DOSTOIÉVSKI III



 


DOSTOIÉVSKI
Os Irmãos Karamazov
ÉDITIONS FERNI GENÉVE
EDIÇÃO AMIGOS DO LIVRO, LISBOA (1978?)
Tradução revista por M. Correia

 

O HOMEM

Fiódor Mikhailovtch Dostoiévski nasceu em Moscovo em 30 de outubro de 1821, no meio de uma família abastada, e faleceu em São Petersburgo em 11 de novembro de 1881, aos sessenta anos de idade. O pai era médico e vivia num andar modesto próximo do centro hospitalar onde exercia a sua profissão. Dadas as circunstâncias, ele convivia sobretudo com os seus irmãos, num ambiente pesado e circunscrito. Grande parte da sua infância passou-a à volta de doentes, médicos e enfermeiros. Posto perante este mundo sombrio, em que sobressaíam a doença, o sofrimento e a morte, ele vagueou muitas vezes à volta dos edifícios lúgubres e sinistros onde o pai trabalhava, refletindo sobre a precariedade da condição humana, cultivando a tristeza e a solidão. Com estas vivências, propensas à reflexão, foi enriquecendo a sua sensibilidade intelectual. Os seus primeiros professores foram a sua bondosa mãe e um diácono ortodoxo amigo da família.

Ainda jovem, perdeu a mãe, o que muito o afetou. E depois o pai, presumindo-se que assassinado pelos servos, revoltados contra a maneira despótica como eram tratados. Ao entrar na juventude outras desventuras lhe sobrevieram, ele descobriu que sofria de epilepsia e hipocondria. Face a esta fatalidade, voltava-se cada vez mais ao alheamento, à melancolia, chegando a pensar em suicidar-se. Aos dezasseis anos, ingressa com o irmão Michael na Escola Militar de Engenharia de São Petersburgo. Mas não sentia vocação militar, que lhe confinava a alma. Para contrariar esta frustração começou a ler livros políticos e sociais, Em 1843 concluiu os estudos e foi promovido a alferes de engenharia. Exerceu este posto durante um ano, pedindo depois a sua demissão, passando a dedicar-se à literatura. Escreveu Pobre Gente, a quem mostrou a amigos e críticos, que lhe deram incentivos para continuar.  

O começar a ser reconhecido entre os meios literários de São Petersburgo criou nele uma certa vaidade. Passou a dar-se a ares de importe, e torna-se mais interventivo. Por volta de 1849 ligou-se a um grupo de ativista socialista, naquele tempo de revoluções, muito crítico em relação ao czar e à política então seguida. Tinham reuniões clandestinas, publicava artigos ditos subversivos em revistas. Ele queria ganhar dinheiro, afirmar o seu Ego. Deslumbrado por um entusiasmo quase juvenil, julgando-se já um grande escritor, começou a escrever febrilmente, com menor rigor e autenticidade, a ponto do crítico seu amigo Beliuski ter comentado que que “ele tinha um enorme talento, mas que nunca poderia desenvolvê-lo se começasse a julgar-se um génio». São dessa altura obras como, O Senhor Prokarchim, Coração Débil, Netochka Nezcarovna e A Patroa.

Quando publicava um jornal contra o status quo é preso sob a acusação de conspirar contra Nicolau I, e condenado ao fuzilamento, bem como a um grupo de vinte e dois jovens. A execução foi mesmo iniciada na Praça Smenovski. Com eles já vestidos de camisas brancas de condenados, e amarrados cada um a um poste, de repente soaram os tambores, e foi lida uma ordem do Czar a comutar-lhe a pena para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. O Czar quis que esta execução fosse simulada para lhes pregar um valente susto, e porventura fazer prova da sua clemência. Este terrível episódio é descrito em O Idiota. Dostoiévski defendia os ideais cristãos e a igreja ortodoxa russa. Ele sofreu na sua carne a dor física, e na sua alma, o desprezo, o abandono e a rejeição de quem o rodeava. Sofria de epilepsia, uma doença que naquele tempo era olhada com repúdio e superstição.

