que deixou lá atrás no capítulo 35, só a retomou agora, 12 anos depois: intervalo que vai da Convenção de Évora Monte em 1834, a 1846, data em que estava a finalizar o romance). Perguntou a Frei Dinis por Carlos e este disse que só sabia dele até à carta que mandou de Évora, que lhe deu a ler (43). Os próximos cinco capítulos faseiam esta carta de Carlos enviada a Joaninha. Ele exorta-a a encarar o futuro e a não se deixar cegar pelo coração, o nosso maior inimigo. Explica as razões que o levaram a partir dali, ligadas a um crime hediondo. Depois, explica como na Inglaterra se deixara enfeitiçar sucessivamente pelas irmãs, Laura, Júlia e Georgina, e de como deixou esta última (44 a 48). O autor leu a carta de Carlos e devolveu-a a Frei Dinis. Este perguntou ao autor se o conhecia, e ele respondeu que o vira há anos, mas não o conheceria se o voltasse agora a ver: engordou, enriqueceu, é barão, e qualquer dia deputado. Perguntou-lhe por Joaninha e Frei Dinis informou-o que ela enlouqueceu e morreu, e que Georgina é agora abadessa de um convento na Inglaterra. O autor manifesta-se descrente com a situação do país, antigamente havia frades, agora há barões, não se lucrou muito com este sucedâneo. Estão-se apossando dos caminhos-de-ferro. Que o governo tenha juízo, que em vez de estradas de ferro as faça de pedra. Toma uma posição contra os comboios, próxima da de Alexandre Herculano, seu coevo (49).

- Considerações finais
            Como era costume na época, Viagens na Minha Terra saiu primeiro publicado na imprensa, na Revista Universal Lisbonense, ao longo de 1845 e 1846, e só depois foi publicado em livro, ainda nesse mesmo ano. O romance em si não é extraordinário, o enredo é simples, pouco trabalhado, o autor dispersa-se por variados temas, tirando expectativa ao seu desfecho. Abusa de citações, da referência a outros autores, que inclui os clássicos, gregos e os latinos; e os modernos, não faltando os inevitáveis ingleses, franceses e alemães, pretendendo porventura evidenciar a sua elevada erudição. Apesar de criticar os excessos do romantismo e os romances de paixões assoberbadas ao sabor daquela época, não deixa de seguir o seu modelo e incluir personagens sentimentalmente desequilibradas, nem sempre convincentes. O próprio autor não parece preocupar-se com isto, como se estivesse a fazer uma série de artigos para um jornal, onde escreveria sobre o que lhe apetecesse. Ele era famoso no seu tempo, tudo o que escrevesse seria bem recebido (na escola talvez não se deva dizer isto, não será culturalmente correcto, a não ser se corroborado pelo crítico João Gaspar Simões). Então o que é que distingue especialmente este livro, ao ponto de hoje ainda o lermos e valorizamos. Citemos alguns motivos, para desenvolver aqui sucintamente:
            1º É um livro de sabor romântico, escrito pelo introdutor do romantismo em Portugal, num tempo de estagnação cultural do país, vindo das invasões francesas e da guerra civil, tornando-se um cânone para os escritores que se seguiram. O autor modera os vícios desta nova corrente: recorre ao drama sem ser meloso, aproxima a ficção realidade, escrevendo com uma sobriedade e desenvoltura que se repercutiram até hoje. É um Romance Histórico, apesar de então se reportar a factos passados há uma dúzia de anos.
            2º Numa época em que os autores procuravam dar ênfase ao sentimento, escrevendo histórias melodramáticas, de subjectivismo exagerado, focadas no sofrimento e na morte, no fatalismo, à volta de ciprestes e cemitérios, Viagens na Minha Terra é mais contida e vai além destes clichés. Além disso mistura uma série de estilos e géneros, que vão do drama à poesia, da literatura de viagens à crítica social e política. Faz reflexões sobre Filosofia e incursões na História. Cultiva a intertextualidade, o hibridismo.
            3º O seu processo narrativo é original. Na primeira parte (aqui considerada só para efeitos analíticos como se disse), é o jornalista que vai em viagem a Santarém; na segunda já é romancista, apresenta as personagens, inicia o drama; na terceira vai-nos mostrar a vila; na quarta retoma o romance, quando a guerra civil veio ali parar; na quinta volta a falar de Santarém, evocando os seus monumentos, a sua História; e na sexta parte regressa ao drama, mas já no papel de repórter, ao entrevistar Frei Dinis que lhe conta o resto da história: de narrador passa a protagonista.
            4º Outro ponto importante a considerar é a linguagem. Almeida Garrett utiliza um Português corredio, límpido do barroco e do arcadismo, sem aqueles excessos de retórica, pretensiosos e balofos, que já cansavam, recusando uma adjectivação enfatuada só para evidenciar uma falsa erudição, um Português mais próximo da oralidade, fugindo à afectação, aos artificialismos descritivos de que alguns escritores menores estavam a abusar. Neste aspecto pode ser considerado um dos precursores do Português Moderno.
            5ª Estando a par do que melhor se escrevia pela Europa, desenvolve frequentemente ensaios de literatura comparada e faz uma pequena crítica ao romantismo que tinha ajudado a introduzir em Portugal, condenando os exageros melodramáticos que alguns escritores estavam a utilizar para agradar ao público, tornando-se enfadonhos, ao ponto de dizer no livro: eu não sou romanesco, Deus me livre de o ser... (capítulo 8). Ainda que nos temas continue a ser romântico, a linguagem sóbria que utiliza e a própria visão das coisas, seriam depois aproveitadas pelo Realismo.
            6º Não incluindo muitas personagens no livro, Almeida Garrett, por hábil subtileza faz com que elas representem o Portugal de então, dividido entre liberais (constitucionalistas) e absolutistas (realistas), com dificuldades em encontrar a via da paz social e do progresso. Assim, Frei Dinis representa o mundo antigo, conservador e reaccionário, mas não totalmente mau; Carlos configura os liberais, as suas ideias inovadoras, a liberdade, mas também o relaxamento moral, o egoísmo, o oportunismo dos novos barões, sucedâneos dos frades; Joaninha representará o campesinato, atrasado e ingénuo, sem grandes ideias; D. Francisca revê-se no velho mundo rural, passivo, ignorante, quem mais sofre com as agruras daquele tempo; Georgina dá evidências da elite urbana, também sentimental, mas que se sabe aproveitar da situação para subir na escala social: é agora abadessa.

Martz Inura
05/01/2017


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