DANTE
ALIGHIERI
A Divina
Comédia
Extraordinária
tradução de Vasco Graça Moura
Edição
bilingue de 894 páginas
QUETZAL
EDITORES (2011)
O HOMEM
Dante
Alighieri nasceu
em Florença entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, e faleceu em Ravena a 13 ou
14 de setembro de 1321. Foi escritor, poeta, filósofo e político do
Renascimento Italiano, num período em que a língua culta era o Latim. Ainda na
Idade Média, ele começou a escurecer em italiano (toscano), movido por ideias
novas, mais próximo do povo. A Divina Comédia, inicialmente chamava-se Comédia,
não que fosse para fazer rir, mas porque terminava bem – no Paraíso. Mais tarde
foi rebatizada “Divina” por Boccaccio, começando a ser publicada com
esta designação a partir de 1555. Com esta magna obra, de grande primor
literário e beleza estética, Dante vai tentar fazer uma nova geografia moral da Terra
e dos Céus, não abandonando completamente os deuses antigos, introduz nela uma nova
Teologia, fazendo avançar o pensamento, empurrando o homem para uma nova
maneira de ver o mundo. Tratava-se uma epopeia.
Dante,
que é um diminutivo de Durante, nasceu no seio de uma família prestigiada de
Florença, na altura, uma cidade muito dividida politicamente. Nela predominavam
os gibelinos e os guelfos. E estes últimos ainda se dividiam em brancos e
negros. Cedo ficou órfão de mãe, e o pai, que pertencia à fração dos «guelfos
brancos», levou naturalmente a que ele entrasse nas suas fileiras e se visse
envolvido em guerras, de que resultou o seu exílio, perdendo-o também aos 18
anos de idade. Como era costume naquele, tempo a família arranjou-lhe um
casamento ainda jovem com Gemma Donati, de quem teve três filhos. Ainda não foi
fixado a sua formação, mas é natural que passasse pelo Trivium e quadrivium
medievais. Sabe-se que por volta de 1285 frequentou a Universidade de Florença.
É incontestável os seus conhecimentos de Latim, Literatura, História, Filosofia,
Mitologia, Religião, e até Música e Pintura. Chegou a exercer não oficialmente as profissões de farmacêutico e médico. É evidente a sua afeição pelos
escritores latinos como Virgílio, Boécio, Cícero, entre outros, e o interesse
que mantinha com as teorias teológicas do seu tempo.
Nos
primeiros anos da sua maturidade participou ativamente na vida da sua cidade, interveio
em batalhas, chegando a chefiar uma delegação florentino para ir sondar as
intenções do Papa Bonifácio VIII quanto a Florença. De 1295 a 1300 fez parte
dos homens bons da cidade, o «Conselho dos Cem». Mas só arranjou problemas com
a sua intervenção. Os «Guelfos Negros» acabaram por tomar o poder e ele teve de
fugir e exilar-se em Verona, onde foi recebido por Bartolomeo della Scalla,
depois retirou-se para Sarzana, e a seguir para Lucca, onde foi hospede de Madame
Gentucca. Envolveu-se algumas vezes em recuperar o poder para os «Delfos
Brancos» sem sucesso. Em 1318 aceita o convite para hospedar-se em casa de
Guido Polenta, em Ravena, onde permaneceu até morte, em 1318, aos 56 anos,
depois de ter contraído a malária. Morreu acarinhado, mas triste, envelhecido para a sua idade, como é visível na sua máscara funerária. Já em vida
lhe era reconhecido o seu valor literário. Mais tarde, com ele já morto,
Florença reconheceu o seu erro e comutou-lhe as penas, mas nem depois deste
reconhecimento o deixaram regressar à sua cidade, que lhe erigiu um sepulcro
monumental, ainda vazio. Os seus restos mortais continuam em Ravena, na atual
Igreja de S. Francisco.
A OBRA
Para além de
epístolas e éclogas, de interesse para os estudiosos, embora ainda não estejam todas
datadas, escreveu:
A Divina Comédia: a sua obra-prima, na Língua
Toscana (1313, 1318, 1321)
De vulgari
eloquentia: Sobre
a Língua Vulgar, curiosamente escrita em Latim
Vita Nuova: Em Toscano. Sonetos e outros
poemas
Le
Rime: Poemas,
sonetos, canções daquele tempo, em que glosa o amor de Beatriz e temas da
natureza, e de caráter moral e filosófico.
Il
Convivio: um
banquete em que são servidos 14 pratos, entre os quais se comenta a Filosofia.
De
Monarchia: Um
livro em que trata de assuntos políticos, defendendo a supremacia do poder
temporal sobre o papal.