Em 1854 saiu da prisão, e foi enviado como simples soldado para a longínqua e fria Sibéria, onde fez parte de um batalhão na linha da frente. Dada a sua cultura e antecedentes, aliados ao seu bom comportamento militar, foi promovido a oficial, tendo exercido sem reparos durante algum tempo funções no exército imperial. Mas continuava a escrever – a sua obsessão –, sendo desta época Recordações da Casa dos Mortos. Casa a seguir com Maria Dmitrevna Isaeva, com a qual nunca foi feliz, como ele próprio confessou. Em 1859 funda com o seu irmão a revista Vremia (O Tempo), onde consegue publicar algumas das suas obras. Apesar de saberem com o que contavam, esta publicação veiculava ideias demasiado progressistas para a época, acabando por ser proibida em 1863. Mas eles não iriam desistir, pouco depois, em novos moldes, fundaram a revista Epoka (A Época). 

A revista Epoka, onde tinha de conciliar cada vez mais a política com literatura, acabou também por fracassar, deixando de ser publicada. Depois da morte da mulher de seu irmão Michael, ele passou a suportar os encargos da família deste, quando os seus proventos mal davam para sustentar a sua. Era um viciado no jogo, também por causa disso se endividou. Parecia que já não conseguia sair do fosso em que estava enterrado, quando conseguiu publicar Crime e Castigo, com que equilibrou finalmente as suas contas. O êxito deste livro foi enorme. Casou com a sua secretária, Ana Grigorevna Snitkina e foi viajar pela Europa. Passou grandes temporadas na Alemanha, na Suíça e na Itália. Esteve quase a estabelecer-se em Dresden, Genebra e Milão. No estrangeiro nasceram-lhe vários filhos, e com o tempo a civilização ocidental, um tanto mais aberta que a russa, perdeu para ele o seu encanto

Em 1871 regressa à Rússia, a São Petersburgo. Já famoso, foi nomeado diretor da revista Grazdanin (O Cidadão). Mas ele próprio, em 1876 cria a sua própria revista –, O Diário de Um Escritor. Fruto da sua generosidade, tinha ideias um pouco avançadas, nem sempre sensatas. Houve um período que andou obcecado com a ideia da Rússia salvar a corrompida Europa Ocidental. Com o tempo amadureceu, o seu espírito tornou-se mais rico e introspetivo. Por fim reconheceu a importância da religiosidade para o povo russo, sobretudo para o mais humilde, e deixou-se muitas vezes inspirar por Cristo. Quando planeava continuar Os Irmãos Karamazov adoeceu com uma hemorragia pulmonar. Um dia entregou uma Bíblia à sua esposa e mandou-a abrir e ler a primeira frase que lá visse, ela leu: «Arrependeu-vos, porque o reino dos céus está perto». Estas palavras foram premonitórias. E assim, ele morreria na madrugada desse mesmo dia nos braços da sua mulher.  

 

A OBRA

A obra de Dostoiévski é constituída por mais de uma dezena de romances, alguns deles volumosos, como o presente, e outras tantas novelas e contos, com que recriou a Rússia do seu tempo. Deixou vestígios para o romance existencialista. Criou, subjacente à parte romanesca, uma filosofia que desse sentido à vida. Como escritor ele teve influência na Literatura que se seguiu, e na Psicologia, Filosofia e até Teologia. Iniciado em 1846 com Gente Pobre, ele foi escrevendo romances cada vez mais importantes. Pode encontrar na Wikipédia ou nas profusas biografias russas do autor a totalidade das suas obras. Vejamos aqui as principais:

Gente Pobre (1846),

O Duplo (1846),

Noites Brancas (1848),

Humilhados e Ofendidos (1861),

Recordações da Casa dos Mortos (1862),

Memórias do Submundo (1862),

Crime e Castigo (1866),

O Jogador (1867),

O Idiota (1869),

O Eterno Marido (1870),

Os Possessos (1872), (Os Demónios, Brasil).

