JONATHAN SWIFT







JONATHAN SWIFT
As Viagens de Gulliver 
Tradução de Maria Francisca Ferreira de Lima
BIBLIOTECA VISÃO (2000) (320 páginas)

O HOMEM

            Jonathan Swift nasceu em 30 de novembro de 1667 em Dublin, e faleceu em 19 de outubro de 1745, na mesma cidade. Órfão de mãe com um ano de idade é levado pela ama para Inglaterra durante dois anos, voltando depois para Dublin, para casa de um tio, que lhe deu uma educação austera e o tratou da surdez, que o afetaria para o resto da vida. Era inteligente. Frequentou o secundário em Kilkenny durante oito anos, licenciando-se quatro anos depois no Trinity College de Dublin. Com a morte do tio vai para casa da mãe em Leicester. Esta, tendo poucos recursos emprega-o como secretário de Sir William Temple em 1692. Aproveita para obter um doutoramento em Hart Hall de Oxford, que lhe dava outro estatuto. Resolveu então mudar de vida, em 1694 ordena-se sacerdote da igreja anglicana e é colocado numa paróquia perto de Belfast. Porém, foi encontrar uma igreja hostil, a que não se adaptou, e pouco depois regressa ao serviço de Sir William Temple, e até à sua morte, em 1699.

            Tem de fazer pela vida, regressa à Irlanda e torna-se capelão de Lorde Berkelley. Mas ainda não estavam terminadas as suas ambições académicas, em 1702 obtém um doutoramento em Teologia em Dublin. Volta a seguir a Londres, onde é designado embaixador do clero perante o governo inglês. É um cargo de muito prestígio. Contudo, não tem paciência para a política, as coisas não lhe correm de feição. Não vê muito sentido naquela disputa acerba entre os nobres e comuns. Posiciona-se ao lado dos “Liberais”, e tem de suportar a inevitável contestação conservadora, embora nas suas sátiras atinja quer conservadores (Thories), quer liberais (Wihgs). Da Irlanda Stella continua a escrever-lhe cartas. As suas intervenções políticas davam origem a livros de teor crítico, irónico e satírico, e a pequenos escritos, por vezes de caráter panfletário. Entretanto, ia tendo contacto com pessoas da corte e com as mulheres que lhe marcaram a vida, como Stella, Vanessa (que morreu de tristeza por ele a ter rejeitado), e Esther, que lhe inspiraram algumas obras de natureza mais romântica.

            Esgotada a sua experiência política em Londres, em 1713 torna-se deão da catedral de S. Patrício em Dublin. Mas nem aqui seria bem aceite, dado a sua atividade política anterior, que não seria compatível com aquelas funções. Havia nele uma dolorosa objeção contra a corrupção e hipocrisia daquela sociedade, e foi escrevendo mais livros, alguns, verdadeiras sátiras aos costumes da época, tornando-se um escritor anglo-irlandês bastante admirado e reconhecido, ainda que escrevesse as suas obras sob pseudónimo. Em 1714 começou a escrever As Viagens de Gulliver, a sua obra-prima, onde se diz que pretendia agredir o mundo, não o divertir. Os últimos anos da sua vida foram bastante tristes, desmemoriou-se, ficou cada vez mais surdo. Em 1724, quando sua esposa Stella faleceu, ele já revelava sinais de declínio neurológico. Esta degenerescência acentuou-se nos últimos três anos de vida, em que ele própria verificava que estava a perder qualidades. Em 1742 foi declarado o seu estado de demência. Hoje pensa-se que sofria da doença de Alzheimer.

 

A OBRA

            Ode à Sociedade Ateniense (1692). Panfleto político  

            História de um Tonel (1704). Sátira em prosa à religião, em que não poupa ninguém

            A Batalha dos Livros (1704). Sátira em prosa

            Argumento contra a Abolição do Cristianismo (1708). De caráter panfletário

            Diário de Stella (1710-1713). Cartas

            The Conduct of the Alliers (1711). Panfleto de caráter político

            As Viagens de Gulliver (1726). Romance, a sua obra-prima

            Modesta Proposição (1729). Sátira política

            Instruções para os Criados (1731). Ensaio

            A Conversação Polida (1738). Ensaio sobre o uso da língua inglesa  

            Versos sobre a Morte do Doutor Swift (1739). Poema satirizando a sua própria morte.

