GUSTAVE FLAUBERT
Madame Bovary
Tradução de Daniel Augusto
Gonçalves
LIVRARIA CIVILIZAÇÃO EDITORES
O
HOMEM
Gustave Flaubert nasceu em 12 de
Dezembro de 1821, em Ruão. Filho de um cirurgião do Hospital de Ruão passa a
infância com os irmãos perto do hospital onde o pai trabalha. Estuda no Colégio
Real, onde chega a dirigir um semanário escolar e faz amigos para a vida inteira.
Aos quinze anos começa a escrever e apaixona-se por uma mulher casada, Elisa
Schlesinger, um amor assolapado que o acompanhou pela vida inteira e o inspirou
a escrever alguns dos seus livros, como Memórias
de um Louco, Novembro, e Educação Sentimental, glosando amores
impossíveis. Emocionalmente e intelectualmente foi muito precoce, os seus
escritos da juventude já davam uma ideia do escritor que iria ser. Para fazer a
vontade ao pai vai estudar direito em Paris, mas é um estudante desinteressado
e perdulário no dinheiro que o pai lhe envia. Reprova nos exames e entra em crise
emocional, tem alucinações e ataques epilépticos, que os médicos tentam tratar
com sangrias e dietas. Casa e descasa com Louise Collet, empreende uma viagem ao Egipto,
Jerusalém e Constantinopla e Itália. Mergulha por fim na literatura, a sua
vocação. Apesar de ter algum êxito literário nos últimos anos da sua vida foi assolado
por graves dificuldades financeiras, teve mesmo que vender as suas propriedades
para acudir à falência de uma sobrinha. Em 1866 o governo francês confere-lhe a
Legião de Honra. Com a ocupação prussiana teve que se refugiar em Ruão. Em 08
de Maio de 1880 morre em Canteleu, também na França, provavelmente acometido
por um AVC, tinha 58 anos e idade.
A
OBRA
A obra de Gustave Flaubert não é das
mais extensas, mas é muito importante no contexto da literatura ocidental por
introduzir o Realismo. Consta de romances, peças de teatro, contos, cartas e
obras diversas, de que se destacam: Paixão
e Virtude (1837), Memórias de um
Louco (1838), Novembro (1842), Madame Boavary (1857), aqui tratada, Salammbô (1862), um romance histórico que
fala de uma filha de Amílcar Barca, este romance foi iniciado em 1857 e
publicado em 1862, isto dá para ver o estudo demorado e o rigor que Flaubert
dava à pesquisa para escrever as suas obras. Cita-se ainda Educação Sentimental (1869), que trata do amor entre Frédéric
Moreau, que testemunhou a Revolução de 1848 (conducente ao 2º Império Francês),
e uma mulher mais velha, ironizando com o luxo da época e a moral da sociedade. Foi reconhecido pelos literatos do seu tempo. Émile Zola, Edmond de Goncourt, Alphonse Daudet, Théodore de Branville e Guy de Maupassant prestaram-lhe a sua homenagem
vindo a Ruão ao seu funeral.
O
ROMANCE Madame Bovary
PRINCIPAIS PERSONAGENS
Emma Bovary
Era uma mulher de tez branca, bonita
e sedutora. O pai meteu-a num convento aos treze anos, de onde saiu por falta
de vocação, recebendo uma educação esmerada. Lia muito, imbuindo-se de ideais
românticos. Tinha a mania das grandezas, e uma fogosidade que
ultrapassava a do seu marido. De tão estouvada descurava a educação da filha Berth.
Começou a desencantar-se com o casamento e a entediar-se do marido, acabando por
ter relacionamentos amorosos extra-conjugais com Léon e Rodolfo. Mas era tão
ninfomaníaca que até os amantes se cansavam dela. Para manter a vida de luxo
que levava afundou-se em dívidas e, pressionada pelos seus credores suicidou
com arsénico. As suas aspirações burguesas estavam para além das suas posses.
Charles Bovary
É um homem pacato, não muito
inteligente e sem grande imaginação, criado no meio de algumas facilidades. Depois
de o casamento com uma viúva rica, que faleceu, casando a seguir com Emma. Mas esta é um espírito
exigente, que ele não vê, limitando-se a contemplar a sua beleza física.
Dedica-se ao trabalho de medicina que exerce sem grande brio, demonstrando por
vezes alguma incompetência. Emma rapidamente se cansa dele, que é frouxo e sem
atractivos para o seu gosto romântico. Na gíria Charles era manso, ainda que segundo S. Mateus:
Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra. Mais do que estúpido era sobretudo
ingénuo. E temos de reconhecer que moralmente é das personagens mais sinceras e
até mais honestas do romance. Tratou com amor a esposa até ao fim, e já depois
de morta perdoou-lhe a infidelidade, pagando as suas dívidas e erguendo-lhe um
monumento funerário grandioso.