O Adolescente (1875),

Os Irmãos Karamazov (1881)

 OS TRÊS VOLUMES (TOMOS) DESTA EDIÇÃO

 

  
        Estes três volumes de Os Irmãos Karamazov foram lidos por muitos jovens. Repare-se que o 1º volume é o mais lido, o dourado da capa está gasto, o 2º ainda é lido, e o 3º quase ninguém o quis ler, achavam que com a prisão de Dmitri a história estava contada. Todavia, tal não era o caso, Dmitri estava inocente, fora Smerdyakov que assassinara o pai, e perderam de ler a parte em que o autor vai mais longe sob o ponto de vista psicológico.


O ROMANCE Os Irmãos Karamazov

(Esta obra foi objeto de muitas adaptações ao cinema e ao teatro) 

 

a)     As Principais Personagens (vai usar-se a grafia deste livro, há outras)

 

             Esta foto, bem como as que se seguem, pertencem ao filme de 1958 de Richard Brooks. Nesta foto podem ver-se, da esquerda para a direita: o pai, Fedor Karamazov; o filho mais velho, Dmitri;  o filho mais novo, Aliocha, e o filho do meio, Ivan. Ao centro, lá ao fundo está Smerdyakov, o filho bastardo.  Este filme foi Palma de Ouro do Festival de Cannes. 

ARTISTAS QUE OS REPRESENTARAM NO FILME:
Fedor Karamazov: LeeJ. Cobbe
Dmitri: Yul Brynner; 
Aliocha: William Shatner
Ivan: RicharD Basehart;  
Smerdyakov: Albert Salmi


Fedor Pavlovitch Karamazov: O pai dos irmãos Karamazov, viúvo de duas mulheres ricas. Pessoa sem princípios, que negligencia a educação dos filhos, de quem nem sabe qual é a mãe. É ganancioso, mulherengo e bêbado, de quem ninguém gosta. Acaba morto por Smerdyakov, seu filho bastardo.

Dmitri Feodorovitch Karamazov (Mitya): Filho da primeira mulher, Adelaide Miusov. É violento, orgulhoso, instável, destemperado, sem rumo. Foi tenente do exército imperial no Cáucaso. Fruto de uma educação sem amor, é atormentado pela ideia de pecado. Tem uma personalidade mal resolvida. Vítima de erro judiciário, foi condenado a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria.

Ivan Feodorovitch Karamazov: Filho da segunda mulher, Sofia Ivanovna, muito perscrutador, é o intelectual da família, ligada às ideias modernas, ao socialismo ao ateísmo e ao amoralismo. Escreveu um artigo sobre religião que foi muito apreciado. Não havendo Deus tudo é permitido. É atormentado entre as ideias de um ateísmo inconsequente e um Deus castigador, ficando meio louco. A sua crise existencial quase leva a perder o juízo, (curiosamente, como Nietzsche o viera a perder).

Alexei Feodorovitch Karamazov (Aliocha): Filho de Fedor e de Sofia Ivanovna, é terno, sensível e generoso, torna-se noviço num convento. O padre Zossima, presbítero com fama de santo torna-se seu mentor. Vai evoluir e ter diversas visões do mundo. Tem fé em Deus e amor à humanidade. Não é muito inteligente, mas tendo uma vida regrada e consistente, acaba por se impor aos irmãos, e até, pela sua bondade e sentido prático, influenciar Lisa Holakov e Gruchenka. 

Piotr Alexandrovitch Miusov: Primo da mãe de Dmitri, Adelaide Ivanovna, mais tarde nomeado cotutor daquele. É um político intelectual que despreza Fedor.


Grigory Vassilyevitch: Velho criado da família, que criou os filhos de Fedor Karamazov

Maria Ignacieva (Marfa): mulher de Grigory, compassiva, mais esperta que o marido

Pavel Smerdyakov: Órfão de Lizaveta, que Grigory trouxe por piedade para casa para a esposa, que não tinha filhos, o criar. Foi mandado para Moscovo aprender a cozinheiro e ficou criado da família. Passou por muitas humilhações. Julgam-no filho bastardo de Fedor. Ele gosta de discutir a filosofia amoral de Ivan, que abre caminho ao assassínio de Fedor.