           

 

 

O LIVRO As Viagens de Gulliver

 

A)     BREVE RESUMO DO LIVRO

A obra é justificada por uma carta deliciosa enviado por Lemuel Gulliver ao seu primo Richard Sympson, dando-lhe conta dos motivos das suas viagens e da forma estouvada como escreveu este livro, que terá muito a ver com o projeto de reformar a raça de Yahoos deste reino (que é o de Inglaterra). No início de cada capítulo ele faz uma síntese do que vai narrar, facilitando em muito a leitura do livro. Para melhor ler o livro convém que conheça as medidas de superfície que ele utilizava: jarda (0,9144) metro; pé (30,48 centímetros); polegada (2,54 centímetros).

 

 

I Parte-Ilustração de M. Balliet


Parte I

            O capitão Gulliver, a quem o mar e as viagens atraíam, foi destacado como médico cirurgião para uma viagem ao Oriente. Fizeram à vela em Bristol, em 4 de maio de 1699. Teve azar, o seu navio naufragou no meio de uma tempestade já no Oceano Índico, e ele foi parar à ilha de Lilipute. Cansado, adormece numa praia, e, quando acorda está amarrado ao chão por cordames, cercado de homens de cerca de 15 centímetros de altura, que tratavam de o ter bem seguro. Tudo naquela ilha tinha estas proporções minúsculas. É objeto da curiosidade daquele povo, que o designa como o homem-montanha. Apesar do seu tamanho mostra-se afável e bondoso, conseguindo granjear a simpatia e depois a confiança do imperador da ilha, que lhe foi concedendo mais liberdade. Não demorou a ser levado até à capital do país, Mildendo. Estando Lilipute em conflito com uma ilha vizinha de Blefuscu, Gulliver ajuda o imperador na guerra que estavam a travar. Captura alguns navios inimigos, forçando uma paz honrosa para os dois lados. O imperador condecora-o por tal feito. Tudo parecia correr bem, quando começam a conspirar contra ele, acusando-o de traição por se dar bem com os blefuscunianos. Por fim houve um incêndio no minúsculo palácio da rainha. Ele, à falta de melhor, urinou lá para dentro para apagar o fogo. A sua intenção era boa, mas da mesma opinião não foi a imperatriz, que o começou a considerar pessoa não grata na corte, não entrando mais naquele palácio. Teve que arranjar uma maneira de fugir dali para Blefuscu, onde descobre um pequeno barco a remos, com o qual se entranha no mar até encontrar um navio que leva de regresso à Inglaterra.

 


II Parte-Ilustração de M. Balliet


Parte II

            Gulliver embora tivesse mulher e filhos, gostava de viajar, e dali a pouco entrou noutra aventura. Em 20 de janeiro de 1702 parte no navio Adventure para uma nova viagem. Tudo vai bem até que uma tempestade o arrastou para Brobdingnag, no Oceano Índico, onde tinha ido num escaler à procura de água. Meio perdido, acaba por ser capturado por homens de proporções gigantes. Os insetos eram tão grandes como perdizes. Todos os animais tinham proporções assustadoras. Um fazendeiro tomou conta de si, exibindo-o como curiosidade de circo por toda a ilha, com o que ganhou muito dinheiro. Passou mal, por não se adaptar à sua alimentação. Foi dado como presente a uma sua filha de 9 anos, Glumdalclitch, que o guardava com desvelo numa gaiola como animal de estimação. Eram uns seres monstruosos, de pele repugnante, que apesar de tudo o tratavam com curiosidade e até cuidado, em especial a menina, por quem se afeiçoa. Descreve um pouco dos seus costumes. A rainha daquele povo achou-o divertido e comprou-o ao fazendeiro, que o vendeu, pensando que ele já não ia durar muito mais tempo, dado o seu estado de saúde. Mas a menina continuou a ser a sua aia, a seu pedido, o que a rainha aceitou, conseguindo reconstruir-lhe a saúde ao começar a beber leite e a comer carne na mesa da corte. O rei pediu para que lhe falasse da Europa. Os gigantes da ilha teriam à volta de 22 metros de altura estudaram-no com curiosidade científica. A rainha gostava imenso dele. Porém, começou a sentir que corria algum perigo quando um anão de entre aquele povo embirrou consigo, por ser ainda mais pequeno do que ele. Teve sorte que apareceu uma águia gigante, na proporção daquela gente, que o levou para o oceano e o deixou cair à água, sendo recuperado pela estupefacta tripulação de um navio que o trouxe de volta à Inglaterra.