Léon Dupuis
Léo é um jovem amanuense que vai
futuramente cursar direito para Paris. É atraente, idealista, romântico como
Emma. Contudo, é muito jovem, a sua vida está ainda indefinida, não tem coragem
de se declarar a Emma, e quando se sente encurralado por ela resolve ir tirar o
curso para Paris, fugindo àquela embaraçosa situação. Três anos depois, tendo
terminado o curso, vem para Ruão fazer o estágio, chega mais maduro, capaz de
dar asas à sua fantasia, mas já não se sente tão impressionado com a sua beleza.
Emma nota o seu desinteresse e começa também ela a perder as ilusões de um amor
de conto de fadas, mas apesar de tudo continua a gostar dele, que é jovem, e
ela não tem mais ninguém a quem amar. Mais do que a paixão uma onda de volúpia mantém-nos juntos um do outro.
Rodolfo Boulanger
É um homem rico e de boa aparência, um
Casanova que gostava de mulheres de tez branca. Foi atraído por Emma fisicamente
logo à primeira vista, e ia fazer tudo para a conquistar. Contudo, tem os pés
assentes na terra, o seu amor é superficial, carnal, a mulher para ele é sobretudo
um passatempo. Possuidor de um temperamento frio e de uma inteligência sagaz
não estava disposto a sacrificar a estabilidade da sua vida a um amor
desmesurado, porventura louco. Calculista, afasta-se dela quando começa a notar
que aquela relação lhe pode ser prejudicial, enviando-lhe uma carta de
despedida num cesto de damascos.
Homais
É um farmacêutico trabalhador e
ambicioso, que tenta fazer medicina ilegalmente. O procurador do rei chegou a
interrogá-lo em Ruão. Procura dar-se bem com Charles, mas isto é só para o ter
na palma das mãos, e ele não o acusar de qualquer desvio profissional. É
descrente e anticlerical. Escreveu um livro ridículo: Da Sidra, do Seu Fabrico e dos Seus Efeitos. Quando do envenenamento
de Emma teve a presença de espírito para convidar os médicos Canivet e
Larivière para um lauto repasto, e assim os ter do lado dele. Com esta e outras
atitudes conseguiu fechar os olhos às autoridades perante qualquer ilegalidade
que praticasse, e, sendo bem relacionado como as pessoas, a opinião pública
protegia-o. Acabou por receber a Legião de Honra do governo francês.
Lheureux
É um mercador de tecidos, para quem
o dinheiro contava mais do que as pessoas, que, de modo subtil, melado, sabia lidar com elas até as ter presas na sua teia. É astuto no negócio e implacável para as suas
presas. Tem um comportamento frio e egoísta, próprio dos usurários. Foi ele que
com os seus empréstimos enganadores e as suas vendas exorbitantes levou à ruína
Madame Bovary. Numa última discussão que teve com ele mostrou-se mesmo nada
interessado pelo seu estado de desespero, o que lhe interessava era o dinheiro
que lhe deviam. E teve o descaramento de ir ao funeral dela se dar a ares de
grande tristeza, quando fora ele que a levara ao suicídio.
SINOPSE
Primeira Parte
Composta por nove capítulos em que
vai esboçar a questão do ser ou não ser.
O livro foi editado em 12 de Abril de 1857, embora já tivesse saído em La Revue de Paris no ano anterior
durante dois meses e meio. Charles Bovary foi criado à rédea solta e muito mimado.
O seu pai que foi cirurgião-mor num regimento por volta de 1812 viu-se obrigado
a sair da carreira. Conseguiu então, graças à sua figura casar com uma rapariga
de bom dote. Mas as coisas não correram bem e teve que se dedicar à indústria e
à agricultura, o que fez com pouco sucesso. Chegado à idade Charles foi para a escola, onde foi alvo da chacota por usar
um boné ridículo que lhe caiu da cabeça. Não era um aluno muito aplicado. Aos
doze anos principiou os estudos com o pároco com fracos resultado. Mais tarde
conseguiram matriculá-lo numa escola de saúde, onde se formou com dificuldade.
Vai exercer a sua actividade em Tostes. Precisava de uma mulher, e a mãe
arranjou-lhe uma, viúva de um meirinho de Dieppe, que tinha quarenta e cinco
anos. Estava sempre doente, tudo a incomodava. Tratava-se de Héloise, embora
feia, tinha mil e duzentas libras de rendimento.