Lizaveta Smerydashchaya: Mulher da rua, que dera um filho, Smerdyakov. Andou com vários homens, entre eles, Fedor Karamazov. Morreria de parto.

 Gruchenka: (Agrafena Alexandrovna Svetlova): Jovem de grande beleza. Abandonada por um amante em jovem foi parar a casa do velho Samsonov, que a deixou na cidade. Vivia de homens. Era uma amante difícil, interesseira, ávida de dinheiro. O seu encontro ao fim com Aliocha tornou-a mais dócil e piedosa.


Gruchenka (Maria Schell)

Catalina Ivanovna Verkhovtsev (Katenka): Criada pela Srª Holakov, enfermiça, mas mulher de grande beleza, rainha de todos os salões. Noiva abandonada por Dmitri, em favor de Gruchenka, torna-se áspera e vingativa. O seu depoimento no tribunal pesou muito contra Dmitri.

Catalina Ivanovna (Claire Bloom)


Agafya Ivanovna: Irmã mais velha de Catalina, alta, forte, loura, modista, que repeliu vários pretendentes.

Mikhail Osipovich Rakitin: Estudante de seminário com origem em família abastada, liberal, ainda parente envergonhado de Gruchenka, que diz que pode amar a humanidade sem Deus. Quer corromper Aliocha, ligando-o a Gruchenka.

 

Padre Zossima: Presbítero do convento, mentor espiritual de Aliocha, já velho e doente, propaga o amor ativo à humanidade, tem fama de santo.

Padre Paissy: Homem de grande cultura e humanidade.

Padre Yosif: Outro padre do convento também muito interventivo.

Padre Feraponte: Monge asceta que vivia numa cela afastada, quase louco. Tinha inveja da propagada santidade do padre Zossima.

 

Katerina Ospovna Holakov (Srª Holakov: Viúva de posses, com uma filha Lisa, com paralisia parcial, mais tarde curada pelo padre Zossima

Lisa Holakov : Jovem débil, que andava de carreira de rodas, filha da Sr.ª Holakov, que o padre Zossima curou de enfermidade. Era mimada e caprichosa, gostava de Aliocha.

 

Capitão Nicolai Ilytch Snegiryov Antigo capitão de infantaria, cujos vícios o envergonham a si e à sua família. Mesmo pobre não se deixou ajudar por Aliocha. É pai de Ilucha.

Arina Petrovna: mulher do capitão Snegiryov, enfermiça e frágil.

Ilucha: filho do capitão Snergiryov, rapaz que fora atacado por vários dos seus colegas, vítima de bulying, e que vira o pai ser agredido por Dmitri Karamazov. Foi vítima de grave doença.

 

Kolya Krassotkin: Jovem bem formado, órfão de pai, amigo de Ilucha, com quem em tempos tivera um desentendimento. Entra mais para o fim do romance

Maximov: É um ex-proprietário empobrecido, adulador, sexagenário, que gosta da boa vida. Tem uma relação especial com Gruchenka, que o tolera.

Kuzma Samsonov: Um protetor de Gruchenka, que a acolhe depois de abandonada por um amante e a abandona na cidade.

Dr. Herzenstube: Médico dos Karamazov e da Srª. Holakov, pacífico, perito no tribunal.

Pyotr Perkotin: Dono de uma casa de penhores que acusa Dmitri no tribunal.

 

Hipolito Kirilovitch: Procurador no processo contra Dmitri

Fetyukovitch: Advogado de defesa de Dmitri


 

