JORGE AMADO





JORGE AMADO
Gabriela Cravo e Canela

PLANETA DeAGOSTINI (1999) (530 p.)




      Para divagar sobre um novo escritor, em jeito de análise mais do que de crítica, eu tinha pensado num autor jovem, mas visto que aqueles que mais me atraem andam por aí muito badalados, preferi voltar aos clássicos, que, sendo muito conhecidos, nem toda a gente sabe realmente por que são bons, e alguns nem sequer os leram. Movido por esta ideia fui pegar em Jorge Amado, um romancista muito lido na minha geração, que os mais jovens se habituaram a ver adaptado às telenovelas, naturalmente transfigurado. Entre as suas obras estive para escolher Mar Morto, indo à procura da veia ingénua e romântica do autor, ainda um pouco engajado politicamente. Muita gente gostou deste romance. Outro critério seria o de escolher o seu livro mais vendido, quando o autor já se tinha afirmado, Capitães da Areia, para ver até que ponto o público que o comprou tinha razão. Mas não tencionando para já comentar mais do que um livro, acabei por seleccionar Gabriela, Cravo e Canela, o seu romance mais emblemático, aquele que reúne mais consenso quanto ao seu valor, que é realmente aqui o que mais importa, porque romances há muitos, e está-se a chegar a um tempo que nós já não os poderemos ler todos.
     O romance decorre na cidade de Ilhéus a seguir a 1925, onde prolifera a cultura do cacau, emergente de um período, onde a lei estava no cano das repetições, e os coronéis e capitães, apenas de nome, se afirmavam pela posse das terras à custa dos jagunços, que conseguiam arrebanhar à sua volta para se apoderar delas e as registar como suas, já que antes aqueles ermos eram terra de ninguém. A cidade politicamente é ainda dominada pelos coronéis, tendo à sua frente o coronel Ramiro Bastos, homem já gasto pela idade, mas experiente na política e carismático, com o apoio indefectível dos coronéis Melk Tavares e Amâncio. Contra ele aparece subitamente Mundinho Falcão, fugido de um desgosto de amor, dominando o negócio da exportação do cacau, apoiado mais declaradamente pelo Doutor, Penópilas D'Ávila, que não é doutor, e pelo capitão, Miguel Oliveira, que não é capitão. A personagem romântica por excelência vai ser Gabriela, a tal menina-mulher, cheirando a cravo, cor de canela, sexualmente apelativa, com uma linguagem simples, mas doce, a saber a cacau com açúcar. Muitos homens se deixaram seduzir por ela, incluindo homens casados, que lhe querem montar casa, prometendo mesmo roças de cacau. Mas ela não vai aceitar isso, não, preferindo a sua liberdade. É este o esquema operativo do livro.
      O romance está dividido em capítulos, que lentamente vão reconstruindo a cidade com flashes dos seus aspectos mais característicos, como se estivéssemos em visita a Quadros de uma Exposição, capazes de inspirar Mussorgsky. Decorre num meio social em mudança, em que há uma notória transformação a nível das mentalidades, sobretudo quanto ao papel da mulher na sociedade. Gabriela vai representar uma espécie de símbolo dessa libertação, ainda que tímida. Até ali a mulher infiel ainda era morta com o seu amante, para o marido limpar a sua honra, e a rapariga infiel (a tal mulher solteira posta à ordem por homens casados, a quem montavam casa), sovada e tosquiada com o seu amante e posta na rua. Mas isto ia mudar, culminando com a condenação do coronel Jesuíno Mendonça por haver morto a tiros sua esposa, dona Sinhazinha e o seu amante, Dr. Osmundo.
    A cidade tem uma dinâmica muito própria, toda ela está em mudança. Sob o ponto de vista económico: rasgam-se novas ruas, constroem-se casas, novos estabelecimentos, abrem-se lojas, inaugura-se a carreira de marinetes, há obras na barra, prospera a produção de cacau. Culturalmente também se verifica algum progresso: abre-se um colégio de freiras, voltado para o ensino, há lançamentos de livros e declamação de poesia, criam-se clubes. Mas depois de ter mudado socialmente, é politicamente que a cidadezinha vai sofrer a sua maior transformação: a queda do regime dos coronéis, que vai conduzir ao aparecimento de uma sociedade mais moderna, no dizer da oposição, mais civilizada, com a burguesia comercial e os quadros a se imporem mais pelo seu valor organizativo que pela força dos seus jagunços.  