Charles uma noite foi chamado a casa
dos Bertraux para tratar de uma perna ao senhor Rouault. A coisa correu-lhe
bem. Ele tinha uma bela filha, Emma e passou então a andar por lá, talvez
atraído pelos seus encantos. Sabendo do caso, Héloise obrigou-o a jurar nunca
mais lá ir. Aconteceu que a mãe, Sr.ª Dubuc, detentora de fundos, os perdeu num
negócio arriscado. Os pais de Charles indignaram-se com a situação e foram lá
tirar satisfações: sentiam-se enganados, aquele casamento desgraçou a vida do
filho. Héloise sofreu bastante com estes dissabores, oito dias expectorou
sangue e no dia seguinte morreu. Charles, com uma intenção velada, voltou a
visitar os Bertraux, mas era acanhado a tomar iniciativas, não se declarava à
filha. Como não se decidisse, o Sr. Rouault ofereceu-lhe Emma em casamento, que
pouco depois se consumou com uma grande boda. Ele era feliz, o trabalho
entretinha-o e a presença da mulher bastava-lhe, contudo ela, vinda de um
convento, onde denunciara não ter vocação, tinha da vida
uma visão romântica, lera muitos livros, sabia lavores, geografia, desenho,
dança e até tocar piano, queria provar da embriaguez da paixão. Aquele casamento
amorfo não coadunava com ela.
A vida ali em Tostes era, pois,
estúpida, entediada, Charles à volta do seu trabalho de médico e ela em casa
sem ocupação que a preenchesse, numa autêntica pasmaceira. Emma sentia-se desiludida com o casamento, que
cada vez a entediava mais. O matrimónio não lhe trouxera a felicidade que lera
nos romances românticos com um namoro apaixonado e um fim feliz. Um dia, um
facto extraordinário aconteceu, foi convidada a ir a Vaubyessard a casa do
marquês de Andervilliers, que habitava num castelo. Foi lá com o boc de Charles, muita finesse, depois houve um baile, ficou
embriagada com grandeza um tanto falsa, que ali viu, resplandecente.
Aquela ida a casa dos Andervilliers alterou
o comportamento de Emma, que foi tomada da mania das grandezas. O marido
afirmava-se na profissão, mas não tinha estofo para ela, faltava-lhe
inteligência e imaginação, e o seu relacionamento começou a esfriar, a
enfastiá-la. Chegaram a ter discussões. Andou assim uns tempos, elevando o luxo da casa, chegando a
aborrecer-se com a sogra que vivera sempre nalguma austeridade. Charles pensou
que o mal-estar da esposa se devia a algo estranho e levou-a a um antigo
professor de Ruão, e ele recomendou-lhe uma mudança de ares. Charles não queria
abandonar Tostes, onde já tinha uma clientela mais ou menos firmada, mas resolveu
levá-la para Yonville, uma pequena vila das proximidades, até que por fim Emma apareceu
grávida.
Segunda Parte
A segunda parte é a mais longa,
composta de quinze capítulos, e onde se vai analisar o adultério. O casal
Bovary vai a Yonville, uma pequena vila da Normandia a oito léguas de Ruão, a
casa do farmacêutico Homais, um homem que gosta de fazer medicina para além do
que lhe permitia a lei, e que queria dar-se bem com o médico, que o
podia acusar de estar a exercer medicina ilegal. Era movido pelas correntes
iluministas e anticlerical, movia-o interesse prático. Aparece por lá o sr.
Binet e o cura Bournisien. Durante a viagem Emma ainda teve um grande dissabor quando
a cadela lhe fugiu pelos campos. A
recepção faz-se na casa do farmacêutico Homais, encontram-se com o notário, Sr.
Guillaumin, e o amanuense de notário, Léon Depuis, com quem Emma conversou demoradamente,
verificando que tinham a mesma sensibilidade, o mesmo espírito de aventura,
inspirava-os o mesmo romantismo.
No dia seguinte na estalagem do Sr.
Binet, Léon e Emma avistam-se e endereçam cumprimentos. Homais para além de uma
criada tem o Justino, ajudante de farmácia a trabalhar para ele. Procura dar-se
bem com Charles, tratava-o com muitas gentilezas, pois já passava calafrios
quando fora chamado a Ruão, acusado de exercer medicina ilegal. Ao presidente
da Câmara, Sr. Touvache, não agradava este procedimentos. Emma estava nos
últimos dias de gravidez, queria um rapaz, mas num domingo deu à luz uma
menina, que foi entregue a uma ama. Estiveram por Ruão um mês e regressaram a Yonville.
Certo dia Emma, acometida pela saudade da filha, pede a Léon para a acompanhar
a Ruão a casa da Sr.ª Rollet. A mulher do presidente da câmara ao ver a coisa desabafou para a
criada que ela estava a comprometer-se. E ela não se eximia de andar na rua de
braço dado com ele.