 b)     Resumo do Livro

Primeiro Tomo

            Este primeiro tomo é constituído por cinco livros. Dostoiévski retrata-nos aqui uma família, e nela como nos vai dar uma amostra do que era a Rússia do seu tempo. Ele vai relatar a vida de Fedor Karamazov, um pai desnaturado, viúvo duas vezes, que vivia de expedientes menos honestos, descurando a educação dos filhos. O primeiro é Dmitri Karamazov, um revoltado e estroina como o pai, mulherengo, que ainda não sabe muito bem o que fazer ao seu destino, tanto é capaz de ser generoso como violento e déspota; o segundo é Ivan Karamazov, mais voltado para as letras, perto dos intelectuais, socialista, de ideias avançadas, muito inteligente, mas de saúde frágil; o terceiro é Aliocha Karamazov, nos primeiros tempos, noviço num convento, muito sensível e generoso, movido pela fé em Deus. Este I livro termina a descrever a organização a ordem religiosa que ele pertence. No II livro descreve-se uma reunião da família no mosteiro do padre Zossima, uma ideia do pai, talvez para reconciliar a família, mas Dmitri chega atrasado e gera-se a confusão. Entretanto o venerável Zossima conforta uma mulher que perdeu um filho de três anos, desgosto por que também passou Dostoiévski. No III livro o autor esboça o triângulo amoroso do pai Fedor, filho, Dmitri e Gruchenka. Há um desentendimento entre pai e filho, e Dmitri agride o pai e ameaça um dia matá-lo. São apresentados também o lacaio Smerdyakov, filho de uma tal Lizaveta, mulher que vivia na rua. Suspeita-se que ele seja filho de Fedor Karamazov. O menino foi criado por Grigory Vassilyevitch e Maria Ignacievna. É aqui descrito o encontro entre a noiva de Dmitri, Catalina Ivanovna e a sua amante, Gruchenka, e toda a intriga e escândalo que dali resultou. No livro IV mostra-se a desumanidade de Dmitri, quando ataca o já frágil capitão reformado, Sneguiryov, que é socorrido pelo seu filho Ilucha, ainda criança. Aliocha toma conhecimento desta afronta e tenta oferecer dinheiro a Snegiryov para o compensar dessa humilhação, mas ele tem a sua dignidade e não aceita. No V livro ele narra aquela passagem de Ivan sobre o “Grande Inquisidor”, na sé de Sevilha, Espanha, em que, seguindo as ideias racionalistas e niilistas da época, ataca a igreja ortodoxa e mesmo a católica, rejeitando o mundo que Deus criou, erigido na base do sofrimento. Na referida alegoria, ao fim Cristo beija na boca o Inquisidor que o tinha expulsado do templo, que tocado com esta reação o liberta, e o mesmo faz Aliocha ao irmão no fim da sua exposição, depois do que se despedem. Ivan está disposto a admitir a existência de Deus, mas considera que a sua providência está fora do seu alcance.