O
LIVRO: A Divina Comédia
UMA RECOMENDAÇÃO
Este
livro deve ser lido com o apoio de algum estudo de História Antiga, ter um
mínimo de conhecimentos da mitologia clássica e da religião católica. No rodapé desta
edição estão insertas indicações que poderão dar uma boa ajuda. Deve ser lido
com ênfase, isto é, como sendo um poema, não como quem lê um romance, porque
perderá parte da sua chama.
PRINCIPAIS
PERSONAGENS
O
livro está cheio de personagens, que vão aparecendo fugazmente à medida que
Dante faz o seu caminho em direção ao Criador. São tiradas a mitologia
greco-romana, sobretudo da Eneida, da História Universal e do seu tempo.
Porém, as personagens mais intervenientes são três:
Dante
(Dante Alighieri, 1265-1321),
o narrador, que representa o homem, na sua busca pela superação. Ele escreve
este livro para maior glória de Deus, e as suas páginas descrevem o caminho que
leva até Ele.
Virgílio
(Públio Virgílio
Maro, 70 – 19 a. C.), o grande poeta latino, autor da Eneida, por quem o
autor nutria grande admiração, que o vai guiar no Inferno e no Purgatório, mas,
não no Paraíso, onde não pode entrar, por ser pagão. É o símbolo da razão.
Beatriz
(Beatriz di Folco Portinari,
1266-1290), o amor platónico do autor por uma jovem que conheceu aos 6 anos e
depois aos 18, que morreu jovem, e vai ser a sua musa inspiradora. Ele, que não
pôde casar com ela em vida, vai encontrá-la no Céu, ela representa a Fé.
BREVE RESUMO DO
LIVRO
Inferno
O
Inferno, segundo a crença medieval, situava-se nas entranhas da Terra. Era um
lugar tomado pela treva, pelo sofrimento e pela angústia. Dante vai percorrer os
seus nove círculos concêntricos, entrando pelo das penas de menor gravidade, o
Limbo, dos pagãos que tiveram uma vida digna, descendo até aos de maior
gravidade, o Cocite dos traidores. Perdeu-se numa floresta, mas Virgílio, a mando de Beatriz veio guiá-lo. À entrada desmaiou, mas, ajudado pelo seu guia
prossegue a sua viagem por aquele abominável mundo. Ali, vai encontrar figuras
mitológicas, os pagãos antigos, mas também os humanos mais recentes que se distinguiram
pela sua iniquidade e malvadez, que incluiu escritores, filósofos, e até Papas.
O ambiente é de sofrimento e angústia. Para exemplo fique que ele no último
círculo encontra Lúcifer, que devora três dos maiores traidores da História:
Judas, Brutos e Cassius. Para ele o Primeiro Círculo é o Limbo dos
virtuosos pagãos; O Segundo Círculo, o Vale dos Ventos da Luxúria; O
Terceiro Círculo é o Lago da Lama, a gula; o Quarto Círculo é o das Colinas
da Rocha, a ganância; O Quinto Círculo é o Rio Estige, da ira; o
Sexto Círculo é o Cemitério de Fogo dos hereges; o Sétimo Círculo é o Vale
do Flageonte, da violência; o Oitavo Círculo é o Malebolfe da
fraude; o Nono Círculo, o mais profundo e cruciante é o Lago Cocite da
traição. Em conformidade com a gravidade dos seus crimes, assim estão a ser
castigados os pecadores.
Representação gráfica escolar do Inferno de Samara Brito, simples, mas
elucidativa. Note-se que acima do Limbo está a superfície da Terra, e o Cocite
fica nas suas profundezas.
Uma ampliação do Inferno do pintor italiano Sandro Botiicelli (1445-1510), dos primeiros a ilustrar a Divina Comédia. O Inferno é um cone invertido enterrado na crosta terrestre. À medida que se desce mais próximo se está do Diabo e dos maiores tormentos.
Excerto
com o propósito de escrever a Divina Comédia, à entrada do Inferno
Canto I (excerto)
No
meio do caminho em nossa vida,
eu
me encontrei por uma selva escura
porque
a direita via era perdida.
Ah,
só dizer o que era é cousa dura
que
de temor renova à mente a agrura!
Tão
amarga é, que pouco mais é morte;
mas,
por tratar no bem que nela achei,
direi
mais cousas vistas de tal sorte.