     Gabriela, Cravo e Canela é uma obra-prima da simplicidade, um modelo acabado de como se constrói literariamente uma cidade, rua a rua, casa a casa, família a família, instituição a instituição, empresa a empresa, povoando-a de vida, de humanidade, com um realismo que se estende aos problemas do dia-a-dia, mesmo os sexuais e íntimos, sem cair na ordinarice, na obscenidade, dando às personagens um linguajar simples, quase bárbaro, mas que nós sentimos belo, com a sua pureza primitiva: o Brasil no seu máximo exotismo e beleza, ainda que um tanto selvagem, mas genuíno. E o próprio autor também usa uma linguagem simples, despretenciosa, sem o requinte de aspirantes a literatos, mas precisa, fluída, desenvolta, próxima do povo, de quem está próximo. As personagens têm diálogos curtos, raramente excedendo uma linha, sem que fique nada por dizer.
     Jorge Amado, com uma obra que se pode considerar planetária, bem digno seria de um Prémio Nobel, se este não fosse tão sujeito à influência dos lobbies e da política. Quando o poderia realmente ganhar, não foi suficientemente apoiado, por estar ainda afectado pelo engajamento político, e depois, para ele foi como um pecado mortal ter ganho o Prémio Lenine, quando se estava em plena Guerra Fria. Posteriormente, quando se libertou de ideias monopolizadoras, a sua obra deixou de ser chocante, passou a interessar menos sob o ponto de vista político, e não foi capazmente promovida e apoiada.
     Ainda hoje resta no Brasil, sobretudo no Sul, um certo preconceito depreciativo contra este autor, a quem às vezes acusam de falta de elevação, de ser pouco elaborado, utilizar um léxico obsceno e impróprio, de tratar temas menos edificantes ou pouco grandiosos. Mas então vamos acusar também Nabokov de autor pérfido, por escrever Lolita, versando a pedofilia, num tempo tão conservador, quando ele pretende sobretudo representar a vida; ou acusar Jackie Collins de libertina, pela linguagem ordinária que normalmente emprega nos seus romances, quando apenas reconstitui com rigor os diálogos das suas personagens hollywoodescas.
     Jorge Amado não usa aqui uma linguagem refinada, preenchida de imagens grandiloquentes, não cria a toda a hora um universo literário altissonante, cheio de tiradas poéticas, mas desses autores temos muitos em quase todas as literaturas, ele desce até ao povo, que põe a falar a sua própria língua: rude, mas verdadeira; simples, mas expressiva; com o mérito da originalidade. Leva-nos em visita de passeio a um mundo antigo, pouco conhecido no exterior, num cadinho de muitos povos, várias filosofias, com brancos, negros, índios e mulatos à mistura. Põe-nos sob a aragem quente, misteriosa e estranha do Trópico de Câncer, recriando uma realidade que os leitores, sobretudo fora do Brasil, nunca tinham visto ou lido.
      Não é que este autor não pudesse ter ido mais longe, que seja imaculado, mas pela influência que teve numa, ou em várias gerações, bem merecia o prémio Nobel, injustiçado até então a uma das línguas mais faladas do mundo. Mas nem vale a pena o estar a lastimar, pois fica muito bem ao lado de outros autores, que também não foram agraciados com o referido prémio, e foram dos escritores mais influentes do século XX, aqueles que temos de pegar não só para os ler, mas também para os estudar, como Franz Kafka, James Joyce, Marcel Prost, Robert Musil, Jorge Luís Borges ou Máximo Gorki.
     Resta-nos fazer um comentário a uma das suas últimas vontades. Quis o autor, tido  por materialista, que após a sua morte fosse cremado e as suas cinzas lançadas à volta de uma mangueira de uma sua casa junto do Rio Vermelho, e a mesma pretensão já tiveram outros como Ferreira de Castro, que quis também que as suas cinzas fossem espalhadas por um recanto da Serra de Sintra, de onde se desfrutam vistas deslumbrantes, e agora  o fez também José Saramago, ateu confesso, esperando que elas venham parar a qualquer jardim ou lugar sacralizado, e muito preocupado em que não fossem divididas, como se com isso se quebrasse a sua alma. O facto é estranho, tem algo de comovedor, pois, não acreditando os autores numa vida para além da morte, paradoxalmente parecem preocupar-se mais com o Post mortem que os crentes, talvez para, num último recurso veemente, paradoxista, com o seu próprio corpo, que não com a alma, serem tocados, se não pela Eternidade, pelo menos pela infinitude, e assim se continuarem na Natureza. O assunto merece estudo de psicólogos e antropólogos. Que o Tempo os cubra de bênçãos.
     03/2011 Martz Inura 

Um comentário:

  1. Gostei. Uma ótica serena e equilibrada, como deveria ser todo o juízo.

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