Segundo Tomo

            Este tomo ainda prossegue com o livro V em Momentos de Angústia (capítulo VII) em que o pai, Fedor Karamazov, chama o médico, doutor Herzenstube para o tratar da agressão que sofreu às mãos do filho, Dmitri. No VI livro o padre Zossima define a vida monacal, e faz um pouco da sua biografia. Fala das suas práticas e exortações, da forma como foi tomado pela fé no meio de um duelo. Na sua filosofia considera que os homens se devem perdoar uns aos outros, porque o pecado não é isolado –, tal como num oceano, em que o movimento que se faça num lado se repercute no outro. Enfim, tem uma visão sociológica do ser humano. A sociedade, através da educação, enfim, da socialização determina bastante o seu comportamento. No fundo, ele apresenta uma filosofia que vê da mesma maneira que Ivan o mundo, mas de ângulo diverso. O VII livro anda um pouco à volta da morte do padre Zossima, que tem fama de santo, e a sua relação com Aliocha. Baseado nas suas crenças, este pensa, aliás como quase toda a cidade, que o seu corpo é incorruptível, porém, o funeral ainda não foi realizado e o corpo já começa a decompor-se exalando um cheiro execrável, e isto o dececiona. Um companheiro de Aliocha, filho de boas famílias, Rakitin (o tal que não se rebelava contra Deus, só não aceitava o mundo que Ele tinha criado), vendo a sua vulnerabilidade tenta levá-lo até a bela Gruchenka, atraí-lo para o pecado, mas este facto em vez de o corromper, antes provoca nos dois uma exaltação da sua fé. Aliocha abandona o convento, mas vem imbuído da visão do mundo do padre Zossima. No livro VIII desenrola-se a disputa mais violenta de Dmitri por Gruchenka. Ele tenta reunir dinheiro para a convencer a fugir com ele. Primeiro vai com ela a casa do comerciante Samsonov, antigo benfeitor de Gruchenka, mas não tem sucesso, depois vai a casa da S.ª Holakov, que lhe acena com umas minas de ouro imaginárias, uma miragem para o despachar. Ele volta a casa de Samsonov, e, vendo que ela já ali não estava, movido por ciúmes doentios, volta a casa do pai com um pilão, onde pensa que ela estava. É noite, a janela do quarto do pai está iluminada. Ele, ao notar o seu semblante sombrio, imaginou que ela não estivesse ali, mas de súbito, acometido pela dúvida, dá umas pancadas no batente da janela, que Smerdyakov dava para indicar ao seu patrão a presença de Gruchenka, O pai vem à janela, pensa que é ela a chamá-lo, e desce inebriado a abrir-lhe a porta. Esta descrição aqui é um tanto nebulosa e confusa, processo que o autor utiliza para adensar de mistério o romance. De repente aparece Dmitri a fugir de casa do pai, atingindo o criado Grigory na cabeça com um pilão na cabeça, que quase o matava. Vai a seguir a casa de Pyotr Perkotin recuperar as suas pistolas, que tinha empenhado, empunhando com uma mão cheia de dinheiro. Vem com manchas de sangue nas mãos e na roupa, o que intriga o lojista, que até o ajuda a lavar-se. Ali fica a saber que Gruchenka partiu para uma estalagem em Mokroe, uma aldeia vizinha. Dmitri aluga uma carroça que enche de comidas e bebidas, para ali fazer um festim, e assim impressionar Gruchenka. Ela mostra-se sensível ao seu amor, e até fazem projeto de casamento, quando a polícia entra por ali dentro e dá ordem de prisão, acusando-o de ter assassinado o pai. No livro IX é feita uma investigação preliminar ao assassinato de Fedor Karamazov. Dmitri Karamazov nega o crime, mas tinha sido visto com milhares de rublos na rua, e visto que desapareceram três mil rublos que o pai tinha guardado, destinados a Gruchenka, Ele diz que aquele dinheiro procedia de Catarina Ivanovna, que os deu a ele para fazer entrega, mas que gastou metade na festa com Gruchenka e guardou a parte restante no colarinho da camisa para lhe devolver mais tarde. Esta versão não convence os juízes. Dmitri é formalmente acusado de parricídio e levado para a prisão, ficando a aguardar julgamento

Terceiro Tomo

            O terceiro tomo nesta edição começa no livro X, em que Dostoiévski se afasta um pouco do veio principal da história para nos falar da relação de Kolya Krassotkin, um rapaz de dezasseis anos, já tomada pela onda de ateísmo e socialismo que varre a Europa, do género de Ivan. Em tempos teve um desentendimento como Ilucha, mas depois ao saber da sua doença mostra-se solidário com ele. É um rapaz muito conceituado entre os jovens por se ter deitado na linha de caminho-de-ferro e deixar passar por cima de si um comboio. Este livro, que tem apenas uma leve conexão com Ivan Karamazov e Aliocha Karamazov é enternecedor. O livro XI relata a influência de Ivan sobre quem vive à sua volta. Ele vai ter uma conversa com Smerdyakov em que este confessa ter fingido um ataque epilético e ter assassinado Fedor Karamazov, embora o considere, seu cúmplice pelas influências que recebeu dele, visto que propagava que num mundo sem Deus tudo é permitido. Pouco tempo depois enforca-se. Deste desenlace toma conhecimento Ivan e Aliocha. No livro XII começa o julgamento. Dostoiévski retrata aqui a assistência, os homens ressentidos com Dmitri, as mulheres fascinadas com o triângulo amoroso: Dmitri, Catalina e Gruchenka. Há várias testemunhas a depor, bem como o parecer de peritos. De salientar o depoimento desconcertante de Ivan acometido de epilepsia, e o testemunho de Catalina contra Dmitri. Durante o julgamento de Dmitri teve um sonho, cujo simbolismo o leitor poderá ajuizar. Segue-se as alegações finais e o réu é dado como culpado. No epílogo discute-se um plano de fuga para a América de Dmitri e Gruchenka, a fim de lhe evitar vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Parece envolver Catalina Ivanovna e Ivan, apoiados por Aliocha, através do suborno dos guardas. Pensam em retornar mais tarde à Rússia com nomes americanos, porém, a fuga não chega ser levada a cabo. Apesar de Catalina Ivanovna ter incriminado Dmitri, ao mostrar a carta que ele lhe enviou, confessando a intenção de matar o pai, ele na prisão implora para que ela o visite para lhe pedir desculpa por todo aquele imbróglio. O romance termina com o funeral do pequeno Ilucha. Está presente Aliocha, que promete que um dia se reunirão todos outra vez na ressurreição. Os doze meninos que vêm ao funeral, encabeçados por Kolya, gritam ao fim, conforme pedido de Aliocha: Viva Karamazov!