Léon passou a frequentar a casa de
Charles Bovary com frequência, e os contactos com Emma aprofundaram-se. Jogavam
ali às cartas: Charles, Emma, o Léon e Homais. O amanuense vivia em casa deste
último e pretendia concluir direito. Certo dia viram no seu quarto um tapete
caríssimo, oferecido por Emma, e logo verificaram que ela era a amiguinha dele.
Mal dando por isso estavam a ficar apaixonados. Madame Bovary sob o peso das
suas tentações, passa a andar pela igreja, os dois sentem-se apaixonados mas
não têm coragem de se declarem um ao outro. Emma descuidou-se com a filha
Berthe que se magoou na face. A situação era embaraçosa, difícil, sofrem com
isso. Léon teve a noção que estava a mergulhar num abismo e evita comprometer-se
pedindo à mãe para ir estudar para Paris.
A partida de Léon foi sentida por
Emma como um desastre moral. A sua vida perdeu sentido, começou a
fazer compras descabidas, tentou aprender italiano, comprou dicionários, muito
papel branco. O marido, coitado,
chorou ao vê-la assim tão desgostosa. A mãe de Charles recomendou que a Emma
fosse proibida a leitura de romances, considerados livros maus contra a
religião, e assim foi resolvido. Um dia Rodolfo Boulanger, de la Huchette, veio
sangrar um criado a cada de Charles. Enquanto decorre o tratamento Emma e
Rodolfo trocam impressões. Há uma admiração recíproca. Ele tem 34 anos, está
cansado de Virgínia, que começava a engordar, e até gostava de mulheres de tez
branca! Havia de a conquistar, ainda que tivesse de sangrar-se a ele próprio, se
fosse preciso. Houve em Yvonville uma reunião de agricultores, os célebres
comícios. Binet que era chefe dos bombeiros também ali estava, bem o lojista
Lheureux. O conselheiro Lieuvain fez um discurso mais próximo do governo, e o
sr. Derozerays um discurso mais perto da religião e da agricultura. Os dois amantes
ficam em lugar recatado a ouvir os discursos, onde se podem expressar
livremente um ao outro.
Rodolfo esteve fora umas seis
semanas e um dia voltou. E ao encontrá-la disse que voltara por ela, não
demorando muitos minutos a declarar-se. Era um mulherengo e sabia como lidar
com mulheres. Emma sentiu-se envaidecida, nunca ninguém lhe tinha dito coisas
tão bonitas. Começaram a trocar cartas, que deixavam um ao outro num canto de
um jardim. A paixão cresceu rapidamente entre eles, e um dia ela começou a ir visitá-lo a
casa dele, até ao ponto de ser inconveniente. Emma passou a ter gosto à vida,
aconselhada por Rodolfo, pensou em andar a cavalo, que o marido corroborou, folgando
em a voltar vê-la feliz. Um dia fez com o amigo uma viagem a cavalo, e ele levou-a até uma lagoa
de nenúfares, onde ela se deixou cair sobre os seus braços. Nesse momento os tentáculos
da cabeça do marido devem ter subido. Quando chegou a Yvonville olhavam-na das
janelas. Repetiu para consigo; “Tenho uma amante”, com algum gosto, mas também
pesar.
Emma continuava a ir a casa de
Rodolfo, apesar de ele estar apreensivo com o evoluir daquela situação, sem
dúvida imprudente. Um dia, pelo caminho, deu com o sr. Binet, que andava à caça,
e deu-se conta que ele devia ter descoberto o que se passava. Encontrou-se com
ele depois na loja do boticário, que com os seus filhos Irma, Napoleão e
Athalie, e atendia os clientes. Ainda se enervou, mas ele não a iria denunciar,
não era parvo. Mal ela sabia que ele estava ali mais preocupado por estar a fazer caça ilegal do que por a ver. Rodolfo, vendo Emma tão obcecada por ele começou a recear que
aquilo se complicasse, ele tinha as suas responsabilidades, o interesse por ela era sobretudo carnal, já se consumara, aquele amor estava a enfadá-lo.
Homais convence Charles fazer uma
operação inovadora ao pé boto de Hipólito, empregado na hospedaria Leão de
Ouro, que seria um sucesso, mas aquilo correu mal e teve que vir o Dr. Canivet
amputar-lhe a coxa. Este desaire exasperou Emma, que como sentiu saldado o seu
pecado de adultério, (ele merecia bem os chifres que ela lhe pusera). A relação
entre os dois amantes continuou. Ela estava cada vez mais farta do marido
e o amante mais frio com ela, temeroso com evoluir daquela relação: achava-a imprudente,
mesmo louca. Mas para Emma estava tudo bem, assumiu-se com mulher infiel e nunca se sentiu
tão feliz. Aquele amor estava a aquecer demais, ela andava delirante, e vendo
que o seu amor não se podia consumar ali plenamente resolveram planear uma fuga
para a Itália. Ela própria encomendou uma capa e uma arca ao sr. Lheureux.