Purgatório
O
Purgatório era considerado um lugar intermédio entre o Inferno e o Céu, onde os
seres humanos mediante um longo período de sofrimento e meditação chegariam ao
arrependimento e à salvação. O Purgatório medieval era antecedido pelo
Ante-purgatório, para aqueles que se arrependeram à última hora, e precedido
pelo Paraíso Terreal de Adão e Eva. Compunha-se de sete círculos,
correspondentes aos pecados capitais, ainda hoje estudados na religião católica,
que então tinham esta ordem: Orgulho, Inveja, Ira, que
ficariam no Baixo Purgatório, daqueles que perverteram o amor. Seguiam-se a Preguiça
e a Avareza, o Médio Purgatório, daqueles que não conseguiram amar. Mais
acima ficava a Gula e a Luxúria, o Alto Purgatório, daqueles que
amaram em excesso. A cada pecado corresponderia diferente pena, exigida pela
purificação das suas almas, seguindo uma concepção de justiça que constitui uma
síntese neste aspeto do pensamento religioso medieval. Esta Segunda Parte, a
mais lírica do livro, contém já muitas referências de natureza filosófica e
teológica, revelações místicas e proféticas, daí que seja o local de expiação onde
foram parar muitos poetas e pensadores. O seu percurso faz-se no sentido
ascendente, dos mais pecadores para os menos pecadores, já na eminência de
ficarem santos, em direção do Paraíso.
Esta
gravura italiana antiga retrata bem a dinâmica do Purgatório, e o
esforço que é preciso fazer para se atingir o Paraíso. Pode-se ver aqui os
diversos terraços que se tem de subir. Em baixo está a porta do Purgatório,
segue-se a SOBERBA, a INVEJA, a IRA, a PREGUIÇA, a AVAREZA, a GULA e LUXÚRIA.
Em cima, arborizado está o Paraíso Terrestre.
Buscando
melhores águas no Purgatório
Canto I (excerto)
Buscando melhores águas iça as
velas
a navicela deste meu engenho
que deixa atrás de si cruéis
procelas;
e do segundo reino cantar venho
em que a alma humana purga e se
habilite
por digna de ir ao céu no seu empenho.
A morta poesia ressuscite,
Ó santas Musas, sendo eu vosso, e
então,
já surgindo Calíope, palpite
aquele som seguindo-me a canção,
que fez as pegas míseras sentir o
golpe a desesperá-las do perdão.
Paraíso
Chegámos por fim à Terceira Parte,
ao Paraíso, e Dante aqui faz substituir Virgílio, que era pagão e não podia
entrar no Céu, por Beatriz, que fora a paixão da sua vida e a sua musa
inspiradora. Tendo morrido ainda jovem, já estava ali e iria ser a sua guia,
mas, como mortal ele não se poderia aproximar muito dela. A sua viagem
espiritual vai ser assim, um pouco solitária, e servir para refletir sobre si
próprio e sobre o mundo. Ela termina quando ele se encontra com Deus. O Paraíso
está dividido em nove esferas e o empírio. As esferas aqui também são
concêntricas, e a narrativa segue do interior para o exterior. São: Lua,
onde se acolhem as almas que não foram virtuosas o suficiente, como Beatriz; Mercúrio,
das almas que controlaram os seus desejos, mas não foram suficientemente boas
quanto à virtude e a justiça; segue-se Vénus, das almas bondosas que não
foram muito longe na temperança, como Carlos Martel; Sol é a quarta
esfera, que inclui as alma dos sábios como S. Tomás de Aquino, S. Boaventura e
S. Domingos; Marte é a quinta esfera, em forma de cruz, daqueles que
fora, corajosos nas suas virtudes cristãs, como Josué, Carlos Magno e Godofredo
de Bulhão; Júpiter vem a seguir, com as almas que foram assinaladas com
a Águia Imperial, que difundem em Latim a importância da justiça; Saturno
é a sétima esfera, mais próxima de Deus, povoada de contemplativos e místicos;
a oitava esfera é a das Estrela Fixas, onde Dante tem uma visão de
Cristo e da Virgem Maria, da fé mais subida em Deus; por último vem a Primum
Mobile, a primeira esfera a ser movida, que é a que alimenta de energia
todas as outras. Nesta partilha de lugares nos céus, é curioso só vermos
referido um Papa, João XXI, por sinal português, conhecido por Pedro Hispano (XII
Canto, p. 701). Para além destas nove esferas, de natureza material, havia o empírio,
de essência espiritual, que transcendia tudo o que existe.
Nesta gravura inglesa antiga estão bem referenciados os céus da Lua,
Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno,
Estrelas Fixas e Primum Mobile. Consegue-se ainda ver a ligação
com o Purgatório e a comunicação com Deus.
Subida
ao Paraíso
Canto I (excerto)
A glória do alto ser que tudo move
pelo universo a penetrar resplende
mais numas partes e menos noutras
chove.