 

 

c)     Apreciação Geral do Livro


         Os Irmãos Karamazov, considerada a obra-prima de Dostoiévski, é um romance da maturidade do autor, quando ele já tinha apurado as suas ideias políticas, económicas, sociológicas e psicológicas, e na Rússia já se tinham operado transformações importantes, como o fim da servidão em 1861, e a reforma judiciária de 1864. Ele assistiu ao ardor do embate entre a igreja ortodoxa russa com as ideias liberais europeizadas, ao fantasma do socialismo emergente, e ao aparecimento de círculo revolucionário do seu tempo. O autor já tinha também aguçado a sua visão histórica do mundo e aprofundado as suas crenças religiosas. O axioma que orienta o romance, enunciado por Ivan Karamazov: “Se Deus não existe tudo é permitido”, em que os valores morais se tornariam arbitrários, já tinha sido definitivamente por ele alterado para a crença ou convicção de que “Deus realmente existe, é melhor que nos comportemos bem”. Não basta sermos inteligentes para resolvermos os nossos problemas, precisamos de ser pacientes, generosos e persistentes. Todavia, o romance é um pouco sombrio, aliás, como foi a vida do autor. Moralmente são poucas as personagens exemplares, talvez Zossima, Aliocha, Ilucha, talvez Kolya, mas a maioria são poucos edificantes, algumas sofrem de enfermidades, fazendo sugerir que o ser humano se pode redimir mediante o sofrimento.

         O romance, na esteira de Crime e Castigo tem uma veia policial. Explora como tema, o parricídio. Todos os três filhos, no fundo desejam a morte do pai, que é um homem sem princípios, egoísta, ganancioso e lascivo, com quem se sentem em oposição. E repare-se que embora Dmitri várias vezes ameaçasse matar o pai, é Smerdyakov que acaba por o fazer, não sendo estranho a isso, para além das teorias amoralistas com que Ivan o injetou, o ter sido ali sempre tratado como lacaio, quando é suposto que tenha sabido que era filho de Fedor Karamazov. O ponto mais crítico do romance é quando o pai, Fedor, e o filho, Dmitri, disputam a mesma mulher, Gruchenka, que brinca com os sentimentos do velho, só para lhe extorquir dinheiro. Há momentos de grande violência e dramatismo, e uma profunda análise psicológica das personagens por todo o livro, mais concretamente no terceiro tomo, no tribunal, no julgamento de Dmitri. O poema o “Grande Inquisidor” tem elevado um significado simbólico que não dá aqui para desenvolver. O livro põe em equação muitas variáveis, não é um romance para entreter inteligências pouco adestradas e argutas. Tem fundamentos na História e na Filosofia, na Psicologia e na Sociologia, na Política e na Economia., na Educação, na Religião, parece uma epopeia da luta entre Deus e o Diabo, o Bem e o Mal. 