 


III Parte -Iustração de G. Grandville


Parte III

            Estava muito calmo quando alguém veio a sua casa convidá-lo para uma nova viagem ao Índico. Parte em 5 de agosto de 1706. Embarca num navio de trezentas toneladas que é tomado por piratas. Esteve quase a ser morto. Deixaram-no numa canoa, na qual se presumia a sua morte certa. A sorte quis que o sobrevoasse uma ilha voadora, Lapúcia, que com roldanas o fizeram subir lá para cima. Aqui os habitantes se interessam por Matemática (lógica) e Música (harmonia). Como sempre, tentou aprende a sua língua. A ilha era voadora, isto é, movia-se no ar. Seguiu depois para Balnibardi, uma ilha que não se podia mover. Os seus habitantes eram um tanto distraídos, ocupando o seu tempo em especulações sem importância, envolvendo-se em grandes perigos, correndo risco de colisões acidentais, dado a natureza da sua ilha. Foi levado à Academia de Lagato, a capital do continente Balnibardi, onde os seus sábios incidiam os seus estudos em matérias nada práticas, como a de reciclar comida a partir de excrementos. Os seus habitantes eram estranhos, tendo a cabeça ora voltada para a esquerda, ora para a direita (Wihgs e Thories), e a sociedade fortemente repressiva. A seguir esteve em Glubbdubdribb, onde os espíritos podiam ser consultados. Falou com Homero e Aristóteles, Júlio César e Alexandre, o Grande, entre outros. Levam-no ainda a Luggnagg, onde havia seres imortais, descobrindo que nem por isso era invejável a sua sorte. Por fim consegue viajar para o Japão num navio holandês e regressar a casa, onde pensava nunca mais voltar ao mar. Esta parte é bastante irónica e faz uma acerba crítica à sociedade inglesa daquele tempo.  

 

 

Quatro Yahoos transportando um Houyhnhnms - IV Parte


Parte IV

            Sendo grande o propósito de ficar em casa, o desejo de voltar ao mar foi maior, e Gulliver ainda vai empreender mais uma viagem. Larga de Portsmouth em 7 de setembro de 1710, porém, semanas depois, já em pleno Índico, a tripulação amotina-se e deixa-o numa canoa, entregue à sua sorte. Quis a sorte que ele fosse parar a uma ilha, onde os Houyhnhnms, uma espécie civilizada de cavalos eram os senhores, e os Yahoos, muito próximos da raça humana, uma espécie de macacos, eram os governados, os servos. Os Houyhnhnms, embora sendo cavalos foram considerados por Gulliver sérios e até virtuosos. Ele estranha a sua alimentação e a sua língua, que possui poucos termos e não sabe expressar bem a palavra “mal”. Os Houyhnhnms revelam curiosidade sobre o seu país e ele fala-lhes da Inglaterra, da guerra e da justiça, através do qual satiriza a sociedade inglesa. Fala-lhes da rainha e do primeiro-ministro, da forma como se pode chegar a esse cargo. Critica a vida depravada dos filhos dos nobres. Neste país, os Houyhnhnms usam os Yahoos como animais de carga, e chegam a discutir em assembleia-geral a sua extinção. Ora ele era considerado um Yahoo. Depois de alguma discussão a assembleia resolvem expulsá-lo da ilha, por, sendo um Yahoo, ser tratado como um Houyhnhnm. Por fim deixaram-no ir embora, mas ele vai parar a ilha Nova Holanda, onde é ferido por uma flecha dos nativos ao tentar fugir. Tem sorte ao conseguir embarcar-se num barco português, que o traz de lá quase à força, pois ele anda meio perdido e confuso. O capitão, de nome Pedro Mendes, é bastante simpático, transporta-o para Lisboa e ainda lhe dá 20 libras para se governar nos primeiros dias à chegada ao seu país. Chega à costa de Downs, na Inglaterra, a 5 de dezembro de 1715. Andou em viagem durante 16 anos e mais de 7 meses. Contudo, agora não suportava o cheiro dos ingleses. Teve problemas no seu relacionamento com a mulher e aos filhos. Já não se sentia capaz de se adaptar àquela sociedade. Compra dois cavalos, com quem fala e começa a escrever as suas viagens. Este livro é uma crítica feroz ao estilo de vida inglesa, para ele considerado insuportável.