No céu que mais lhe toma a luz que
acende
eu fui e coisas vi que repetir
não sabe ou pode quem de lá
descende,
pois perto a seu desejo indo a
subir,
nosso intelecto se aprofunda tanto,
que atrás dele a memória não pode
ir.
COMENTÁRIO GERAL
A
Divina Comédia, mais
lá no fundo é a história de um homem à procura de Deus, que nesse seu
peregrinar vê a necessidade de levar uma vida mais regrada, seguindo o bem e
não o mal. Dante Alighieri, nascido num mundo conturbado, não teve uma vida
fácil. Órfão de mãe desde tenra idade, envolveu-se ainda jovem nas lutas do
pai, que morreu quando tinha 18 anos, e de que saiu perdedor, sofrendo todos os agrores da guerra. Foi perseguido e injustiçado,
sendo vítima de iníquas condenações. Sofreu desgostos de amor. Teve de se
separar da família e exilar-se, vivendo longe dos seus, por vezes à custa da
generosidade de amigos e amigas. Pôde refletir sobre o sentido da vida. Esta sua obra, indo buscar inspiração à Eneida
de Virgílio, é em boa parte uma obra de cariz autobiográfico. Refugiado nela, Dante foi buscar muita da sua serenidade. Ele demorou à volta
de quatorze anos a escrevê-la para lhe dar aquele seu tom grandiloquente de
epopeia, aprimorar-lhe a riqueza verbal e veemência por vezes sublime, fazendo uma síntese do
conhecimento teológico, filosófico e científico da Idade Média.
A
narrativa está na primeira pessoa. Dante, o protagonista desta epopeia, representa
o homem, e vai ser acompanhado no Inferno e no Purgatório por Virgílio, escritor
da antiguidade já mestrado nestas sagas, e símbolo da razão humana. No Paraíso será
guiado pela sua amada Beatriz, símbolo da fé, que o antecedeu na sua partida
para o Além, e foi por Deus agraciada. Usando destes recursos ele consegue
fazer a ligação entre este e o outro mundo, entre o mundo antigo e o mundo
moderno, naquela altura medieval. Pelos seus meandros vai fazendo uma descrição
da História florentina, impregnando-a de Teologia, Filosofia, a que
mistura a mitologia greco-romana, aproveitando para criticar alguns aspetos
mais arcaicos daquela sociedade, ávida de poder e riqueza, que não olhava a
meios para atingir os fins, dando da vida uma visão mais avançada. Os versos,
decassílabos, estão encadeados em tercetos, em rimas alternadas de (ABA BCB
CDC). Está escrita sob o signo do número 3 ou seus múltiplos: há a Santíssima Trindade, as três esferas ou três reinos, as três feras. Cada parte têm têm 33 cantos, o primeiro do Inferno é introdutório. A Primeira Parte de A Divina Comédia foi escrita em 1313, a
Segunda em 1318, e a Terceira já depois da sua morte, em 1321.
Esta
obra é importante, em primeiro lugar pela afirmação do Italiano face ao Latim, trazendo-o
para a Literatura, e na forma de epopeia. A sua narrativa é muito aprimorada e harmoniosa, impondo
facilmente a nova língua à antiga, exemplo que iria ser seguido por outras nações
europeias, dando origem a obras de idêntico teor nas suas respetivas línguas. Em
segundo lugar por ter fixado e aprofundado a visão do mundo do homem medieval, transportando-o
mais para a frente, com novas perspetivas sobre a realidade, de modo a libertar
o espírito humano das suas amarras mais arcaicas. Ele parte das raízes clássicas, provindas
de sementes que ao germinarem, afirmaram o Renascimento. Em terceiro lugar, é importante
por ter feito a crítica então possível ao comportamento primário dos seres
humanos, seus coevos, propensos a atropelos e desvios, recaindo nos pecados capitais
daquele tempo; à violência como se regia aquela sociedade: egoísta, divisionista,
opressiva e violenta; ao excessivo e intrusivo poder da igreja, que quanto a
ele se estava a afastar da doutrina original de Cristo. O Inferno, que é de facto medonho, ele suavizou-o. Na altura consideravam-no mais tormentoso e com as chamas mais ateadas. Ainda hoje muitos historiadores se admiram, como sendo A Divina Comédia tão crítica no domínio religioso, Dante não tivesse sido perseguido pela Inquisição. É uma obra do
Renascimento, um clássico da Literatura Ocidental, essencial nas nossas
bibliotecas.
(A rever)
(A rever)
18/08/2019
Martz Inura
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