       Os Irmãos Karamazov é um livro extenso, nesta edição de três volumes com o total de 1121 páginas, que o autor ainda queria continuar, se a morte não lhe sobreviesse aos sessenta anos. Queria exprimir mais completamente, tal como na Divina Comédia de Dante, a cosmologia do seu tempo. Ele ainda desejaria dar mais um prolongamento explicativo da vida de Dmitri, vítima de um erro judicial, injustamente condenado, e redimi-lo porventura através dos padecimentos por que ia passar no cumprimento da pena de trabalhos forçados na Sibéria; queria descrever-nos em que águas foram parar as ideias socialistas de Ivan, a sua revolta contra Deus, que também tocaram Dostoiévski na juventude; relatar-nos no que deram os ideais religiosos e altruístas de Aliocha, talvez, pelas polémicas que se seguiram à publicação do livro, idealizar um «socialismo cristão», mas ele já fez o suficiente, não lhe peçamos mais. Dostoiévski tem um pouco dos três irmãos Karamazov: no início terá sido por vezes irrefletido; na juventude deixou-se influenciar ingenuamente pelas ideias socialistas, depois da sua prisão tornou-se cristão, embora não ortodoxo. Tal como o padre Zossima e Aliocha, ele não pretendia seguir uma região baseada na procura de provas da existência de Deus, mas através da imitação da vida de Cristo.

 É um romance abrangente, focando os mais diversos parâmetros da vida social. Questiona o conflito entre a razão e a fé. Ao descrever para nós a história da família Karamazov, e mais pormenorizadamente a vida dos três filhos de Fedor Karamazov, viúvo de duas mulheres, um pai negligente, que não sabia sequer de que mãe eram os seus três filhos (senão quatro), ele reconstrói a Rússia do seu tempo. O primeiro, Dmitri, o mais velho, representa a Rússia Antiga, ainda em estado bruto, é violento, desregrado, apaixonado e brutal, mas capaz de regenerar-se; o segundo, o do meio, Ivan, representa a Rússia Progressista, emergente, é crítico da política czarista, inteligente e manipulador, com ideias socialistas pouco consistentes e um ateísmo mal fundamentado, crises existenciais; o terceiro, Aliocha, o mais novo, representa a Rússia Ortodoxa, é religioso, generoso, noviço num convento, admirador do padre Zossima, preocupado com as classes mais humildes, que procura seguir a Bíblia. Apesar de não ter argumentos para combater as ideias revolucionárias e ateístas de Ivan, o seu modo de vida regrado e generoso triunfa sobre o dos seus irmãos, mais espertos e combativos. Nesta medida, Os Irmãos Karamazov é considerado um romance polifónico, dando a palavra a diferentes visões do mundo.

Neste romance mítico, mais do que a descrição das paisagens ou o aspeto físico das personagens, o autor explora o seu lado psicológico, dá forma à sua alma com um pormenor e profundidade como até ali ninguém o tinha feito. Aliás, como em quase toda a sua obra. É ler neste romance o terceiro tomo, para ver ali evidenciada toda a capacidade argumentativa do autor, ao dar voz ao procurador da justiça e ao defensor do réu, que se servem da Psicologia como arma de dois gumes. Se analisarmos um processo narrativo, a descrição de factos é a parte mais fácil de escrever, resume-se a uma redação jornalística, sem desprimor para os jornalistas, que têm nos jornais outra função, também meritória. É na interioridade, no mais profundo da alma humana que os escritores têm mais dificuldade em chegar.  Há vestígios do complexo de Édipo nos três irmãos. Sigmund Freud, pai da Psicologia moderna, que fez um estudo sobre o parricídio, disse que este teria sido para ele o melhor romance jamais escrito, e Friedrich Nietzsche, niilista arguto, com uma vida incrivelmente semelhante ao autor na desgraça, disse que Dostoiévski fora o único psicólogo com quem tinha algo a aprender, embora como se sabe, ele tenha sido apenas literato. É um romance volumoso, difícil de ler todo, por vezes irregular, mas fundamental, que acrescentou muito à literatura universal. 

Martz Inura

28 de novembro de 2020 

 

 



Nenhum comentário:

Postar um comentário