Rodolfo tratara das viagens, arranjara passaportes.
Rodolfo chegou um dia a casa e
pôs-se a pensar demoradamente debaixo de uma cabeça de veado empalhada, viu que aquela decisão era insensata e
resolveu escrever uma carta a Emma a acabar com tudo. Mandou um criado
levar-lhe a carta num cesto com damascos, ela viu o conteúdo e a ideia que lhe
veio foi a de se suicidar. O marido, que por portas travessas soubera do sucedido, talvez só em parte, disse que tão cedo não voltariam a ver o Sr.
Rodolfo, que estava de partida. Ela presente pouco depois que ele está a passar
pela rua e cai hirta no chão. Teve um desmaio: citam-se casos de quem desmaie
com o cheiro de corno queimado, sugere Flaubert ironicamente. Até o
boticário veio ali acudir. Ser ou não
ser, eis a questão, já dizia Shakespeare.
Charles começou a endividar-se.
Tinha dívidas de medicamentos a Homais, mas estas podiam saldar-se, os encargos
mais pesarosos eram com o lojista Lheureuz, a quem assinara letras e fizera
empréstimos exorbitantes. O padre Bournisien vinha vê-la e exortá-la à religião,
mas estava mais interessado em a ter como leiga do que em acudir ao seu
problema humano. Ficava às vezes a tomar ar no
meio do arvoredo (autêntica panóplia de chifres). Talvez para saber do que se passava. Era um padre um tanto farisaico. Emma sentia-se destruída
na sua vontade. Homais aconselhou Charles a levar Emma ao teatro de Ruão, onde
iria ouvir o temor Lagardy. Ela precisava de espairecer. Até o padre a encorajou: a música era menos
perigosa para a moral do que a literatura.
Vão ao teatro de Ruão, tratava-se de
uma peça sobre infidelidade, de cujo enredo Emma conhecia melhor do que o
enganado marido, e corrigira-o nas suas apreciações desinformadas. Ela, tocada pela
alegria do ambiente sente recuperar a alegria, e, por estranha coincidência
encontra Léon, que os vem cumprimentar. Tinham acabado os estudos em Paris, estava ali em estágio. Aborreceram-se lá dentro e vieram até cá fora
tomar gelados, Emma devia estar a arfar. Saíram antes do fim e a récita final segundo Léon era sublime. Porém a récita ia ser repetida no dia seguinte, e foi o próprio Charles que insistiu que ela podia
ficar e vir no domingo, e convidou mesmo Léon para que os visitasse brevemente. Ele
(ceguinho) não podia ficar, mas nada impedia que Emma ficasse.
Terceira Parte
A terceira parte tem onze capítulos,
evidencia o resultado do adultério. Emma andava desconsolada e infeliz, e uma
noite, numa récita em Ruão volta a encontrar-se com Léon. A sua paixão de há três anos como que renasce
das cinzas. Logo que se encontrou no dia
seguinte com Léon tentaram arranjar explicações para o seu desencontro, e demoraram tanto tempo a falar que se esqueceram de ir ver o
espectáculo. Combinaram um novo encontro na catedral. Ela demorou a chegar e
quando entrou deu-lhe uma carta e foi rezar na capela da Virgem. Ele não a quis
receber, saíram e ficaram à espera de um fiacre, que tardava. Quando o
cocheiro chegou e lhe perguntou o destino mandou-o seguir para onde quisesse.
Parou junto da estátua de Pierre Corneille,
(claro, da família dos cornudos), e ele mandou-o prosseguir, seguindo de
persianas caídas durante quatro horas. Só as baixaram adiante como borboletas
brancas, num campo de papoilas em flor.
Em Ruão Emma atrasou-se, acabou por
perder a diligência Andorinha e teve
que alugar um cabriolet para a alcançar. Andava desnorteada. Chegou a Yonville e pediram-lhe para
ir falar com Homais, que foi encarregado de a informar que lhe tinha morrido o
sogro. Chegou perto dela o lojista e usurário Lhereux que a felicitou pela
herança que ia receber. Emma falou a Charles das hipotecas de que era preciso
tratar. Este não gostou do notário Guillaumin, que tinha péssima reputação, e
escolheu para tratar do assunto Léon, a esforçada
mulher logo se prontificou a ir falar com ele a Ruão. Lá seguiu à procura da
procuração, passando três dias esplêndidos no Hotel de Bolonha com o amante, como se estivesse em
lua-de-mel.
