FRANZ KAFKA I






FRANZ KAFKA
Metamorfose
Romance
Tradução de Breno Silveira
Livros do Brasil - Lisboa

O HOMEM
     Franz Kafka nasceu em 3 de Julho de 1883, no seio de uma família judaica, na cidade de Praga, República Checa, então sob o domínio do império Austro-húngaro. Está no vértice de três culturas: a checa, a alemã e a judaica. Filho mais velho de uma frateria de seis irmãos, mantinha uma relação difícil com o pai, e até com as irmãs, com quem teve desavenças. Numa longa carta que escreveu ao pai, que não chegou a entregar e a mãe guardou, ele nos dá conta desse relacionamento traumatizante, que veio a moldar o seu carácter. Embora até certo ponto o admirasse, criticava-o, por, com o seu autoritarismo lhe amesquinhar a personalidade. A escrita constituía para si um refúgio. Tirou o curso de Direito, embora preferisse Filosofia, e sentisse algumas dificuldades nos estudos. Era uma pessoa reservada e insegura, revelando algumas dificuldades de integração social e muitas frustrações. Foi agente de seguros numa companhia privada. Sempre envolto em dúvidas, hesitações e receios, não chegou a casar. Morreu de tuberculose em 3 de Junho de 1924, com apenas 40 anos de idade, num sanatório nos Alpes.

A OBRA
     Embora seja um dos escritores com mais influência na literatura do século XX, a ponto de a partir do seu nome se inventar mais adjectivo para os dicionários do mundo (kafkiano), a sua obra nem por isso é muito extensa. Resume-se a Metamorfose (1915) aqui tratada, a cartas, a uma colectânea de contos e aos romances: A América (incompleto), O Processo (1925) e O Castelo (1926). Em quase todos eles estão recriados universos de pessoas com grande dificuldade de comunicação. Apesar da sua curta vida ele tinha uma noção profunda da condição humana, evidente em muitas reflexões ao longo da sua obra. O tempo é o nosso capital. Perder tempo é perder a vida. O seu mister de agente de seguros, que exercia sem grande entusiasmo, e a que chegava bastante cansado, depois de passar as noites à volta dos seus escritos, deve estar no cerne desta pensamento. E o mesmo se dirá do seguinte: Todos os erros humanos resultam da impaciência: são a interrupção prematura de um trabalho metódico. Ele percebia bem a persistência esclarecida para se ultrapassarem as dificuldades. Apesar de ter nascido numa família de posses, a sua vida nunca foi fácil, e terminou daquela maneira infausta. Se estou condenado à morte, não estou apenas condenado a morrer, mas obrigado a defender-me até à morte, disse certa vez. Esta maneira de pensar, esta sua revolta, tiveram mais tarde influência em Camus. Não teve êxito em vida com as suas obras. Vendo a sua pouca aceitação, pediu mesmo ao seu amigo, Max Brod, em 1922, que as destruísse após a sua morte.  

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O ROMANCE Metamorfose
     A Metamorfose é um livrinho que se se lê de uma assentada. Trata-se de uma simples novela. Conta a história de um tal Gregor Samsa, que ao despertar certa manhã de um sonho agitado, viu que se transformara durante o sono numa espécie monstruosa de insecto. Narra todo o drama deste homem que, atingido por esta infelicidade, a vai enfrentar de forma empenhada até ao seu último dia de vida. Apesar de incompreendido e rejeitado - ele é um ser repugnante -, vai deambular por um mundo adverso e obtuso, onde a lógica está cheia de conexões interrompidas, acabando por se refugiar numa infinita solidão.
     Não são muitas as suas personagens. Existe a mãe, pessoa sensível, mas pouco influente na sua vida familiar. Desmaia ao ver o estado horroroso do filho, mas é incapaz de fazer algo por ele. Outra personagem importante é o pai, senhor austero e autoritário, que trata o filho com severidade, senão mesmo desumanidade. Outra é a irmã, inicialmente quem lhe dedica alguns cuidados, mais que pouco depois se farta dele, quando começa a trabalhar numa loja. Existe também a figura do patrão, explorador e mesquinho, que não quer perder pitada dos seu trabalho, aqui representado pelo gerente. Vagueiam por ali também a criada, que tem horror da situação e mais tarde é despedida; a mulher-a-dias, pessoa idosa e fria; e três hóspedes, um tanto distantes daquele drama.
     A novela está dividida em três partes. Na primeira é apresentado o problema: Gregor Samsa sofre uma metamorfose, está a transformar-se num insecto, quer levantar-se mas mal se pode mexer, os seus pés estão a transformar-se em perninhas. O despertador toca, a mãe alerta-o para que tem de se levantar para apanhar o comboio, mas ele não consegue fazer, e arreliadoramente a porta do quarto está fechada por dentro. Entretanto chega o gerente da fábrica, admirado com aquele seu atraso ao trabalho de caixeiro-viajante, tanto mais que fora um empregado exemplar nos últimos anos. Gregor tem dificuldade em explicar-se, já que a sua voz roufenha se está a desvanecer, e embora tenha intenção de ir trabalhar, está a custar-lhe abrir a porta. É então que de lá de fora leva uma reprimenda do gerente que chegara. Dado continuar fechado no quarto, para a mãe é notório que deve estar doente e chama o médico, enquanto o pai manda vir o serralheiro para abrir a porta. Por fim ele lá a conseguiu abrir, recorrendo à boca. O pai e o gerente podem então apreciar o seu aspecto repugnante. A mãe vê aquilo em que se transformou e desmaia. Gregor ao sentir-se rejeitado tenta regressar ao quarto, mas fica entalado na porta, dado o seu tamanho disforme. É o pai com a bengala que lhe dá uma estocada tremenda e o força a entrar.
     Na segunda parte ele começa a tomar consciência da sua situação miserável. Os pais durante quinze dias nem sequer o foram ver, e, privados da sua ajuda, têm que encontrar outros meios de subsistência: o pai arranja um emprego  como subalterno num banco, a mãe faz trabalho de costura, a irmã emprega-se como balconista. Ainda é a irmã que lhe vai valendo na sua alimentação, agora à base de frutos podres, e no asseio do aposento. Começa a vaguear pelo quarto, explorando a sua nova condição. É então que se dá conta de como a família dependia de si e ele tinha uma vida quase parasitária. Vai até à janela, chega a subir pelas paredes e a andar pelo tecto. A irmã verifica que ele se recreia no quarto, e para lhe facilitar a vida vai com a mãe tirar dali os móveis, permitindo que circule mais à vontade. Ele encontra-se por lá escondido, mas acidentalmente é visto pela mãe, que  mais uma vez desmaia. Há um grande burburinho na sala. Gregor na sua boa fé vai tentar ajudar a mãe, mas está limitado fisicamente. Vem o pai, que fica furioso com a sua presença repugnante, e o expulsa em direcção ao quarto, bombardeando-o com maças vermelhas, a segunda das quais lhe causa um ferimento. É a mãe que vem suplicar para que lhe poupem a vida.
     Na terceira parte ele volta a confrontar-se com a realidade, agora ainda mais fragilizado. A irmã põe-se a tocar violino, que ele aprecia, pondo a si mesmo a questão de ainda continuar a ser humano. Entra na sala levado por este entusiasmo, mas é visto pelos hóspedes, que perante a sua presença inadmissível ameaçam abandonar os quartos que tinham alugado. A irmã, agora a trabalhar, negligencia-o, já está cansada dele. Tem mesmo este desabafo, que define o seu destino: Meus queridos pais, as coisas não podem continuar assim. Embora aqui ninguém pareça compreender, eu vejo tudo claramente. Não me referirei ao nome do meu irmão, ao falar desse monstro que para aí está; o que quero, é dizer simplesmente que precisamos de descobrir um meio de nos livrarmos dele. O quarto é agora utilizado como arrecadação, como se ele passasse a ser também um traste velho. Com uma ferida grave, mal alimentado e negligenciado, um certo dia aparece morto. É a mulher-a-dias que no meio de risos lhes dá a notícia por que há muito suspiram: Bem, já não precisam de se preocupar em se verem livres daquilo. Eu já resolvi tudo. O pai dá então graças a Deus. A família recupera, enfim, a sua estabilidade emocional, ao libertar-se daquele encargo, organiza mesmo um passeio ao campo. Os pais olham então orgulhosos para a sua jovem filha casadoira, revendo-se felizes nos seu futuro promissor.