 

B)     UMA APRECIAÇÃO GERAL

As Viagens de Gulliver distinguem-se em primeiro lugar pela sua enorme originalidade, por um surrealismo que vimos muitos anos depois aproveitado por Kafka e outros autores mais recentes, mas que não se esperaria de uma obra de 1726. Jonathan Swift escreve com minúcia e grande rigor geográfico e cronológico, como para atestar a verossimilhança dos factos, completamente imaginários, quando nos fala dos seres minúsculos de Lilipute, com cerca de 15 centímetros de altura, onde é aprisionado, para em seguida nos levar para outra terra, agora de gigantes com cerca de 22 metros de altura. em Brobdingnag, onde volta a ser aprisionado. Na terceira parte já está perante seres normais, mas envolvidos em empreendimentos estúpidos. Por fim vai viver no meio de Yahoos e Houyhnhnms: os primeiros usados como animais de carga, servos, afinal, a classe de animais a que pertencia Gulliver; e os segundos, senhores daquela ilha, uma espécie civilizada de cavalos, em que via uma grande inclinação para a virtude, e nem mesmo concebem a ideia de maldade numa criatura de raciocínio, a sua máxima principal consistia em cultivar a razão” (p. 286), situação anómala, que o vai perturbar para o resto da vida. Todas as sociedades que encontra, ele as analisa sob as mais diversas facetas, como que para descobrir novas formas de organização que possam ser aproveitados pelos seres humanos. A sua crítica vai para o poder exercido pela monarquia, para as lutas insanas e bipolares entre a esquerda e a direita nas Câmaras dos Lordes e dos Comuns, pela excentricidade dos intelectuais e oportunismo dos charlatães, pela volubilidade dos magistrados e advogados, e de um modo geral por toda aquela sociedade, extensível aos seres humanos de todos os tempos.

 

E mais do que a divertida história que conta, é a sua carga crítica, a sua violenta sátira à sociedade anglo-irlandesa da sua época que enobrece esta obra. Tendo exercido funções políticas como representante do clero perante a nobreza, ele pôde analisar à saciedade toda a corrupção que havia na distribuição dos dinheiros públicos, o jogo de influências que havia no acesso aos cargos públicos, a hipocrisia que enfermava toda aquela sociedade, onde imperava a fraude, ávida de riqueza, sedenta de poder, desejosa de honras e mordomias. Pôde perceber a devassidão que existia entre os filhos da nobreza, que viviam na opulência, desbaratando o dinheiro dos pais, na maior devassidão, casando fracos com mulheres jovens, recorrendo às vezes aos criados e amigos para elas terem filhos fortes e saudáveis. A sua crítica à sociedade é ácida, e ainda mais noutros livros e panfletos que anteriormente tinha escrito, o que veio prejudicar a sua carreira e ser remetido para um modesto lugar na Irlanda, a que acabou por se acomodar. Todavia, é notório que se sente revoltado contra aquela civilização. Atribuía todos os males à estupidez humana. Gostava de esquecer as idiotices do mundo, e a vida como que o premiou neste seu desejo, morrendo já esquecido de si e do que o rodeava. É elucidativa o epitáfio que escreveu em Latim para o seu túmulo: Aqui jaz o corpo de Jonathan Swift, doutor em Teologia e deão desta catedral, onde a colérica indignação, não poderá mais dilacerar-lhe o coração. Segue, passante, e imita, se puderes, esse que se consumiu até ao extremo pela causa da Liberdade.

 

Jonathan Swift serviu-se de uma linguagem simples e transparente, ainda que reveladora de uma grande cultura, para nos escrever este livro prodigioso. Ao ser solicitado nas suas viagens por imperadores ou amos de terras distantes para que lhe falassem da Inglaterra e da Europa, ele aproveita para pôr em ridículo os costumes do seu país, a maneira estúpida como se declara a guerra e faz a paz; o modo corrupto como se exerce a política; a forma iníqua como se pratica a justiça, distorcida pelos poderosos. E não poupa ninguém. Indignava-o sobretudo o perjúrio, a tirania, o suborno e a fraude, tão comuns naquela época, e se calhar não mais do que na atual, e em todas as sociedades, que poucos criticam. Escandalizava-o ao narrar um século de História do seu país, cheio de conspirações, rebeliões, assassínios, massacres, revoluções e deportações; na verdade, os mais desastrosos efeitos que a avareza, fação, hipocrisia, perfídia, crueldade, paixão, loucura, ódio, inveja, luxúria, malícia e ambição poderiam produzir (p. 142). Qualquer espécie de cavalos amestrados administraria de modo mais funcional e justo aquela sociedade – ironiza ele. O livro teve êxito imediato, a edição de 1726 ainda foi censurada, mas a de 1735 já saiu completa. E, facto curioso, que sendo escrita para adultos, com o intuito de criticar a sociedade inglesa, embora se aplique a todas a aos seres humanos de todas as épocas, mais tarde teve um extraordinário êxito entre as crianças, que se sentem seduzidos pelo mundo fantástico que ele cria, capaz de provocar mais a sua imaginação que a sua indignação, cheio de aventuras inolvidáveis. Deu origem a filmes. As Viagens de Gulliver são um livro marcante da Literatura Ocidental.

 

Martz Inura

21/07/2020

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