Léon sentiu o seu ego engrandecido,
estava a triunfar no amor, e também inebriado passou a negligenciar os
processos. Recebia, lia e relia as cartas de Emma e sentia-se absorto, aquele
estado de paixão perturbava-o. Foi a Yonville e não resistir a ir a casa de Emma.
O marido recebeu-o com muita satisfação. Emma estava cheia de esperanças, ia
receber uma herança, comprou para o quarto um par de cortinas amarelas, o
mercador de tecidos, Lhereux ia tratar disso. Ela quis mesmo frequentar aulas
de piano, já que se sentia inadaptada de mãos, o Sr. Homais apoiou a ideia e o
marido resignado autorizou que ela
fosse uma vez por semana a Ruão receber as lições e ver o amante. Eram às quintas-feiras.
Ela não ia às aulas, passava o tempo com Léon. Certo dia o Sr. Lheureux deu com
ela de braço dado com o amante no Hotel
de Bolonha, e pouco depois apareceu-lhe a reclamar um rol de dívidas não
saldadas de 2000 francos. Ela não tinha com que pagar e ele convenceu-a a
vender por procuração uma propriedade que herdara. Emma assinou ingenuamente a
procuração, acabando por receber uma ninharia pela venda. Certo dia ela não
veio à noite e o marido atrelou o seu carro e foi buscá-la a Ruão. Charles
trouxe-a para casa, para onde veio também a mãe. As duas discutiram, Charles
defendeu a mulher e a mãe foi-se embora.
Aquela paixão obsessiva por Léon
começava a complicar-se. A própria mãe dele soube do caso e começou a
contrariar aquela relação, que não tinha pernas para andar. Emma esbanjava cada
vez mais dinheiro que não possuía, começou a penhorar os seus bens e a pedir
dinheiro a toda a gente. Certo dia chegou a casa e encontra um papel cinzento
com uma intimação do tribunal. Vai falar com o Sr. Leureux para que ele lhe valesse,
mas ele era uma pessoa insensível, só lhe interessava o dinheiro, não estava
nada preocupado com o desespero daquela mulher. Não demorou que o maitre
Hareng, o meirinho e duas testemunhas viessem a casa de Emma fazer um
arrolamento dos seus bens. Lá escreveu o seu relambório, mergulhando a pena no tinteiro de corno. Charles parecia
preocupado. Emma foi falar com Léon para lhe pedir 8000 francos, talvez os
possuísse dos seus processos, mas ele escusou-se a ajudá-la nesses termos. Foi
então a casa do notário Guillaumin para que lhe valesse naquela desgraça, e ele
tentou aproveitar-se da situação dela, fazendo-lhe propostas desonestas. Ela, num
assomo de dignidade, respondeu que era digna de lástima mas não estava à venda.
Passa por casa da tia Rollet, mas ela não tinha onde cair morta. Como último
recurso foi falar com Rodolfo, que sempre fora tão bom para ela e devia ter
recursos. Apanhou-o à lareira para mais uma cachimbada. Expôs a sua situação
ruinosa, pediu-lhe 3000 francos mas também ele não lhe acudiu. “Não os tenho” –
respondeu. Então sentindo-se cair no abismo, deserdada de amor foi a casa do
farmacêutico, o empregado Justino veio abrir-lhe a porta, foi ao laboratório e
de um frasco azul ingeriu uma boa dose de pó branco: era arsénico.
Quando Charles chegou a casa e viu
que a casa estava penhorada, gritou, chorou, desmaiou, mas Emma não regressava.
Esperou até às seis horas da tarde e tentou ir procurá-la a Ruão. Teve um
pressentimento de que ela não tinha ido para ali e quando regressou a casa ela já
lá estava. Viu-a escrever uma carta e ir-se deitar. A mulher começou a ter sede. Teve
náuseas. Às oito horas os vómitos reapareceram. Charles estava em choque. “O
que tomaste?” – perguntava. Verificou que se tinha envenenado com arsénico.
Mandou então chamar a Neufchâtel o Sr. Canivet e o Sr. Larivière. A filha
Berthe foi para casa do Sr. Homais. Os médicos lá vieram mas não conseguiram
valer-lhe, foram então refastelar-se a casa de Homais num lauto jantar,
enquanto ela, amparada pelo marido morria no leito conjugal. Sim, tinha sido um
bom marido, disse ela. Talvez demasiado bonzinho.
A criada Felicité chorava. Veio o padre Bournisien com um crucifixo que ela
beijou dar-lhe os últimos sacramentos. Charles estava de joelhos ao pé da cama.