MORAL
     A história, embora fora do domínio racional, na esfera do fantástico, algo do que exprime leva a que acreditemos na sua coerência. Ela retrata-nos, na sua visão mais dura e crua, a importância o factor económico nas relações humanas, mesmo no seio da família. Gregor era considerado e estimado por todos, quando trabalhava e era o sustento daquela casa, mas passa a ser ignorado, desprezado e até maltratado, quando se tornou um encargo para a família. Por outro lado, dela se deduz que na vida há soluções para tudo: não há bem que não acaba, nem mal que sempre dure.
     E aquilo que o autor mais no fundo no pretende explicar continua a ter actualidade. É ver como são tratados os nossos doentes, e sobretudo os nossos velhos, quando perdem as suas qualidades de trabalho e passam a ser um encargo para a família, transformando-se na prática em autênticos parasitas, asquerosos insectos, e como tal tratados. Normalmente acabam por ser insuficientemente alimentados, ignorados nos seus cuidados de higiene, pouco medicados e muitas vezes maltratados, estando todos à espera que moram para que se libertem do seu encargo e herdem o que há a herdar. E é o que acontece mais cedo ou mais tarde.

IMPORTÂNCIA DO LIVRO
     Trata-se de um livro pouco volumoso, de enredo simples, diria que despretensioso, narrando uma história inverosímil. As personagens são caracterizadas com uma grande economia de palavras, sobretudo quanto ao seu aspecto físico, e tudo ali é pouco explicado, embora o seja com suficiente clareza para se perceber o que é fundamental, e o autor utilize uma linguagem fria, uma distanciação dos acontecimentos quase científica. Claro, já muita gente disse para aí que Kafka não é um artífice da linguagem. O romance é pouco elaborado e tem um desfecho abrupto, como ele próprio reconheceu. Não se pode dizer que esteja extraordinariamente bem escrito: usa uma linguagem abstrata, com poucos pormenores e alguns hiatos. Mas então o que faz com que esta obra seja tão influente na literatura mundial?!
     Bem, o grande mérito desta obra está na originalidade da abordagem do tema, em que ele trata o que é fantástico com o realismo de quem esteja a falar da coisa mais natural do mundo. O autor esquematiza a alienação, a perseguição, a incompreensão de forma meticulosa, com um rigor quase clínico e uma mestria tal, que mesmo tratando-se de factos completamente impossíveis, o leitor os encara com o seu quê de verosímil, de verdadeiro. Há neste livro um tecido interpretativo difícil de esgotar, uma repulsa gritante a provocar-nos, uma crítica social feroz que nos obriga à reflexão. Usa um estilo metafórico, intrigante, surrealista (pos-surrealista), que ao mesmo tempo nos parece levar para além da realidade, conferindo a esta um sentido mágico. É este recurso do autor que vai dar relevância à sua obra, fazendo com que seja original e modelar. Ele abriu mais uma janela para a Literatura, que não mais seria a mesma. A sua influência impera até aos nossos dias.


Martz Inura
6.7.2012



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