O padre prosseguiu com as orações, ela ouviu-se cá fora uma canção, entrou em
convulsão e expirou.
Vendo-a morta Charles lançou-se
sobre o corpo da mulher a gritar. Homais e Canivet arrastaram-no para fora. Ele
exigiu que a enterrassem com o seu vestido de noiva e uma coroa, com três
caixões, um de carvalho, um de mogno e um de chumbo, que cobrissem tudo com um
pano verde. Veio o padre e ainda se indispôs a falar com Homais, descrente e
anticlerical. Toda a noite em velório. Ao vestirem a defunta com o vestido de
noiva ela num vómito repentino desprendeu um líquido negro. “Ah, meu Deus, o
vestido, tenham cuidado!” – exclamou a tia Lefrançois. Ela tinha que ir para o
céu, imaculada. Depois veio Felicité cortar uma madeixa de cabelo da defunta
para recordação do marido, que anuiu à ideia. Durante a noite comeram alguma
coisa. De manhã apareceram a mãe de Charles, o pai de Emma, os cangalheiros. O
Sr. Rouault tinha sido avisado com uma certa dúvida daquele desenlace, e quando
a viu morta perdeu os sentidos. Começam a soar os sinos. Vieram os três
chantres. Cantavam, ajoelhavam, voltavam a levantar-se: aquela série horrível
de procedimento para entorpecer os vivos. Seis gatos-pingados, três de cada lado
seguiam a urna, os padres, os chantres e dois meninos de coro escandiam o De Profundis. Mulheres cobertas de
mantos negros seguiam atrás com círios acesos. Todos deploravam a morte de Emma, até o
usurário Lheureux, que hipocritamente confessa: “Tão boa senhora! E dizer que
ainda no sábado passado a vi na minha loja”.
Charles mandou a filha Berthe para
casa da mãe. Os problemas de dinheiro não demoraram a aparecer. Eram dívidas e mais
dívidas a chegar, e ele sempre a saldá-las. Todos se aproveitavam da sua
miséria. Mademoiselle Lempereur reclamou seis meses de lições que não dera, o
livreiro reclamou três de assinaturas de livros, a tia Rollet reclamou o porte
de uma vintena de cartas. Pelo Pentecostes a criada Felicité, arrebatada por
Teodoro, fugiu com o guarda-roupa da sua senhora. E pouco depois Charles
recebia o convite da Srª. Depuis para participar no casamento de Léon Depuis,
seu filho, notário em Yvetor, com Léocadie Leboeuf (evidentemente, carne
bovina). Foi então que entre as felicitações que lhe dirigiu Charles escreveu: “Como
a minha pobre mulher teria ficado contente!”. Um dia ele descobriu entre as
coisas de Emma a carta de Rodolfo dizendo que não queria ser a causa da sua
desgraça. Verificou que estava assinada com um R, seria o de Rodolfo, também
ele tinha estado apaixonado por ela, todos tinham estado apaixonados por ela. E
ela ainda lhe pareceu mais bela!
Teve que hipotecar tudo. A mãe
concordou em valer-lhe com condições. Tratou do túmulo de Emma. Foi com Homais
a Ruão e por fim tirou de si mesmo o epitáfio a colocar: Sta viator amabilem conjugem calcus
(Páre viajante, debaixo dos seus pés jaz uma esposa muito amada). Deixou de
exercer a profissão, deixou de sair, começou a beber. Por fim vai vender o seu
cavalo, o último bem que ainda tinha, pertença de Emma, e encontrou Rodolfo,
com quem bebeu uma garrafa de cerveja num botequim. Já lhe tinha perdoado a culpa,
tinham sido vítimas da fatalidade. Certa tarde, a filha Berthe vem brincar com
ele, empurra-o brandamente, ele caiu e morreu. Quando tudo foi vendido restavam
75 cêntimos que serviram para pagar a viagem de Berthe para casa da avó. Mas também
ela pouco depois morria. O avô Rouault estava entrevado, e a menina foi entregue
a uma tia, que, sendo pobre, a mandou para uma fábrica de tecidos ganhar a vida.
O Sr. Homais não deixava aquecer o lugar aos médicos que enviavam para
Yonville, tinha uma clientela diabólica. Soube aproveitar-se a dalgumas coisas
boas que fez, escreveu Da Sidra, do Seu
Fabrico e dos Seus Efeitos, a autoridade fechava os olhos às suas
ilegalidades e a opinião pública protegia-o. Acabou por receber a Legião de
Honra, pois então.
UMA APRECIAÇÃO GERAL DO ROMANCE
Trata-se de um romance que mereceu
um estudo aturado por parte do seu criador, com um enredo bem delineado e as
personagens bem caracterizadas. Não é para admirar que Gustave Flaubert demorasse
cinco anos a escrever esta obra, que introduziu o Realismo na literatura. É a
sua criação mais famosa, em que ousou tratar do adultério, naquele tempo um tema
melindroso, que os escritores evitavam. Acabada de publicar na La Revue
de Paris por Laurent Pichat e Maxime Du Camp, em 1856, constituía
uma denúncia de alguns vícios da burguesia, da qual ele próprio se incluía. A
sociedade francesa saída da Revolução de 1848 era burguesa e conservadora, e
indignou-se com o seu teor, considerado indecente, imoral. Repare-se que quase
ao fim, o capítulo do fiacre foi censurada na revista, que não o publicou para
não sofrer represálias das autoridades.
Gustave Flaubert, através do seu
advogado, ainda teve que se defender na sexta Vara Correccional do Tribunal do
Sena, em Paris, em 7 de Fevereiro de 1857. Não só ele como o director da
revista. O procurador acusava esta obra de um atentado aos bons costumes e à
religião. Apesar de absolvido perdeu neste processo tempo precioso para
continuar a escrever. (Do mesmo mal sofreu Alexandre Herculano em Portugal,
quando entrou em polémica com a Igreja, por ignorar o “milagre de Ourique”). A
obra tornou-se famosa, objecto de muita curiosidade, e ao autor era pedido que
dissesse quem era a Madame Bovary, mas ele, que tinha nela muitas referências
autobiográficas, escrevera uma obra de ficção, não ia revelar todas as suas
fontes e não queria dar argumentos aos seus acusadores para o atacarem, e
respondia: “A Madame Bovary sou eu”. De facto, todas as obras literárias têm
muito do seu autor, embora umas mais do que outras.
Apesar de estarmos em França, em
1857 ainda se tinha de lutar ali pela liberdade de expressão. Desde o
Renascimento que a civilização progredia a ritmo acelerado, recuperando os clássicos e difundido
a cultura, com o Iluminismo valorizou-se a ciência em detrimento da fé, a
técnica evoluiu e surgiu a Revolução Industrial. O conhecimento progrediu, tornou-se mais prático, e o
saber passou a ser mais prestigiado. Augusto Comte fala de positivismo, de mais
racionalidade, de um maior rigor na observação das coisas. Um tal processo iria
ter influências nas visões do mundo, o Romantismo soçobrou ao Realismo, e na
literatura, isto foi feito sobretudo pela mão de Gustave Flaubert. Este livro não é um ataque à
religião, uma ofensa à mulher, é o retrato de uma burguesia provinciana e
moralista, quando muito será um ataque às mentes arcaicas da época.
A visão levemente pessimista que
tinha da sociedade aguçou o seu sentido crítico e fez dele um moralista. Para o
leitor actual, habituado a livros com muita acção, evitando tempos mortos,
concentrando a realidade num thriller
emocionante, este livro pode parecer às vezes parado, mas ele apenas segue o
ritmo da vida, está sem grandes artificialismos. Para escrever esta obra, para além de uma
boa análise dos costumes da sua época, de ter recorrido à sua biografia
pessoal, o autor teve que estudar muito de medicina, de farmácia, de direito,
de história e religião. As suas análises são profundas e documentadas. O
adultério está muito bem tratado, não só no que concerne à amante, como no que
concerne aos amantes, e aqui e ali com alguma ironia. Há um macho alfa, um
macho beta, a ninfa. O amor, a paixão e a traição estão ali bem torneados. O
envenenamento e a morte de Madame Bovary (Emma) é uma narrativa com uma grande
exactidão, elevado poder de observação, atenta aos mais pequenos detalhes, é, em
suma, comovente, real.
Neste romance, reportado à primeira
metade do século XIX, podemos analisar a vida numa cidade francesa de província,
com uma pequena burguesia muito voltada para o luxo, para a ostentação, querendo
viver acima das suas posses, fazendo prevalecer o egoísmo sobre o altruísmo, as
aparências sobre a realidade, interesseira em parte, e hipócrita. O autor fala
da dissolução dos costumes, da crise moral que se atravessa, do materialismo e
consumismo reinantes. A religiosidade mantém como sentimento predominante, mas
já é posta em causa, chegando o autor à constatação de que os “espertos”, e por
vezes descrentes, é que estavam a triunfar, ainda que nem sempre usassem dos
processos legais ou moralmente respeitáveis. Madame Bovary é um romance a reler com vagar, pela penetrante análise
psicológica que faz às suas personagens, pelo retrato fiel que faz da sociedade
da sua época, pela seu forte poder expressivo e inovação literária que
representa, é uma obra fundamental a ter na nossa biblioteca.
30/3/2016
Martz Inura
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